A inconstitucionalidade do projeto de lei Escola sem partido

28/09/2017 às 21:54
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O presente artigo tem como finalidade contribuir com o debate sobre o tema : Escola sem partido, título atribuído a um projeto de lei proposto na câmara de vereadores do município de Criciúma/ SC.

    

Na cidade de criciúma, tramita na câmara dos vereadores um projeto de lei chamado Escola sem partido, de autoria do vereador Daniel Freitas (PP). Junto da proposta, consta um rol de 17 motivos que justificam a aprovação da matéria.

O parlamentar afirma que a liberdade de consciência e de crença, assegurada pela constituição no artigo 5°, inciso VI, é desrespeitada por professores que manipulam a realidade em defesa de seus posicionamentos ideológicos e partidários.

Primeiro de tudo, cumpre- nos analisar o que entende- se por realidade manipulável.

Da pequenez de nosso entendimento sobre a realidade, imaginamos que ela seja composta de coisas, ou seja, de objetos físicos, psíquicos, e culturais,..

Vejamos bem: para nós uma montanha é real porque representa uma coisa. Agora imaginemos a montanha na visão de adeptos de uma religião politeísta que afirma que os Deuses habitam aqueles altos lugares: ela já não será apenas uma coisa, mas sim a morada dos deuses. Agora imaginemos a visão que o capitalista possui da montanha quando a compra objetivando explora- la: ela já não é mais uma simples coisa, mas sim relações econômicas. Na visão de um pintor pode- se dizer que a montanha representa cor, formato e estética.

Essas diferentes visões também podem ser atribuídas a todos os outros entes reais existentes na nossa sociedade.

Se entendermos em que resulta essa dinâmica, compreenderemos que uma realidade é entendida como tal porque a ela são atribuídos valores fundamentados em valores reconhecidos por aquele que os formula.

Um argumento que defende existir uma realidade destituída de ideologia é puramente fraudulento em razão de não existir possibilidade para isso.

Quando um agente político propõe um projeto de lei que tem como objetivo selecionar qual tipo de conteúdo é mais relevante a ser lecionado, ele não está simplesmente incorrendo em mudanças no cronograma escolar, ele também está defendendo um posicionamento político e ideológico.

Sócrates (469- 399 A.C.), expoente da filosofia clássica, já dizia que “ não posso ensinar nada a ninguém, só posso faze- los pensar”. Sujeitarem os conteúdos escolares a um juízo de valores puramente dominantes não contribuirá em nada com a formação dos estudantes, mas tão somente com seus embrutecimentos intelectuais.

O educador e filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883/1955), considerado um dos grandes pensadores do século XX, já dizia aos professores que “sempre que ensinares, ensine a duvidares do que estás ensinando”. Oferecer, nas escolas, tão somente conteúdos aceitos pela ideologia dominante constitui- se numa tentativa de retirar das pessoas suas noções de história e de suas próprias identidades de sujeitos transformadores das próprias condições de vida, através de suas interações com a natureza.

Além do projeto de lei, escola sem partido, ser um absurdo, também è inconstitucional porque fere o disposto no artigo 22, inciso XXIV da Constituição de 88 que diz ser de competência exclusiva da União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional.

Um dispositivo de lei municipal que vise a limitar as capacidades docentes de ensinar, divulgar cultura, pensamento, artes, pluralismo de idéias em razão da hipotética contrariedade a convicção moral, ética e política dos pais, vai completamente de contra aos princípios constitucionais que conformam a educação nacional assegurados nos dispostos do artigo 206, incisos II, III, e VI.

Ao julgar a ação direta de inconstitucionalidade proposta contra os artigos 2o a 7 o e anexos da Lei 7.800/2016, chamada de lei da mordaça, do estado de Alagoas, o STF decidiu nos seguintes moldes:

Ações diretas de inconstitucionalidade 5.537/AL e 5.580/AL Relator: Ministro Roberto Barroso Requerentes: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE) Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) Interessados: Governador do Estado de Alagoas Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas CONSTITUCIONAL E EDUCACIONAL. AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 7.800/2016, DE ALAGOAS. PROGRAMA “ESCOLA LIVRE”. LEGITIMIDADE ATIVA DA CONTEE. PROCURAÇÃO ESPECÍFICA. REGULARIZAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. MÉRITO. REGIME JURÍDICO DE SERVIDORES PÚBLICOS E ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO ESTADUAL. INICIATIVA LEGISLATIVA DO GOVERNADOR DO ESTADO (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, ART. 61, § 1 o , II, C E E). PRINCÍPIOS DO ENSINO. RESERVA DE NORMA GERAL DA UNIÃO. CONTRATOS DE PRESTA- ÇÃO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS. DIREITO CIVIL. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO (CR, ART. 22, I E XXIV, E 24, IX). VEDAÇÃO DE CONDUTAS AO CORPO DOCENTE E À ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR. LIMITA- ÇÃO PRÉVIA DE MANIFESTAÇÕES DOCENTES. AFRONTA À LIBERDADE DE ENSINAR, AO PLURALISMO DE IDEIAS E DE CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS E À GESTÃO DEMOCRÁTICA DO ENSINO PÚBLICO (CR, ART. 206, II, III E VI). RESTRIÇÕES DESPROPORCIONAIS E IRRAZOÁVEIS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO DOCENTE. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL, NA ACEPÇÃO SUBSTANTIVA (CR, ART. 5o , LIV).

A competência privativa da união pra legislar sobre diretrizes e bases de educação nacional já foi reconhecida pelo STF em diversos precedentes:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL 9164/95. ESCOLA PÚBLICA ESTADUAL. ENSINO DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA. FORMAÇÃO ESPECÍFICA PARA O EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO. LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. INICIATIVA PARLAMENTAR. VÍCIO FORMAL. INOCORRÊNCIA. 1. Lei de Diretrizes e Bases da Educa- ção Nacional. Iniciativa. Constituição Federal, artigo 22, XXIV. Competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. 2. Legislação estadual. Magistério. Educação artística. Formação específica. Exigência não contida na Lei Federal 9394/96. Questão afeta à legalidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente em parte.12

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AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N. 3.694, DE 8 DE NOVEMBRO DE 2005, QUE REGULAMENTA O § 1 o DO ART. 235 DA LEI ORGÂNICA DO DISTRITO FEDERAL QUANTO À OFERTA DE ENSINO DA LÍNGUA ESPANHOLA AOS ALUNOS DA REDE PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL. AUSÊNCIA DE AFRONTA À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. Competência concorrente entre a União, que define as normas gerais e os entes estaduais e Distrito Federal, que fixam as especificidades, os modos e meios de cumprir o quanto estabelecido no art. 24, inc. IX, da Constituição da República, ou seja, para legislar sobre educação. 2. O art. 22, inc. XXIV, da Constituição da República enfatiza a competência privativa do legislador 12 STF. Plenário. ADI 1.399/SP. Rel.: Min. MAURÍCIO CORRÊA. 3/3/2004, maioria. DJ, 11 jun. 2004. 18 Documento assinado via Token digitalmente por RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS, em 19/10/2016 18:25. Para verificar a assinatura acesse http://www.transparencia.mpf.mp.br/atuacao-funcional/consulta-judicial-e-extrajudicial informando o código 5B78E65D.7574DFCE.8DACC60D.CC9B0DBA PGR Ações diretas de inconstitucionalidade 5.537/AL e 5.580/AL nacional para definir as diretrizes e bases da educação nacional, deixando as singularidades no âmbito de competência dos Estados e do Distrito Federal. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.13

A sociedade precisa compreender que um aluno não é um ser predisposto a absorver, de forma acrítica, qualquer concepção ideológica, política, ética ou de qualquer outra natureza apresentada pelo professor. Incorrer nessa lógica, é uma forma de desprezar a capacidade reflexiva dos alunos.

Esse projeto de lei pressupõe que o aluno é vulnerável e que a absorção do conhecimento se dá através de uma interação hierarquizada dentro da sala de aula, desconsiderando o fato de que, em termos pedagógicos, a rotina estudantil é completamente dialógica e deve haver espaços para que seja estimulado o senso crítico bem como sejam promovidos debates que envolvam questões pessoais, políticas e religiosas, que são temáticas que não existem respostas fechadas ou definitivas.

Considerar o estudante como tabula rasa a ser preenchida unilateralmente com o conteúdo exposto pelo docente é rejeitar a dinâmica própria do processo de aprendizagem.

Referências:

CHAUÍ, MARILENA.  O que é ideologia, 2 edição, Editora Brasiliense, 2008, pg 20.

BOBBIO, NORBERTO. O positivismo jurídico, São Paulo: Ícone, 1995, pg 223.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 24 de setembro de 2017.

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=5537&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em 24 de setembro de 2017.

http://www.clicatribuna.com/noticia/geral/escola-sem-partido-esta-em-discussao-na-camara-de-criciuma-19991. Acessado em 24 de setembro de 2017.

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