RESUMO: O artigo analisa o papel da vontade na criação e transformação do Direito, à luz da teoria juspolítica de Carl Schmitt. O Direito é compreendido, para o citado autor, como a decisão sobre a normalização de uma dada realidade, na qual se instaura uma ordem concreta institucionalizada. A exceção reflete, portanto, mais do fenômeno jurídico do que a normalidade institucional, pois nela se vislumbram destacados seus três elementos componentes. O Poder Constituinte, porque obrigado consigo mesmo, pode decidir, a qualquer tempo, pelo desfazimento de suas promessas, ante a decisão sobre a instalação do estado de exceção. A politicidade, inseparável do jurídico, recomenda, portanto, que o controle de constitucionalidade seja exercido por um órgão político, do contrário se verificando escamoteados e ilegítimos os juízos políticos inevitavelmente exercidos. A conclusão alcançada é, assim, a de que o exame das premissas teóricas schmittianas conduz à necessária reflexividade dos três elementos formativos da ordem jurídica, muito embora as propostas do mencionado autor sejam incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Decisionismo. Carl Schmitt. Filosofia do Direito.
Sumário: Introdução. 1. Os três modos da juridicidade: decisão, ordem concreta e normatividade. 2. A permanência do Poder Constituinte Originário. 3. A teologia política schmittiana. 4. A neutralização política como técnica de dominação do liberalismo. 5. O controle de constitucionalidade como um juízo político. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A fundamentação teórica do jurídico encontra respostas claramente transcendentes até o advento do juspositivismo. A partir daí, os esforços cognoscitivos, tendentes ao embasamento do Direito, adquirem um caráter imeditamente intra-sistêmico, à luz daquilo que se considera como sendo suas estruturas internas peculiares: as normas jurídicas.
A doutrina positivista rechaça quaisquer intentos de se buscar, no plano extrajurídico, com especial destaque para aquele vinculado ao Direito Natural, as determinações do que cientificamente é o Direito. Esse, um ordenamento jurídico-positivo, deve ser compreendido por suas próprias normas, as quais se fundamentam por elas mesmas e, em última análise, remetem a uma norma superior situada acima da pirâmide do Direito, a norma fundamental kelseniana, de caráter lógico-formal.
Nesse sentido, o pensamento jusfilosófico de Carl Schmitt aparece como algo novo em um contexto de aparente supremacia das teses normativistas. A teoria por ele engendrada ganha força a ponto de polarizar de modo paritário com o pensamento de Hans Kelsen, instaurando uma polêmica que viria a adquirir grande notoriedade posteriormente (CRUZ, 2004, p. 97).
A nota distintiva presente na justificação do Direito, postulada por Schmitt, recai tanto sobre a tradição jurídica então dominante, quanto em face daquela que lhe antecedeu. É dizer, o jusfilósofo busca abalizar o Direito além da normatividade jurídica fenomênica, porém dentro dos limites da seara jurídico-positiva, isto é, sem recorrer a ordens meta-positivas.
1 OS TRÊS MODOS DA JURIDICIDADE: DECISÃO, ORDEM CONCRETA E NORMATIVIDADE
O Direito não perde a sua dimensão normativa com Schmitt, senão que agrega a esse paradigma outros dois, um deles realmente essencial na caracterização do Direito. Isso porque, se os demais surgem após ou antecedem à formação do Direito, esse elemento é aquele que é efetivamente jurígeno, qual seja, criador do Direito.
Trata-se da vontade ou, em outros termos, da decisão. Entende Carl Schmitt que a criação do Direito é resultado de uma vontade, a qual apreenderá posteriormente se manifestar por sobre uma ordem concreta antecedente e concomitante, sendo esse o outro paradigma a que nos referimos anteriormente.
Antes da fundação de um sistema jurídico, inexiste qualquer norma a originá-lo. Acreditar no contrário é mera quimera e pura artificiosidade, o que obtém explicações inclusive no próprio conceito de neutralização trazido por Schmitt, o qual será abordado por nós adiante. O Direito é criado por uma decisão que ocorre em meio a um contexto que se verifica caótico, parcamente ordenado, volição essa que é soberana a ponto de colocá-lo em ordem e, via de conseqüência, de originar o Direito.
2 A PERMANÊNCIA DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO
A vontade criadora do Direito é equiparada por Schmitt à figura do Poder Constituinte Originário, desenvolvida pela primeira vez por Syés, na França pós-revolucionária. Todavia, com Schmitt ela adquire contornos peculiares, em meio à teorização por ele empenhada.
O Poder Constituinte figura como determinação soberana, envolvida em uma ordem concreta, que delibera sobre a criação do Direito. Encontra sua legitimidade precisamente nesse seu caráter soberano, apoiado no substrato axiológico sobre o qual se funda. Não obstante, a grande diferença verificada em Schmitt é a inexistência de uma total autonomização do Direito criado em relação ao poder que cria, de modo a submetê-lo.
Así como una disposición orgánica no agota el poder organizador que contiene autoridad y poder de organización, así tampoco puede la emisión de una Constitución agotar, absorber y consumir el Poder constituyente. Uma vez ejercitado, no por ello se encontra acabado y desaparecido el Poder constituyente. La decisión política implicada en la Constitución no puede reobrar contra su sujeto, ni destruir su existência política. Al lado y por encima de la Constitución, sigue subsistiendo esa voluntad. Todo auténtico conflicto constitucional que afecte a las bases mismas de la decisión política de conjunto, puede ser decidido, tan solo, mediante la voluntad del Poder constituyente mesmo. También las lagunas de la Constitución – a diferencia de las oscuridades y discrepâncias de opinión de las leyes constitucionales en particular – pueden llearse, tan solo, mediante um acto del Poder constituyente; todo caso imprevisto, cuya decisión afecte a la decisión política fundamental, es decidido por Él. (SCHMITT, 1992, p. 94-95).
Cabe aqui mencionar uma distinção feita pelo jurista alemão entre Lei Constitucional e Constituição propriamente dita. A Constituição é a forma de governo e de organização política de um povo, materialmente existente, instituída pela vontade corporificada no Poder Constituinte. A Lei Constitucional é a expressão imperfeita e fenomênica desta, à qual encontra-se subordinada, cujas normas jurídicas visam tão somente à estabilização destinada a viger em uma ambiência de normalidade.
Feita essa diferenciação, faz-se relevante atentar para o fato de que, para Schmitt, a Lei Constitucional, noutras palavras, a Constituição Formal, é modificável a qualquer tempo por sua vontade instituidora. Vale dizer, tendo como base uma democracia, tomados os representantes ou o mandatário soberano identificado com o povo, esses podem modificar a qualquer tempo a Constituição Formal. Vê-se, pois, que não faz sentido se falar de cláusulas pétreas à luz do pensamento de Carl Schmitt.
Inobstante, a Constituição material é imodificável. Se ela representa as formas políticas concretamente adotadas por um povo mediante uma decisão soberana, a decisão posterior que a modifique não está alterando-a, mas sim, decidindo sobre a configuração de uma nova Constituição.
Isto posto, a alteração da Constituição material é impossível, e aqui cabe uma ressalva quanto à primeira assertiva que fizemos: uma reforma da Lei Constitucional pode também representar a decisão sobre uma nova ordem constitucional material, desde que repercuta na disposição concreta da conformação da unidade política de um povo.
Assim, a análise da teoria do Poder Constituinte schmittiana permite a enunciação de uma primeira conclusão: o poder constituinte permanece sempre vivo, podendo atuar a qualquer tempo através decisão sobre a alteração da Lei Constitucional, ou mesmo por intermédio da instauração de uma nova ordem material.
Tal se justifica, no aspecto formal, pelo raciocínio segundo o qual o compromisso assumido para consigo mesmo não é de observância obrigatória, eis que o mesmo ente que se compromete é livre para se descompromissar a qualquer tempo. Qual seja, não faz sentido estabelecer em uma Lei Constitucional limites à sua modificação, pois tal lei, sendo obra do povo, não pode vincular esse mesmo povo, impedindo uma decisão soberana que desfaça tais convenções.
Nessa altura, surge uma relevante questão. Poder-se-ia objetar, contra Schmitt, que a vontade não é capaz de por si só criar o Direito, pois do não-jurídico não pode surgir o jurídico. Ora, tal questão guarda notória dependência com o que se entende por Direito e, considerando-se que em Schmitt esse é primariamente vislumbrado como uma decisão soberana envolvida e originária por/de uma ordem, percebe-se a falta de razoabilidade da objeção.
Contudo, a exata compreensão do poder jurígeno da vontade exige uma retomada de alguns pontos da teoria política desse autor, a partir da qual se tornará mais clara a concatenação lógica desse raciocínio.
3 A TEOLOGIA POLÍTICA SCHMITTIANA
O processo de criação do Direito é para Schmitt, como dito, um processo de ordenação do caos, realizado por uma vontade soberana que normaliza o contexto fático a ela subjacente. Deste modo, a norma aparece neste autor como aplicável apenas a um contexto de normalidade, em que a descrição abstrata contida na normatividade jurídica encontra respaldo na realidade fática à qual se remete. Se falta essa correspondência, inexiste a possibilidade de aplicação do Direito e instaura-se o Estado de exceção, sendo o arcabouço jurídico-formal suspenso.
Soberano é, justamente, aquele que decide sobre o Estado de exceção. Uma decisão que, ressalte-se, é jurídica, porque o Direito já pressupõe em sua faceta normativa a possibilidade de sua suspensão pela via da vontade originária, face à ausência do normal que torna a normatividade aplicável.
Assim sendo, pelo caminho inverso ao da teoria do Estado de exceção, explicitada em “Teologia Política”, nota-se que antes do surgimento da norma é necessário uma decisão que institua o “normal”, tornando possível a aplicação desta. A vontade que normaliza, assim como aquela que excepciona, é, com efeito, a verdadeira essência do fenômeno jurídico, dado que não faria sentido falar nele sem uma decisão de tal caráter. Logo, como bem afirmou Schmitt, o Direito é mais bem caracterizado à luz da exceção, pois nela apenas resta o que há de substancia no jurídico: a decisão. Nesse sentido, argumenta Schmitt:
Sabemos que a norma pressupõe uma situação normal e tipos normais. Toda ordem, inclusive a ordem jurídica, está ligada a conceitos normais concretos, que não são deduzidos de normas universais, mas produzem, ao contrário, tais normas a partir de e para a sua própria ordem. (KÉRVEGAN, 2006, p. 9).
Apenas a decisão é capaz de, a um só tempo, produzir as condições de estabelecimento das normas jurídicas e levantar e resolver a questão da exceção, da anormalidade, sem declará-la não-jurídica.
A decisão é, assim, a condição primeira de efetividade e validade da norma, quer se trate do ato que constitui o soberano ou daquele que instaura a ordem do direito civil ou penal. (...) Uma norma, segundo Schmitt, resulta sempre de um ato decisório. (KÉRVEGAN, 2006, p. 9).
Referida conclusão embasará, adiante, a atribuição do exercício do controle de constitucionalidade a um órgão político, dada a primazia jurígena do elemento decisório do processo de produção e reprodução jurídico.
4 A neutralização política como técnica de dominação do liberalismo
Anteriormente, havíamos nos indagado acerca do motivo que levou a essa supervalorização da norma jurídica e porque o necessário conteúdo político-decisório do Direito foi dele apartado, como se inexistisse. Tal qual dizíamos, a questão encontra explanação convincente na obra “O Conceito do Político” de Carl Schmitt.
No século XIX, verificou-se uma situação de mudança daquilo que Schmitt denomina área central, equivalente a uma chave de compreensão da realidade própria a cada época. A peculiaridade deste século teria sido a adoção de uma área central neutra, representada pela técnica, assim descrita por Schmitt:
Por meio de tais definições e construções que acabam todas por ficar girando em torno da polaridade entre ética e economia, não se pode exterminar o Estado e a política nem se despolitizará o mundo. O fato de que os antagonismos econômicos se converteram em antagonismos políticos e de que o conceito de ‘posição econômica de poder’ foi capaz de surgir, demonstra apenas que o ponto do político pode ser alcançado a partir da economia assim como de qualquer outro domínio específico. (...) Inclusive este sistema pretensamente apolítico e aparentemente, até mesmo, antipolítico serve a agrupamentos do tipo amigo-inimigo existentes ou conduz a novos, não conseguindo escapar da conseqüência do político. (SCHMITT, 2009, p. 84-85).
Percebe-se, portanto, que a norma jurídica, o Estado de Direito, e a conseqüente obliteração do elemento político-decisório do universo de estudo do Direito encontram justificativa nessa chamada “Era das neutralizações”.
Objetiva-se, a partir disso, propalar-se a falsa e atraente idéia de um sistema normativo auto-suficiente, que se desprende da decisão soberana sua criadora e adquire existência autônoma, a qual, nada obstante, cai por terra ao surgimento da primeira conjuntura de exceção.
5 O controle de constitucionalidade como um juízo político
A compreensão decisionista do Direito, aliada aos corolários desenvolvidos no âmbito da teoria do poder constituinte, redundou em severas críticas tecidas por Schmitt à jurisdição constitucional como legítima guardiã da Constituição.
O atrelamento dos órgãos jurisdicionais à forma jurídica obstaculizaria a lida com essa dimensão essencialmente política do Direito, uma vez que a imputação da pecha de defensor constitucional a qualquer instituição judicial implicaria no fim de sua existência enquanto tal, porquanto em face dela sobreviria uma inevitável politização, a qual comprometeria sua independência de modo desnaturá-la dentro dos parâmetros do Estado de Direito liberal, tão criticados pelo autor.
A pressuposição do normal, contida nas determinações normativas limitadoras da atuação dos tribunais, impediria o seu posicionamento no interior de um contexto de exceção. Inevitável e incontrolada politização se acometeria, gerando efeitos imprevisíveis. Schmitt (1983) propugna então, na obra “La defensa de la Constitución”, que o Presidente do Reich é o genuíno defensor da constituição, por ser soberano e identificado com o povo alemão e, ademais, situar-se acima dos poderes instituídos.
Por fim, cumpre ressaltar que a vontade schmittiana transmuda-se claramente em um instrumento de justificação do regime nazista, com a adoção pelo autor do paradigma da ordem concreta. A decisão soberana surgiria assim como reunião entre physis e nómos, constituindo-se em vetor de expressão de uma ordem concreta ínsita à axiologia de um povo, o que fica claro no trecho a seguir:
[...] Por isso que, nessa introdução de um novo modo de pensar jurídico está contido não um simples corretivo do atual método positivista, senão uma mudança a um novo modo de pensar jurídico, que se ajusta às futuras comunidades, ordem e formações de um novo século. (SCHMITT, 1996, p. 77).
CONCLUSÃO
É inconteste que, por detrás de um pensamento profundamente influenciado ideologicamente, situa-se uma brilhante teoria capaz de fazer o mais crédulo liberal duvidar acerca dos fundamentos do contemporâneo Estado de Direito. As sólidas garantias do controle de constitucionalidade e a aparente autonomia funcional apresentada pelo sistema jurídico contemporâneo por um instante desmancham-se no ar frente às objeções levantadas pelo mestre alemão.
Desta feita, só mesmo o consenso racional democrático e a sua essência decisória para oferecer-nos um pouco de alento antes as perturbadoras e inteligentes considerações tecidas por Schmitt. A vontade, que até então fora problemática, pode muito bem representar um sustentáculo à contra-facticidade do ordenamento constitucional, como nos mostra Konrad Hesse (1991).
Ao fim e ao cabo, estudar Schmitt, muito mais do que lidar com um teórico do nazismo, fato induvidosamente reprovável de sua trajetória, é mirar os limites e possibilidades de uma fundamentação do direito que se pretenda sustentável. Nesse diapasão, a vontade jamais pode ser olvidada e, ainda que lhe seja negado um papel preponderante na definição do jurídico, a concretização de semelhante propósito não pode prosperar sem a necessária consideração do elemento decisório.
REFERÊNCIAS
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991.
KERVÉGAN, Jean-François. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri, SP: Manole, 2006
MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O pensamento político-constitucional de Carl Schmitt no contexto histórico-político da República de Weimar. Acesso em 20 de junho de 2010. Disponível em http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/o%20pensamento%20pol%EDtico%20constitucional%20de%20carl.pdf.
RODRIGUES, Cândido Moreira. Apontamentos sobre o pensamento de Carl Schmitt: um intelectual nazista. Acesso em 20 de junho de 2010. Disponível em http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/saeculum12_art06_rodrigues.pdf.
SCHMITT, Carl. La defensa de la constitución. Madrid: Tecnos, 1983.
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político - Teoria do Partisan. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2009
SCHMITT, Carl. Sobre los modos de pensar la ciencia jurídica. Madrid: Tecnos, 1996.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In:______. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.
SCHMITT, Carl. Teoría de La constitución. Madrid: Alianza Universidad, 1992.