SÚMARIO: 1. Do acordo de não-persecução penal. 1.2.Constitucionalidade do acordo de não-persecução penal. 3.3. O acordo de não-persecução penal e a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal .3.4. Quando será possível o acordo de não-persecução penal.3.5. Da impossibilidade do acordo de não-persecução penal.3.6. Da formalização do acordo de não-persecução penal.3.7. O momento da formalização do acordo de não-persecução penal.3.8. Da consequência do descumprimento das condições estipuladas no acordo formalização de não-persecução penal.3.9. Da conclusão e do arquivamento do PIC (procedimento investigatório criminal).3.10. Desarquivamento do PIC (procedimento investigatório criminal).3.11. O acordo de não-persecução penal e o processo de expansão do processo penal.
DO ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL
Nunca entendi por que o legislador brasileiro defende a eternização das lides. Talvez Bernd Schüneman tenha a resposta:
“O ideário do século XIX, de submeter cada caso concreto a um juízo oral completo (audiência de instrução e julgamento), reconhecendo os princípios da publicidade, oralidade e imediação somente é realizável em uma sociedade sumamente integrada, burguesa, na qual o comportamento desviado cumpre quantitativamente somente um papel secundário. Nas sociedades pós-modernas desintegradas, fragmentadas, multiculturais, com sua propagação quantitativamente enorme de comportamentos desviados, não resta outra alternativa que a de chegar-se a uma condenação sem um juízo oral detalhado, nos casos em que o suposto fato se apresente como tão profundamente esclarecido já na etapa da investigação, que nem sequer ao imputado interessa uma repetição da produção da prova em audiência de instrução e julgamento. [1]
CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO DE NÃO- PERSECUÇÃO PENAL
No que diz respeito ao acordo de não-persecução penal, a Resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público nada mais fez do que prever mais um meio de evitar que os processos se prolonguem por anos, impedindo uma atuação jurisdicional célere, o que reforça o sentimento de impunidade vivido pela sociedade moderna brasileira.
Desse modo, nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, é possível que haja acordo de não-persecução penal, desde que obedecidos determinados requisitos previstos expressamente na mencionada resolução.
Ademais, referida norma teve a cautela necessária de prever que tal acordo seja pactuado apenas de forma subsidiária. Ou seja, uma vez cabível algum dos institutos despenalizadores do procedimento dos juizados especiais criminais, deverão estes prevalecer sobre eventual proposta de não-persecução penal.
Sendo assim, o acordo de não-persecução penal possui natureza jurídica semelhante a outros institutos já amplamente consolidados em nosso ordenamento jurídico, a exemplo da transação penal, da suspensão condicional do processo e da colaboração premiada.
É imperioso ressaltar que encontramos doutrinadores que afirmem ser o mencionado acordo inconstitucional em virtude de violar o inciso I do art. 22 da Constituição Federal, segundo o qual é competência privativa da União legislar sobre determinadas matérias, dentre elas o direito penal e o direito processual penal.
Tal argumentação não se sustenta por diversos motivos. Primeiramente porque o próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADC nº 12, fixou a tese de que as normas emanadas do CNJ – e, pela mesma razão, as emanadas do CNMP – são atos normativos primários, ou seja, autônomos, abstratos e subordinados diretamente às normas constitucionais. Dessa forma, referidos atos equivalem a normas federais, de maneira semelhante às Resoluções advindas da Justiça Eleitoral. Vejamos a ementa do julgado:
1. Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. 2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes e ao princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios "estabelecidos" por ela, Carta Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça. 3. Ação julgada procedente para: a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo "direção" nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco; b) declarar a constitucionalidade da Resolução nº 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça.[2]
De forma mais clara, em seu voto, no julgamento dessa ação de controle concentrado, o ministro Marco Aurélio ressaltou ainda que:
“A partir do momento em que a Corte consignou que o ato editado pelo Conselho Nacional de Justiça é um ato normativo abstrato autônomo - isso já está decidido pelo menos neste caso, e deixo para rediscutir a matéria em outro processo -, tendo, portanto, o Conselho a competência legiferante, concluo pela constitucionalidade, sem qualquer acréscimo, sem interpretação conforme.” [3]
Com fulcro no entendimento da nossa Corte Suprema acima colacionado, resta evidente que inexiste qualquer violação ao dispositivo constitucional referente à iniciativa privativa da União para a matéria em tela.
Não bastasse isso, como segundo argumento favorável, devemos atentar para o fato de que a proposta de não-persecução penal, sob uma perspectiva constitucional, é um direito fundamental por força do art. 5º, §2º da Constituição Federal.
Referido dispositivo afirma que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Desse modo, sendo o instituto da proposta de não-persecução penal tema diretamente relacionado ao status libertatis do autor do delito, não resta outra conclusão senão seu reconhecimento como direito fundamental.
Cuida-se, portanto, de direito fundamental do réu, de modo que negar aplicação ao instituto seria, em última análise, negar um direito essencial do acusado e violar considerável gama de outros direitos igualmente fundamentais, como segurança jurídica, devido processo legal e razoável duração do processo.
Como quarto argumento favorável, é possível destacar que, mesmo que não se tratasse de ato normativo primário, o tema desenvolvido pelo Conselho Nacional do Ministério Público por meio de resolução não está diretamente relacionado ao direito processual, mas sim a procedimento anterior à instauração do processo.
Sendo assim, considerando que o acordo de não-persecução penal é anterior ao processo e, portanto, eventuais normas regulamentares desses atos não poderiam ser consideradas como de direito processual e violadoras do inciso I do art. 22 da Constituição Federal.
Ora, o acordo em tela evita a instauração do processo. Desse modo, assim como o inquérito policial, o acordo de não-persecução possui natureza administrativa (pré-processual), não havendo se falar em inconstitucionalidade formal por violação do art. 22 da CF/88.
Percebe-se, assim, que Resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público encontra-se em harmonia com os ditames da justiça restaurativa e com o movimento doutrinário e jurisprudencial da sociedade moderna; compatibiliza-se, ainda, com o movimento de descarcerização, das audiências de custódia – podendo ser aplicado inclusive nesse momento – e com os princípios da economia processual e celeridade.
Temerário, portanto, negar aplicabilidade ao instituto do acordo de não-persecução sob o pretexto de inconstitucionalidade formal sobretudo quando a casa judicial mais elevada do Estado brasileiro reconheceu sua natureza de ato normativo primário e, além disso, cuidar-se de instituto ligado a direito fundamental do acusado.
Importante, por fim, destacar que esse tipo de atuação por parte do membro ministerial não é novidade em nosso ordenamento jurídico, haja vista a existência de institutos como a transação penal, suspensão condicional do processo e não oferecimento de denúncia em razão de acordo de colaboração premiada.
Da mesma forma não se trata de novidade em nível mundial. Nesse tom, países como Estados unidos da América, Bolívia e Alemanha[4] possuem institutos semelhantes com a mesma finalidade de se evitar a promoção da ação penal em prol de solução mais adequada para o caso, tanto do ponto de vista do autor do crime quanto de sua vítima.
Sendo assim, não vemos como negar aplicação ao instituto da não-persecução penal, pois, além de constitucional, encontra-se em perfeita sintonia com a situação nacional da criminalidade e suas possíveis soluções.
No mesmo sentido, defendendo a constitucionalidade do acordo de não persecução penal, o doutrinador Rodrigo Leite Ferreira Cabral, elenca os seguintes argumentos:
a) O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que as resoluções do CNJ (e portanto, também, as do CNMP) ostentam “caráter normativo primário” (STF-ADC 12 MC);
b) a Resolução nº 181/17 busca tão somente aplicar os princípios constitucionais da eficiência (CF, art. 37, caput); da celeridade (CF, art. 5º, LXXVIII) e do acusatório (CF, art. 129, I, VI e VI);
c) a autorização para a celebração do acordo não consubstancia norma de direito processual (cuja competência legislativa é privativa da União – CF, art. 22, I), uma vez que não trata “do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulam os atos destinados a realizar a causa final da jurisdição” (STF - ADI 2.970), já que disciplina questões prévias ao processo penal e externas ao exercício da jurisdição;
d) a nova normativa propõe regulamentar e aplicar diretamente dispositivos constitucionais relacionados à atuação do Ministério Público, inserindo-se, pois, no âmbito da competência normativa do CNMP (CF, art. 130-A, § 2º e seus incisos I e II);
e) o Supremo já reconheceu a constitucionalidade formal de atos normativos em condições muito semelhantes (v.g. STF - ADI 5104 MC), permitindo, inclusive, a regulamentação, por resolução do CNJ, de prazos e condições para a apresentação de presos à audiência de custódia (STF - ADPF 347 MC).
O ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL E A MITIGAÇÃO DO PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL
A doutrina processual penal tradicional defende o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Defendiam Vanini e Cocciardi: “O Ministério Público (a pretor e ainda o Ministério Público) tem a obrigação de proceder, isto é a obrigação de promover e exercitar a ação penal (e de promover a instrução sumária); obrigação, portanto, não é poder discricionário”. [5]
Ensinava Jorge de Figueiredo Dias:[6] “Não há, pois, lugar para qualquer juízo de oportunidade sobre a promoção e a persecução do processo penal, antes esta se apresenta como um dever para o Ministério Público”.
Entendemos de forma divergente, nenhum texto constitucional não traz previsão expressa ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, o que temos como previsão expressa é o princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público, não havendo a mínima possibilidade jurídica do parquet ser obrigado a mover a persecução penal judicial, há uma conveniência justificada pela livre valoração do interesse público.
No mesmo sentido, Mazilli ao comentar o princípio da obrigatoriedade da ação penal, aduz:
“Não se veja aí, porém, um dever cego e automático de agir: o Ministério Público tem liberdade para identificar ou não a hipótese de agir, desde que o faça fundamentadamente”.
E completa:
“Em suma, isso é mera consequência da livre valoração do interesse público pelo parquet: o dever de agir do Ministério Público pressupõe essa valoração da existência ou da persistência do interesse público, seja para propor a ação, seja para nela prosseguir, seja para nela intervir. Com efeito, a instituição deve apreciar a justa causa não só para propor, como para prosseguir na ação, ou para nela ser órgão interveniente”.
Neste contexto, merece destaque a lição de Hely Lopes Meirelles (1983, p. 332-336):
“[...] os membros do Ministério Público atuam com total absoluta liberdade funcional, só submissos à sua consciência e aos seus deveres profissionais, pautados pela Constituição e pelas leis regedoras da Instituição. Nessa liberdade de atuação no seu ofício, é que se expressa a independência funcional.”
Carnelutti, afirmava que "a valoração da conveniência do processo para a tutela do interesse público, à base da qual o Ministério Público resolve acionar, não está vinculada".[7] Neste sentido, a moderna doutrina processual penal defende a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Consoante Emerson Garcia:
“Trata-se de nítida mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. O sistema brasileiro tem autorizado a celebração de acordos, os quais podem redundar na redução das sanções ou, no extremo, na própria concessão do perdão. Esses acordos, em qualquer caso, sempre estão condicionados à apreciação judicial. Vide Lei nº 8.072/1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, arts. 7º e 8º, parágrafo único; Lei nº 9.807/1999, que trata da proteção às testemunhas, arts. 13 e 14; Lei nº 9.034/1995, revogada pela Lei nº 12.850/2013, que dispunha sobre as organizações criminosas (art. 6º); Lei nº 9.080/1995, que incluiu um § 2º no art. 25 da Lei nº 7.492/1986, diploma este que versa sobre os crimes contra o sistema financeiro nacional, e um parágrafo único, de conteúdo idêntico, no art. 16 da Lei nº 8.137/1990, que trata dos crimes contra a ordem tributária; Lei nº 9.613/1998, que versa sobre o combate à lavagem de dinheiro (art. 1º, § 5º); Lei nº 11.343/2006, que dispõe sobre o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes (art. 41). Na sistemática dessas leis não há celebração de verdadeiro acordo, mas, sim, posterior avaliação, pelo juízo competente, da colaboração do réu para a elucidação dos fatos. Foi a Lei nº 12.850/2013, ao dispor sobre as organizações criminosas, que traçou os contornos de um verdadeiro acordo, celebrado por ocasião da colaboração premiada. Ainda merece menção a Medida Provisória nº 2.055/2000, convertida na Lei nº 10.149/2000, que alterou a Lei nº 8.884/1994 e dispôs sobre o acordo de leniência a ser celebrado por autoridades administrativas, nos casos de infração contra a ordem econômica. Esse acordo, mantido pela Lei nº 12.529/2011, que revogou parcialmente a Lei nº 8.884/1994, produz reflexos no plano criminal, acarretando a extinção da punibilidade. Para contornar os possíveis vícios decorrentes da não participação do Ministério Público, dominus litis da ação penal, a Instituição tem sido chamada a firmá-lo em conjunto com o CADE. Nesse ajuste, que se aproxima do acordo de não-persecução penal a que se refere a Resolução CNMP nº 181/2017, a lei, repita-se, a lei, afastou a necessidade de homologação judicial para que o acordo produza efeitos na seara penal. Também não passa pela homologação judicial o acordo de leniência a que se refere o art. 16 da Lei nº 12.846/2013, passível de ser celebrado pelas pessoas jurídicas no plano administrativo e que reduz as sanções a serem aplicadas no plano judicial cível”.