A vedação das penas restritivas aos casos de violência doméstica: críticas a nova súmula 588 do STJ

27/09/2017 às 12:05
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Trata o texto da recente súmula 588 do STJ, que veda a aplicação de penas restritivas de direitos aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

No último dia 15 de setembro, o Superior Tribunal de Justiça editou seis novas súmulas, dentre as quais duas delas se referem à violência doméstica contra a mulher. A de número 589, que, em linhas gerais, veda a aplicação do princípio da insignificância para os crimes e contravenções cometidos em âmbito familiar, foi tema de meu último artigo, disponível aqui no site Jus.

Pois bem, o outro enunciado possui a seguinte redação (súmula 588):

A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Crimes e contravenções em âmbito familiar não podem ser considerados como meros desentendimentos entre o casal. A Lei Maria da Penha foi e é um grande marco para rediscutir a postura do Estado-Juiz para esses fatos, chegando ao ponto de, no artigo 17, afirmar:

Art. 17.  É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

Cesta básica nunca foi uma pena pelo ordenamento jurídico, mas, sim, uma modalidade de pena restritiva de direito de caráter pecuniário. Diante da praxe tão corriqueira de se impor sempre aos fatos enquadrados como violência doméstica o pagamento de cestas básicas, achou por bem o legislador se apropriar do termo, na forma em que a população o conhecia, para claramente afirmar que tais crimes e contravenções não seriam considerados “pouca coisa” para os julgadores, quando da cominação da pena.

Nesse contexto, afastou-se por completo dos casos de violência doméstica o rito e os institutos despenalizadores da lei dos juizados, nos termos do art. 41 da Lei Maria da Penha (embora a lei erroneamente ainda denomine os órgãos julgadores de juizados).

Diante desse quadro, somado a recente súmula aprovada, aos crimes e contravenções em âmbito familiar só resta a imposição de pena privativa de liberdade. Numa primeira análise, parece interessante essa obrigação, mas, na prática, não é. Vejamos:

Na praxe forense constata-se que a maioria dos casos envolvem a prática de dois crimes, isolados ou cumulados, a saber: lesão corporal leve (art.129, §9º do CP) e ameaça (art.147 do CP). Pois bem, o primeiro possui pena mínima de três meses e o segundo de um mês e considerando que os condenados, em sua grande maioria, não possuem maus antecedentes, a pena definitiva fica bem próxima do mínimo legal.

Eis o grande problema da vedação mencionada: como punir alguém por um ou três meses com privação de liberdade? Simplesmente não se pune. O sistema de regime aberto no Brasil virou sinônimo de liberdade e crime/contravenção em âmbito familiar passou a ser um indiferente para a execução penal.

O Estado, que pretendia mudar sua postura no enfrentamento à violência doméstica, com a edição da recente súmula estará dando, na verdade, carta branca ao cometimento de tais condutas, tendo agora o réu a certeza de que nada lhe será imposto, nem mesmo uma pena restritiva de direito. Digo ainda mais, nem no bolso será atingido, porque não terá de pagar prestação pecuniária alguma.

A vítima se dirigiu a delegacia, prestou depoimentos, submeteu-se à perícias, para que, ao fim do processo, conseguisse obter a condenação de seu algoz, mas, infelizmente, tal condenação não terá impacto algum em termos punitivo e socializador.

Atualmente, já prevê o Código Penal as seguintes penas restritivas de direito:

Art. 43. As penas restritivas de direitos são:

I - prestação pecuniária;

II - perda de bens e valores;

III - limitação de fim de semana.

IV - prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas;

V - interdição temporária de direitos;

VI - limitação de fim de semana

A lei penal traz mais opções ao julgador. Diante da inviabilidade de se proceder com o cumprimento de uma pena de privação de liberdade por diminuto tempo, parece mais interessante a adoção de uma dessas penas restritivas.

A própria Lei Maria da Penha alterou a Lei de Execução Penal, em seu artigo 152, para que, nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz também possa determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação, medida essa pouco explorada.

A nova Súmula 588 do STJ, data venia, precisa ser revista. É preciso repensar a punição para os casos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher para além da cominação de penas privativas de liberdade, diante da sua inaplicabilidade prática. Só assim realmente se estará dando guarida aos direitos previstos na Lei Maria da Penha.

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Sobre o autor
Geraldo de Sá Carneiro Neto

Mestre em Perícias Forenses da Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Camaragibe). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2012). Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio de Jesus (2014). Especialista – MBA em gestão do Ministério Público pela Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Benfica). Analista Ministerial da área jurídica do Ministério Público do Estado de Pernambuco, lotado em Promotoria de combate à violência doméstica. Professor de cursos preparatórios de concurso e Palestrante. ex-analista jurídico do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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