Nas relações entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, a liberdade escraviza e a lei liberta. (Jean Baptiste Henri Dominique Lacordaire - 1802-1861)
Causa profunda indignação a forma açodada, desleal com a democracia e completamente descompromissada com a classe trabalhadora brasileira com que tramitou a cognominada “Reforma Trabalhista”.
A pretexto de modernizar as relações entre capital e trabalho e aumentar a oferta de empregos, promove-se desserviço à Nação, em autêntica tentativa de demolição dos até então sólidos pilares do Direito do Trabalho brasileiro, edificado sob princípios universalmente aceitos, dentre os quais se destacam o da Proteção e o da Primazia da Realidade, solenemente ignorados pelos que se autoproclamam arautos do progresso e do desenvolvimento, mas se esquecem de que, sem a preservação de direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, qualquer evolução econômica será ilusória e efêmera.
As alterações, aliás, colidem frontalmente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), afrontando de modo especial o Objetivo 8, que concita o mundo a “Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos”. Dentre as metas do referido objetivo, é possível destacar as seguintes:
8.5 Até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor
8.6 Até 2020, reduzir substancialmente a proporção de jovens sem emprego, educação ou formação
8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas
8.8 Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários
Em vez de seguir tais orientações universais, o Congresso Brasileiro, envolto em investigações que lhe subtraem a necessária legitimidade para promover modificações tão profundas, em fúria reformista sem precedentes conhecidos, divorciou-se dos propósitos mundiais de dignificação do trabalho e do trabalhador, atenta contra a Constituição da República e contra Convenções Internacionais de proteção ratificadas pelo Brasil e, numa onda neoliberalista nunca antes tão exacerbada, aprovou a toque de caixa, mesmo contrariando a vontade da maciça maioria da população brasileira, alterações legislativas que representam inaceitável retrocesso social.
Notadamente em momento de crise econômica, não se pode pensar em flexibilização desenfreada de direitos trabalhistas, a ponto de se permitir, por exemplo, que trabalhadores e sindicatos enfraquecidos, possam negociar para reduzir o patamar civilizatório mínimo estabelecido na Constituição e nas leis. Não se pode prescindir da intervenção do Estado para regular as relações de trabalho, pois, como advertia com razão o religioso francês Jean Baptiste Henri Dominique Lacordaire (1802-1861), nas relações entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, a liberdade escraviza e a lei liberta.[1]
Oportunas, por sinal, as palavras de Evaristo de Moraes Filho em prefácio a obra de Luiz de Pinho Pedreira da Silva. Para Moraes Filho, alguns princípios especiais do Direito do Trabalho são postos em dúvida pela “[...] crescente onda neoliberalista”. Vaticina, porém: “A verdade é que, enquanto houver contrato de trabalho (subordinado), haverá sempre um Direito do Trabalho protetor e cogente”[2].
Referindo-se ao Direito do Trabalho (e à proteção dele derivada), Chaim Perelman[3] enfatiza:
Quando as relações são econômica e socialmente desiguais, a liberdade conduz à opressão do mais fraco; buscar-se-á protegê-lo com leis imperativas, que limitam o campo de liberdade contratual: passar-se-á do regime de “autonomia da vontade” para a determinação de um estatuto do trabalhador elaborado no século XX por esse ramo essencial do direito social que recebeu o nome de direito do trabalho. Para evitar que uma igualdade de tratamento teórica aplicada a situações desiguais redunde em conseqüências iníquas, uma nova legislação social, visando a proteger o operário e o empregado, o favorecerá, em vários pontos de vista, de modo que se compense a desigualdade real entre os contratantes.
É no sentido de compensar o desequilíbrio de forças (notadamente entre o capital e o trabalho) que o intervencionismo estatal se justifica, não apenas para proteger o trabalhador em geral, cunhado historicamente como hipossuficiente (social e economicamente, é sempre bom lembrar).
Conforme sentenciou Ripert, “[...] a experiência demonstra que a liberdade não basta para assegurar a igualdade, pois os mais fortes depressa se tornam opressores”[4].
Ora, campanhas midiáticas custeadas por dinheiro público, promovidas por quem tem o dever de bem informar a população, mascaram a verdade e desinformam, alardeando que não haverá perdas para os trabalhadores, quando, pelas modificações propostas, elas são inegáveis, não somente para os trabalhadores, mas também para os empresários, pois haverá um empobrecimento da massa salarial e por consequência do poder aquisitivo do brasileiro.
Até a Justiça do Trabalho passou a ser alvo de ataques inconsequentes, falaciosos, que partem especialmente daqueles que, talvez algum dia contrariados em seus interesses pessoais, olvidam que a missão maior desse ramo especializado do judiciário é a de promover a paz social, equacionando conflitos que poderiam gerar tensão e busca de indesejável autotutela.
Alguns chegam a, absurdamente, pregar sua extinção, como se os conflitos trabalhistas, com isso, fossem desaparecer do dia para a noite. Ignoram a história. Lembra, muito bem, Manoel Carlos de Toledo Filho[5]:
Não por acaso, assim, que, no Chile, a supressão da Justiça Laboral, efetuada nos anos do Governo Pinochet, mediante o decreto-lei 3.648 de 1980, sob a justificativa de uma suposta racionalização do sistema, resultou em uma experiência “desastrosa”, que poucos anos durou antes de ser devida e oportunamente revertida através da Lei 18.510 de 1986.
Advirta-se que, nos termos propostos, além de precarizar as relações de trabalho e transformar os trabalhadores em presas fáceis de exploradores, a reforma preconizada geraria instabilidade jurídica, não criaria empregos e aumentaria, ainda, a litigiosidade, abarrotando os tribunais.
Só a verdadeira harmonia entre capital e trabalho, com comunhão de interesses que atenda sim as aspirações de desenvolvimento econômico, mas promova a dignificação do ser humano trabalhador, evita que se retroceda a priscas eras, de derramamento de sangue até, quando a exploração desenfreada não deixava alternativas ao explorado.
Notas
[1] A frase, que se tornou célebre e permanece atual como nunca, é aqui reproduzida sem fonte certa e sem preocupação com a literalidade, mas sintetiza, e bem, o que pode ocorrer se a flexibilização por alguns incessantemente perseguida (inclusive com pretensão – inconstitucional, advirta-se! – de prevalência do negociado sobre o legislado) um dia encontrar amparo do legislador
[2] MORAES FILHO apud SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. Principiologia do Direito do Trabalho. 2. ed., São Paulo: LTr, 1999, p. 6.
[3] PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 221-222.
[4] RIPERT apud SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. 3. ed., São Paulo: LTr, 2000, p. 83.
[5] TOLEDO FILHO, Manoel Carlos. O processo do Trabalho Brasileiro no Século XXI. O autor, Desembargador do TRT da 15ª Região cita DÍAZ, Rodolfo Walter; LANATA FUENZALIDA, Gabriela. Régimen legal del nuevo proceso laboral chileno: estudio de las modificaciones introducidas por las leyes N°s 20.002, 20.023 y 20.087. Santiago: LexisNexis, 2007, p. 12.