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Um julgamento histórico no tema de liberdade de imprensa

03/08/2017 às 11:30
Leia nesta página:

O artigo relembra os cinquenta anos do julgamento do jornalista Hélio Fernandes por um artigo escrito na imprensa e seu confinamento.

No dia seguinte ao acidente aéreo que vitimou Castelo Branco, ocorrido em 18 de julho  de 1967, o jornalista Hélio Fernandes escreveu um editorial em que afirmava: “Com a morte de Castelo Branco, a humanidade perdeu pouca coisa, ou melhor, não perdeu coisa alguma. Com o ex-presidente, desapareceu um homem frio, impiedoso, vingativo, implacável, desumano, calculista, ressentido, cruel, frustrado, sem grandeza, sem nobreza, seco por dentro e por fora, com um coração que era um verdadeiro deserto do Saara.” Em consequência, permaneceu 30 dias preso na ilha de Fernando de Noronha e igual período em Piraçununga (SP). Libertado, continuou escrevendo artigos contra o governo Costa e Silva, e durante o ano de 1968 teve seu jornal submetido à censura de militares da ativa durante oito meses consecutivos. O governo militar considerou o artigo publicado no jornal injurioso à memória do Marechal Castelo Branco.

A medida sancionatória que foi determinada contra aquele jornalista partiu do ministro da Justiça e não do Judiciário, sem que houvesse o devido processo legal e um amplo contraditório. Num estado democrático, ela seria abusiva e arbitrária.

O Tribunal Federal de Recursos, por maioria, contra o voto do relator, ainda em 1967, votou pela denegação do habeas corpus. Entendeu o relator que a punição aplicada pelo então ministro da Justiça ocorreu sob a égide da Constituição de 1967, que havia revogado os atos institucionais que permitiam tal sanção. Foi ainda feita pelo relator exposição sobre a dicotomia exílio e confinamento. No caso, como se narrou houve um confinamento.

Para a maioria, os atos institucionais revogados pela Constituição de 1967 se aplicavam aos punidos pelo golpe militar de 1964.

A defesa, através de Antônio Evaristo de Morais, disse que era impossível a simultaneidade dos atos institucionais e das garantias inscritas na Carta de 1967.

O voto vencido era o correto: Não poderiam atos já revogados serem aplicados se já havia uma Carta Constitucional que lhe era contrária. A Constituição, uma vez promulgada, revoga tudo que lhe anterior e que lhe for contrária. Veja-se a lição de Pontes de Miranda na matéria.

A reforma da Constituição, sua emenda, ou substituição de uma por outra, através de processos constitucionais ou revolucionários, não implica a revogação tácita de todas as leis complementares, leis ordinárias, decretos-leis ou leis delegadas existentes, mas apenas das que forem incompatíveis com as novas normas fundamentais.

Pontes de Miranda (Os fundamentos atuais do direito constitucional, 1932, pág. 114; texto reproduzido nos Comentários às Constituições de 1937, 1946 e 1967, com a Emenda Constitucional n. 1/69) ensinou: “a regra é não se considerarem revogadas as leis ordinárias, ainda que o tenham sido, no todo, ou em parte, as Constituições. Ressalva-se a compatibilidade delas com os diferentes regimes”.

Assim subsistem as normas subordinadas que podem encontrar nos novos textos constitucionais seu fundamento de validade. As outras deixam de viger, por se tornarem carentes de fundamento.

O relator,  ministro Márcio Ribeiro, que votou pela concessão da ordem, afirmou que “diante da impossibilidade jurídica de aplicação de uma pena restritiva de liberdade, constante apenas do dispositivo legal revogado pela Constituição, não parece possível atender às razões de Estado, veementemente consignadas na portaria, e, sobretudo, na informação do habeas corpus.”.

Disse, ainda, o relator daquele histórico julgamento:

As revoluções populares e os golpes de Estado, invocando Pontes de Miranda, não podem manter ou derrubar a Constituição; os efeitos são apenas o de se apagar, por um momento, à luz da juridicidade.

[...]

A atual Constituição revogou toda a legislação anterior constitucional, institucional, complementar ou ordinária que seja incompatível com seus dispositivos expressos.

Quanto aos direitos e garantias individuais, do cidadão, a Carta de 67 é liberal, como as constituições brasileiras precedentes e, pelo crivo do art. 150 e parágrafos, tem de ser analisada qualquer exceção ao princípio da liberdade ou asseguradores ou garantidores da propriedade. Os atos legislativos, por hipótese o decreto de suspensão de direitos, expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares, não exauriram a sua eficácia, mas não prevalecem após a Constituição naquilo que a contrarie.

No mesmo voto, o ministro Márcio Ribeiro mostrou a diferença entre o confinamento e o exílio, para asseverar que a pena de confinamento na Ilha de Fernando de Noronha foi mais grave que este, que restringiu o direito de ir e vir.

Ao final, declarou o ministro Márcio Ribeiro, deferindo o habeas corpus:

Basta que essa pena tenha sido imposta em processo sumário, sem garantia de defesa, para que seja nula, por manifesta incompatibilidade com os parágrafos 15 e 16 do artigo 150 da Constituição.

Segundo a edição do periódico Correio da Manhã, de 6 de setembro de 1967, o habeas corpus foi denegado por 6x5, sendo o voto de desempate do ministro Antônio Neder.

 As coisas se passaram e houve a repressão política com o AI-5, em 1968, criando novas medidas graves contra a cidadania que culminaram na prisão dos adversários políticos e na proibição de habeas corpus contra atos do governo que cerceavam a liberdade do cidadão.

Disse anos depois o jornalista Hélio Fernandes:

“Durante três anos fiz as mais violentas criticas a Castelo Branco. Durante esse tempo os seus admiradores (os sinceros e ocasionais) o incensavam e o colocavam como o maior “presidente” da História”. Por que não hão de valer apenas os elogios, e as críticas hão de ser punidas com degredo, confinamento, prisão, uma série enorme de violências? Nenhum presidente, por melhor que seja, recebe apenas elogios; nenhum presidente, por pior que se mostre, acumula apenas criticas e reações desfavoráveis.”.

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É bom refletir, nesse momento de crise política, que temos que cultuar a democracia e preservar as suas instituições.

Uma das principais funções da democracia é a proteção dos direitos humanos fundamentais, como as liberdades de expressão, de religião, a proteção legal e as oportunidades de participação na vida política, econômica e cultural da sociedade. Os cidadãos têm os direitos expressos e o dever de participar do sistema político que vai proteger seus direitos e sua liberdade.

A ditadura militar foi uma das maiores afrontas à democracia, e a consciência democrática foi um forte elemento de oposição à ditadura.

Estava certo Churchill:

A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um julgamento histórico no tema de liberdade de imprensa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5146, 3 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59519. Acesso em: 25 abr. 2024.

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