Na espécie, ocorre muitas vezes de o bem dado em garantia do contrato em arrendamento mercantil ou alienação fiduciária, ter sido localizado somente após a conversão da ação para o feito executivo.
A partir daí indaga-se: Posso retomar a busca ou reintegração de posse? E, se o devedor fiduciário foi citado na fase de execução por ocasião da conversão? A ação primitiva pode ser retomada ou há óbice do artigo 329 do Código de Processo Civil quanto à alteração do pedido?
A nosso ver, com premissa no princípio da especialidade e da instrumentalidade das formas, ainda que citado o devedor fiduciário, frisa-se, na fase de execução, a ação primitiva pode e deve ser retomada.
Preliminarmente, oportuno registar que as disposições do Decreto Lei 911/69 são aplicáveis, por analogia, aos contratos de arrendamento mercantil, tendência que se confirma com a alteração legislativa promovida pela Lei 13.043/2014.
É o que se extrai da interpretação do disposto no artigo 3º, §15º do mesmo Decreto, introduzido pela Lei 13.043/2014, verbis:
“As disposições deste artigo aplicam-se no caso de reintegração de posse de veículos referente às operações de arrendamento mercantil previstas na Lei n o 6.099, de 12 de setembro de 1974”.
O enfoque da matéria debatida deve ser feito à luz da Lei 13.043/2014, que trouxe modificações no Decreto Lei 911/69, possibilitando, inclusive, segundo entendimento do E. STJ, “expressamente a extensão das normas procedimentais previstas para a alienação fiduciária em garantia aos casos de reintegração de posse de veículos objetos de contrato de arrendamento mercantil (Lei n. 6.099/74).” (cf. Recurso Especial nº 1.507.239, Rel. o Min. Marco Aurélio Bellizze).
Neste sentido:
“Arrendamento mercantil. Reintegração de posse. Não localização do bem arrendado. Pedido de conversão para ação de execução. Possibilidade. Arts. 4º e 5º do Decreto Lei 911/69. Normas procedimentais extensivas aos casos de reintegração de posse. Inteligência da Lei 13.043/2014. Credor munido do contrato e considerado título executivo extrajudicial. Princípios da economia e celeridade processual. Prosseguimento do processo como execução de quantia certa. Recurso provido. Nos termos dos atuais arts. 4º e 5º do Decreto Lei 911/69, se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado fica facultado ao credor requerer, nos mesmos autos, a conversão do pedido de busca e apreensão em ação executiva. A Lei 13.043/2014, que trouxe modificações no mencionado Decreto Lei, autoriza expressamente a aplicação das normas procedimentais previstas para a alienação fiduciária aos casos de reintegração de posse de veículos referentes às operação de arrendamento mercantil (cf. Resp 1.507.239). No caso, o autor está munido do contrato de arrendamento mercantil, que é dotado de força de título executivo extrajudicial, e, diante da não localização do bem arrendado, é possível a conversão da ação de reintegração de posse para execução”. (Agravo de instrumento 2115584-62.2015.8.26.0000; Relator(a): Kioitsi Chicuta; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 02/07/2015; Data de registro: 03/07/2015). Grifos nossos.
Portanto, é incontroversa a aplicação dos diapositivos constantes do Decreto-lei 911/69 aos contratos de arrendamento mercantil.
Feitas estas considerações prévias, passemos a analisar a casuística aqui proposta.
A ação executiva, em que for convertida a originária ação de reintegração de posse ou de busca e apreensão conforme prerrogativa conferida ao credor pelo artigo 4º do Decreto-Lei n.º 911 de 1969, tem natureza incidental substitutiva, ou seja, tem por finalidade a consecução da ação primeira a fim de recuperar o bem objeto do arrendamento mercantil/alienação fiduciária em garantia ou valor correspondente.
Em consequência, se no trâmite da ação substitutiva o bem é localizado, em decorrência da incidentalidade, a ação de reintegração de posse/busca e apreensão primitiva retoma seu curso normal, pois a subsidiariedade da medida superveniente perde a razão de ser, independentemente de ter sido ou não citado o devedor fiduciário na fase substitutiva (execução).
Neste sentido:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – BUSCA E APREENSÃO CONVERTIDA EM DEPOSITO – R. ato decisório que indeferiu pedido de expedição de carta precatória para a apreensão do veículo objeto da demanda sob o fundamento de que, convertida a ação de busca e apreensão em ação de depósito, não se poderia mais autorizar tal medida – A ação de depósito, em que foi convertida a originária ação de busca e apreensão, possui natureza incidental substitutiva, tendo por fim a consecução do objetivo da ação primitiva, calcado na recuperação do bem objeto da alienação fiduciária em garantia ou de valor a ele correspondente – Se no trâmite da ação substitutiva o bem é localizado, a ação de busca e apreensão primitiva retoma seu curso normal – Identidade da matéria fática versada no procedimento inicial e no de depósito – Atendimento aos principio da moralidade, economia e celeridade processuais – Reforma do r. ato decisório – Provimento. (AI n. 851.609-0/4 – 2º Tac Cível. Relator Dr. Prado Pereira. J em 10/08/04. Grifos nossos
A questão deve ser resolvida observando-se o conflito de normas (hermenêutica), onde a lei especial deve prevalecer sobre a geral, de forma que o DECRETO-LEI 911/69, por ser norma especial a regular a matéria deve prevalecer sobre o disposto contido no artigo 329 do Código de Processo Civil, no que tange aos óbices quanto à alteração do pedido.
Não há como confundir uma faculdade legal de conversão em execução com uma emenda à inicial.
São institutos completamente diferentes e com regras incomunicáveis. Note-se que a própria lei fala claramente que a conversão pode ocorrer nos mesmos autos do processo (art. 4º do Decreto-Lei 911/69), o que deixa claro que o legislador estava consciente de que a outra parte poderia ter sido citada ou não, o que não interfere em nada nesse direito potestativo do credor fiduciário.
Aliás, se a conversão em execução fosse mera emenda à inicial e devesse respeito aos critérios de uma emenda, nem haveria sentido haver norma para se permiti-la, pois é óbvio que antes da citação sempre pode o autor de qualquer ação emendar sua inicial da maneira que lhe convier.
Tanto isso é verdade que os Tribunais, tentando contornar essa interpretação contrária à lei, sedimentou o raciocínio de que, em ações de busca e apreensão, a citação só ocorre depois do cumprimento total da liminar, e não com a juntada do mandado de citação aos autos e nem com a vinda espontânea do réu ao processo. Nem era necessário, pois bastaria afirmar que as regras da emenda não se aplicam quando do que se está tratando é uma conversão legal.
De qualquer forma, o raciocínio exposto pelos tribunais é de que não há citação e muito menos estabilização da demanda antes do cumprimento da liminar da busca e apreensão com o comparecimento espontâneo do réu, pois a legislação sobre alienação fiduciária excepciona a regra geral prevista no Código de Processo Civil, pois cria prazo para contestação de 15 dias depois de cumprida a liminar de busca e apreensão (e não da juntada do mandado nos autos ou do comparecimento espontâneo do réu). Alguns julgados dos tribunais brasileiros deixam essa questão clara:
“Admite-se a conversão da ação de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária em garantia em execução por quantia certa, mesmo que tenha havido inoportuna contestação”
(agravo de instrumento no 2002555-34.2015.8.26.0000, 28a Câmara de Direito Privado, Relator CELSO PIMENTEL, j. 10/03/2015; v.u.)
“RECURSO – AGRAVO DE INSTRUMENTO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. Pedido para conversão da ação em execução. Cabimento. Ausência de citação a possibilidade de alterar a causa de pedir e o pedido inicialmente formulados. Incidência dos artigos 264 e 294, ambos do Código de Processo Civil. Comparecimento espontâneo da requerida que não importa em estabilização subjetiva da lide, dada a especificidade lega (artigo 3º, parágrafo 3º, do Decreto-Lei nº 911/69). Observância dos princípios da efetividade e economia processual. Precedentes. Decisão mantida. Recurso de agravo não provido.”
(TJ-SP – AI: 21125455720158260000 SP 2112545-57.2015.8.26.0000, Relator: Marcondes D’Angelo, Data de Julgamento: 20/08/2015, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/08/2015)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. CONTESTAÇÃO. TEMPESTIVIDADE. CONVERSÃO EM AÇÃO DE EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE. PREQUESTIONAMENTO. 1. Nos termos do artigo 3º, § 3º, do Decreto-lei n.º 911/69, ‘o devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar’. Não sendo cumprida a medida, inviável falar-se no cômputo de prazo para apresentação da contestação, não lhe sendo aplicável a regra relativa ao comparecimento espontâneo prevista no Código de Processo Civil, por se tratar de norma especial. Precedente. 2. Mostra-se possível a conversão da ação de busca e apreensão em ação de execução, quando ‘o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor’ (artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69, com redação dada pela Lei n.º 13.043/14). Precedentes. 3. Não se verifica malferimento às normas jurídicas invocadas. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO.”
(Ag. Inst. nº 70064835390, 14ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rel.: Mário Crespo Brum, Julgado em 19/05/2015).
Com efeito, não se aplica o artigo 329 do referido diploma ao caso proposto, e sim a lei especial que rege a matéria consubstanciado no Decreto-lei 911/69, cuja retomada do rito primitivo da reintegração de posse/busca e apreensão é desdobramento lógico, de modo a garantir a efetividade jurisdicional, a instrumentalidade das formas e a celeridade processual.
Conclui-se, portanto, tendo sido localizado o bem durante a ação substitutiva (rito da execução) por força da incidentalidade, a ação de reintegração de posse/busca e apreensão deve retomar seu curso normal, pois a subsidiariedade da superveniente medida perdeu a razão de existir.
Assim sendo, é lícito nessa seara que o credor prossiga na ação primitiva, especialmente porque a finalidade da ação sempre foi recuperar a coisa alienada, procedendo-se a busca ou reintegração de posse e a sua entrega imediata ao depositário do credor fiduciário, conferindo-lhe a prerrogativa de alienação do bem a terceiros, nos termos dos §§ 4º e 5º do artigo 1º c.c. o § 15 do artigo 3º do Decreto-lei 911/69, sem os percalços dos tramites oriundos da penhora e da alienação judicial.