Em 2 de agosto de 2013, foi publicada no Diário Oficial da União[1] a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, dispondo sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, conhecida como Lei Anticorrupção.
Este diploma normativo trouxe inúmeras inovações ao ordenamento jurídico brasileiro, condensando, numa só lei, as principais medidas direcionadas à responsabilização das pessoas jurídicas no País.
Em 1º de julho de 2016, ou seja, quase três anos depois da Lei Anticorrupção, foi publicada no Diário Oficial da União[2] a Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, que dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conhecida como Lei (de Responsabilidade) das Estatais.[3]
Desta última Lei, constou o seguinte dispositivo:
Art. 94. Aplicam-se à empresa pública, à sociedade de economia mista e às suas subsidiárias as sanções previstas na Lei no 12.846, de 1º de agosto de 2013, salvo as previstas nos incisos II, III e IV do caput do art. 19 da referida Lei.
Como se pode observar, o legislador ordinário, na nova Lei das Estatais, entendeu que esta deveria ser responsabilizada tal e qual as outras pessoas jurídicas de direito privado, reforçando a ideia de igualdade prevista na Constituição Federal entre umas e outras, in verbis:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
(...)
II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Nem todas as sanções previstas na Lei nº 12.846, de 2013, entretanto, foram eleitas como aplicáveis às empresas estatais.
É sobre as sanções, aplicáveis às empresas públicas e às sociedades de economia mistas, bem como às respectivas subsidiárias, que versará o presente artigo, na extensão devida ao escopo deste trabalho.
Das sanções previstas na Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção)
A Lei nº 12.846, de 2013, ao tratar das sanções aplicáveis às pessoas jurídicas por ela abrangidas, cuidou da esfera de responsabilização tanto administrativa quanto civil.
Neste espectro de responsabilização, não exauriu outras possibilidades de sancionamento, como se depreende do texto da própria Lei, in litteris:
Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:
I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e
II - atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC instituído pela Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.
Nesse sentido, são aplicáveis às estatais, e respectivas subsidiárias, a priori – do mesmo modo que seriam aplicáveis às demais empresas privadas, por falta de exclusão legal – as sanções de improbidade administrativa previstas na lei própria e as referentes às infrações penais estabelecidas na legislação de regência das licitações e contratos no Brasil.
Tais sanções, entretanto, podem ser objeto de outra abordagem, haja vista a análise, neste artigo, apenas do que estatuído especificamente no texto da própria Lei nº 12.846, de 2013.
Da responsabilização administrativa das empresas estatais
Sob a ótica da responsabilidade administrativa, há duas sanções previstas na Lei, quais sejam:
- multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e
- publicação extraordinária da decisão condenatória.
A questão que se impõe é a verificação, in concreto, da caracterização do ato lesivo à administração pública nacional ou estrangeira pela empresa estatal, ou subsidiária, objeto de eventual imputação dos sancionamentos que ora se debatem.
Num exemplo, não há nenhum impedimento de que as empresas estatais participem das licitações lançadas por umas e por outras. Nada impede que o Serviço Federal de Processamento de Dados - SERPRO participe de uma licitação na área de Tecnologia da Informação do Banco do Brasil - BB. E nem de que a Empresa Brasil de Comunicação – EBC também participe de um certame promovido pela Caixa Econômica Federal – CAIXA, desde que para atuação, por óbvio, dentro do objeto social da empresa participante do torneio.
Em assim sendo, é possível, em tese, que dada empresa estatal, participante de certame licitatório promovido por outro ente estatal – seja da Administração direta ou indireta – afaste ou procure afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo (art. 5º, inciso IV, alínea “c”, da Lei nº 12.846/2013).
Tal situação poderia ser configurada, por exemplo, no caso de a empresa privada “A”, fornecedora de bens ou serviços à estatal “B”, sendo ambas participantes de licitação promovida pelo órgão “C”, ser coagida pela estatal “B” a não participar ou não apresentar proposta competitiva no certame promovido pelo órgão “C”, sob pena de ela, empresa privada “A”, ser mais rigorosamente fiscalizada ou penalizada pela estatal “B”.
Tal comportamento, devidamente identificado e comprovado pelas instâncias competentes, pode e deve dar ensejo à penalização da estatal “B”, sob pena de esvaziamento do contido no art. 94 da Lei nº 13.303, de 2016, ora em comento.
Da multa
A primeira das penalizações passíveis de aplicação às empresas estatais é a penalidade de multa, variando de 0,1% a 20% da base de cálculo fixada no inciso I do art. 6º da Lei nº 12.846, de 2013.
Toda empresa estatal, seja ela empresa pública, ou sociedade de economia mista, e as respectivas subsidiárias, deve, a cada exercício financeiro, apresentar as demonstrações financeiras a que obrigada por força da legislação em vigor, independentemente da forma de constituição admitida em direito.[4]
Nestas demonstrações é apurado o faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, obrigatoriamente autuado por força do que dispõe o art. 8º da Lei nº 12.846, de 2013,[5] que estabelece a base de cálculo sobre a qual será aplicada a multa prevista na mesma Lei.
Não há, portanto, falta de base de cálculo para o estabelecimento da multa prevista na Lei, evitando-se a necessidade de utilização do previsto no §4º do art. 6º da Lei, que fixa que, nos casos de impossibilidade de uso do critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, o valor da multa poderia variar de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais). Apesar de a Lei fixar parâmetros para tal apenação,[6] a possibilidade de que haja arbítrio não deixa de existir.
Da publicação extraordinária da decisão condenatória
A segunda penalidade prevista explicitamente na Lei nº 12.846, de 2013, é a de publicação extraordinária da decisão condenatória da prática de ato infracional à Lei Anticorrupção.
Tal sanção é consubstanciada da seguinte forma, na Lei:
§ 5o A publicação extraordinária da decisão condenatória ocorrerá na forma de extrato de sentença, a expensas da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa jurídica ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio de afixação de edital, pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores.
A depender do negócio desenvolvido pela empresa estatal, a publicação de extrato da decisão pode ser tão ou mais gravosa que a aplicação da pena pecuniária de multa, prejudicando sobremaneira os negócios da estatal infratora.
São exemplos de estatais que poderiam ser prejudicadas diretamente com sanções dessa natureza: a Petrobrás, as estatais de Energia Eólica, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, por atuarem diretamente no mercado privado e em regime de competição mercadológica.
Registre-se, por fim, que mesmo após a aplicação das penalidades aqui previstas, não está afastada a obrigação da reparação integral do dano causado.[7]
Da responsabilização civil das empresas estatais
Além da pena pecuniária, há também a possiblidade de responsabilização civil da pessoa jurídica, assim explicitada na Lei nº 12.846, de 2013:
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5º desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras:
I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;
II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;
III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;
IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.
§ 1º A dissolução compulsória da pessoa jurídica será determinada quando comprovado:
I - ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos; ou
II - ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.
§ 2 (VETADO).
§ 3º As sanções poderão ser aplicadas de forma isolada ou cumulativa.
§ 4 O Ministério Público ou a Advocacia Pública ou órgão de representação judicial, ou equivalente, do ente público poderá requerer a indisponibilidade de bens, direitos ou valores necessários à garantia do pagamento da multa ou da reparação integral do dano causado, conforme previsto no art. 7º, ressalvado o direito do terceiro de boa-fé.
A Lei das Estatais excluiu, de início, o sancionamento previsto nos incisos II, III e IV do caput do art. 19 da Lei Anticorrupção.
Poderia mesmo não fazer sentido o Estado punir o próprio Estado/Administração Indireta com a suspensão de atividades (inciso II), a dissolução compulsória de empresa por ele mesmo – Estado – criada (inciso III) ou proibi-la de receber subsídios ou subvenções de um a cinco anos (inciso IV). Talvez esta última até pudesse ser aplicada.
A Lei nº 13.303, de 2016, remetendo ao art. 19 da Lei nº 12.846, de 2013, contudo, autorizou explicitamente a aplicação, às empresas estatais e respectivas subsidiárias, das sanções previstas no inciso I do referido artigo, quais sejam:
- perdimento dos bens;
- perdimento de direitos; ou
- perdimento de valores.
Todas estas formas de perdimento estão diretamente relacionadas às vantagens ou proveitos direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, na forma da legislação civil comum.
Dada a natureza jurídica das empresas estatais e respectivas subsidiárias – todas pessoas jurídicas de direito privado – os bens, direitos e valores de que dispõem são de mesma natureza, ou seja, privados, pertencentes ao patrimônio da própria estatal, e não dos entes da Administração direta a que se vinculam. Por tais motivos, passíveis de constrição, restrição ou perda.
Da perda de bens ou valores
Dentre as penalidades passíveis de imputação às estatais e respectivas subsidiárias está a de perda de bens ou valores. Pelo caráter econômico que representam, aproximam-se uma forma da outra, motivo pelo qual serão tratadas em conjunto.
Conforme divisão clássica dos bens, estes podem ser móveis ou imóveis.
Os primeiros certamente compõem o patrimônio da empresa estatal, como parte indispensável ao funcionamento ordinário da pessoa jurídica estatal.
Os segundos podem ou não integrar o patrimônio dela. Integrando, podem ser em maior ou menor grau, a depender da natureza da atividade desenvolvida pelo ente público.
A Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP, por exemplo, empresa pública vinculada ao Governo de Brasília,[8] possui quase a totalidade do patrimônio integrado por imóveis. Nesse caso, todos eles, em princípio, passíveis de perdimento nos termos da Lei nº 12.846, de 2013.
Além da perda dos bens, as empresas estatais também podem ser apenadas com o perdimento de valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração à Lei. Tais valores podem, por exemplo, constituírem-se de ações negociadas diretamente em Bolsa de Valores, como é o caso do Banco do Brasil, da Eletrobrás, e da Petrobrás, que possuem títulos negociados na BOVESPA.[9]
Se, em determinada transação operada em Bolsa, por exemplo, uma das estatais ou respectivas subsidiárias obtém qualquer vantagem em decorrência de infração à norma legal, sujeita está à pena de perdimento das vantagens ou proveitos direta ou indiretamente auferidos com a manobra infracional.
É esse o espírito da Lei nº 12.846, de 2013, aplicado às entidades empresariais do Estado, equiparáveis às do setor privado, ressalvados, como a própria Lei expressa, os direitos do lesado ou de terceiros de boa-fé que, em tese, não poderiam ser prejudicados com a ação infracional praticada pelas empresas estatais.
Da perda de direitos
As estatais e respectivas subsidiárias estão sujeitas também à perda de direitos por infração à Lei Anticorrupção. Um exemplo pode ilustrar a situação.
A Empresa Brasil de Comunicação S/A – EBC, empresa pública federal vinculada à Secretaria Geral da Presidência da República, por intermédio da Secretaria de Comunicação Social,[10] possui o monopólio legal de distribuir a publicidade legal de todos os órgãos e entidades da Administração Pública federal, assim:
Art. 8o Compete à EBC:
(...)
VII - distribuir a publicidade legal dos órgãos e entidades da administração federal, à exceção daquela veiculada pelos órgãos oficiais da União;
§ 1o Para fins do disposto no inciso VII do caput deste artigo, entende-se como publicidade legal a publicação de avisos, balanços, relatórios e outros a que os órgãos e entidades da administração pública federal estejam obrigados por força de lei ou regulamento.
§ 2o É dispensada a licitação para a:
(...)
II - contratação da EBC por órgãos e entidades da administração pública, com vistas na realização de atividades relacionadas ao seu objeto, desde que o preço contratado seja compatível com o de mercado.
Em outras palavras, havendo preços compatíveis com os de mercado, os órgãos e entidades integrantes da Administração federal são obrigados a contratar a EBC para a distribuição da publicidade legal a que sujeitos, em verdadeiro monopólio legal outorgado àquela estatal. É, portanto, um direito da estatal assegurado por lei.
A depender de eventual infração à ordem jurídica, pode ser que tal direito seja retirado da EBC, pelas vias legais para tanto. E a lógica é a mesma que permeará a perda de direitos de qualquer estatal, como, em outro exemplo, um determinado benefício tributário ou creditício que dada estatal, ou a respectiva subsidiária, possua em razão da específica atividade que desempenhe. Se pratica ato em afronta à Lei nº 12.846, de 2013, passível está da sanção de perdimento de direitos prevista no art. 19, inciso I, desse mesmo diploma normativo.