Sumário: 1 Introdução - 2 Da validade das provas obtidas em sites de relacionamento: 2.1 Das informações públicas; 2.2 Das informações restritas; 2.3 Das conversas e informações privadas - 3 Teoria da Proporcionalidade 4 Da prova produzida pelo acusado em sites de relacionamento e a garantia de não ser o cidadão obrigado a produzir prova contra si mesmo – Nemo tenetur se detegere - 5 Da validade das provas ilicitamente obtidas por particulares nos sites de relacionamentos (Facebook) - 6 Considerações finais - Referências.
1 INTRODUÇÃO
As transformações no campo da informática e das telecomunicações, nas últimas décadas, foram impressionantemente rápidas. A internet reduziu distâncias e aproximou pessoas, transportando nossa zona de convívio para o ciberespaço. Em redes de relacionamento, situadas na Web, as pessoas passam a se conhecer, trocar informações, se expor, conviver e delinquir. Naturalmente, algumas atividades delitivas e a prova de sua ocorrência ocorrem por meio das atividades realizadas no meio virtual.
O ordenamento jurídico-criminal não poderia estar alheio a essas transformações de hábito. A contraofensiva estatal utiliza a própria tecnologia como instrumento eficaz para a captação de provas da criminalidade. Todavia, a reação não deve ser instintiva, arbitrária e irrefletida, mas ponderada, regulamentada e essencialmente judiciária, com o devido respeito aos direitos e garantias individuais.
Novas formas de criminalidade reforçam a importância de novas fórmulas de intervenção e persecução. Cresce a investigação policial sobre o conteúdo dos sites de relacionamento, na mesma proporção em que a atividade probatória encontra severos limites no direito à intimidade do cidadão, por força das garantias individuais contempladas no direito processual penal.
Quais seriam os limites impostos aos órgãos de persecução penal na busca da prova contida em sites de relacionamento? Seria a intimidade esfera de direito intocável?
Neste estudo também enfrentamos o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare, sob a seguinte perspectiva: quando o investigado posta elemento probatório (foto, texto, vídeo ou áudio) hábil a implementar sua autoincriminação, a utilização processual desse documento não violaria o direito constitucional que lhe garante a não autoincriminação?
Navegando, os internautas compartilham, nos sites de relacionamento, informações de toda sorte. Não raro, as pessoas captam e transmitem provas da ocorrência de um crime à autoridade policial. É valida a prova obtida de forma ilícita por particular e fornecida à autoridade policial?
2 DA VALIDADE DAS PROVAS OBTIDAS EM SITES DE RELACIONAMENTO
Fabrízio Rosa[1] conceitua a internet como “um conjunto de redes de computadores interligados pelo mundo inteiro, que têm em comum um conjunto de protocolos e serviços, possuindo a peculiaridade de funcionar pelo sistema de troca de pacotes”.
A internet é, na verdade, um conjunto de pessoas interligadas por computadores ligados em rede. Nessa Web se proliferam as redes sociais que se caracterizam por abertura e porosidades, possibilitando relacionamentos horizontais e não hierárquicos entre os participantes. Redes não são, portanto, apenas outra forma de estrutura, mas quase uma não estrutura, no sentido de que parte de sua força está na habilidade de se fazer e se desfazer rapidamente.[2]
Há um ponto comum entre os diversos tipos de redes sociais, o compartilhamento de informações, conhecimentos e interesses similares. A intensificação da formação das redes sociais reflete, nesse sentido, um processo de fortalecimento das relações sociais, ao passo que a exposição exacerbada na rede representa patente tendência de abdicação dos usuários aos primados básicos de privacidade.
É inevitável que a atividade investigativa opere na rede, tanto quanto é necessário garantir a privacidade dos usuários. Em qualquer espaço, seja ele virtual ou real, a atividade probatória promovida pelo órgão de acusação não se projeta nem se exterioriza como manifestação de um absolutismo estatal, a persecutio criminis desenvolve-se dentro de limitações impostas pelo ordenamento jurídico. Nesse prisma, a Constituição representa a matriz de legitimação formal e material do processo investigatório e probatório.[3]
A vedação de utilização das provas proibidas afigura-se como a melhor maneira de o legislador prevenir a tentação de obter provas a qualquer preço, por parte das instâncias formais de controle. É como se o legislador anunciasse aos virtuais prevaricadores: “Não sucumbam ao canto da sereia na obtenção das provas a qualquer preço, porquanto isso vos custaria a inutilização absoluta dos meios de prova ilicitamente obtidos, nem sequer podendo repetir essas provas por outros meios”[4].
De forma rígida e intransigente, o artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal brasileira, estatui como garantia fundamental a inadmissão, no processo, das provas obtidas por meio ilícito.[5] Contempla o artigo 157 do Código de Processo Penal que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação às normas constitucionais ou legais”.
As informações contidas em sites de relacionamento expõem, e ao mesmo tempo compõem, a esfera de privacidade do indivíduo. Assim, o ponto de fratura entre a legislação, a doutrina e a jurisprudência surge perante a indagação da existência ou inexistência de uma esfera da intimidade inviolável e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares e, por isso, subtraída a todo o juízo de ponderação de bens ou interesses.[6]
A esfera privada do homem não é homogênea, dividindo-se em esferas progressivamente menores à medida que se torna mais restrita a intimidade, na proporção em que dela participe um número cada vez menor de pessoas.[7]
Os sites de relacionamento criam sua particular divisão das esferas de privacidade, que podem ser facilmente controladas e compreendidas pelos usuários. No Facebook, as informações são trocadas e divulgadas em três grandes planos: 1) Públicas – informações disponibilizadas com carácter irrestrito para todos os usuários da rede; 2) Restritas – quando a publicação da informação se restringe a um grupo de amigos, os quais devem ser previamente aceitos e cadastrados; e 3) Privadas (o Facebook utiliza a expressão “somente eu”) – são espécies de informações que, muito embora estejam na rede, guarnecidas pelo site de relacionamento, destinam-se a acesso exclusivo e pessoal do internauta. Em cada um desses planos o indivíduo expõe sua intimidade com ênfase peculiar, de modo que a prova obtida pelo Estado, no âmbito dessas esferas, contrasta, de forma particular, com o direito à privacidade do investigado. Investigar a legalidade da incursão estatal em cada uma dessas esferas de privacidade nos possibilitará apreciar a própria validade da prova documental obtida nos sites de relacionamento.
2.1 Das informações públicas
Comunicar, interagir e trocar informações na internet é tão importante que o usuário toma como aceitável a perda de grande parcela de sua privacidade.
Em um site de relacionamento, quando uma mensagem ou dado é enviada a vários usuários indeterminados, com sabida faculdade de compartilhamento e sendo de livre acesso a outros destinatários, reveste-se de publicidade a informação veiculada.
O direito à informação, exercido por qualquer cidadão, é personalíssimo, assim como o direito à intimidade, que se constitui no limite de aplicação daquele. A qualquer um, e aí estão incluídos a Autoridade Policial e o Ministério Público, permite-se o acesso à conversa mantida em local público. Não se viola a intimidade ou a vida privada de um cidadão que expõe diálogos ou pensamentos mediante a publicação, ‘aberta’, em um site de relacionamento.
Quando a informação é veiculada, de forma ‘aberta’, na rede, não há razão para se questionar a validade da prova obtida pelos órgãos de persecução penal, isso porque, nessa hipótese, não há privacidade a ser protegida.
Uma das formas de acesso livre e legítimo ao direito de intimidade do investigado seria o consentimento do titular de tal direito, o qual poderá ser tácito ou expresso.[8] Na primeira hipótese – a de consentimento tácito – o mesmo se dá em função do próprio comportamento do seu titular, como no caso de pessoas que se colocam em situações propícias de serem expostas (sites de relacionamento). O consentimento expresso, como a própria denominação explica, dá-se quando o titular do direito autoriza, de forma evidente, a divulgação de fatores específicos da sua intimidade pessoal.
A exposição deflagrada pelo usuário que posta um documento, com livre e ilimitado acesso, num site de relacionamento, coloca a informação fora do âmbito da intimidade em qualquer das suas esferas e, por conseguinte, da respectiva proteção legal.
As informações disponibilizadas publicamente em sites de relacionamento facultam a captura da informação pela Polícia Judiciária, independentemente de ordem judicial. A obtenção e a utilização dessa prova, na órbita processual penal, não macula a intimidade do investigado. Esse é um dos “preços” da desvalorização da privacidade exercida pelo cidadão que acede à promoção do voyeurismo na Web.
2.2 Das informações restritas
Quando os dados publicados em determinados sites de relacionamento ficam alocados na esfera privada, de forma restrita, a um grupo de amigos, a invasão ou obtenção furtiva das informações pelos órgãos de investigação viola o direito à intimidade constitucionalmente instituído. Nesse contexto, no qual são tomadas as precauções normais de intimidade, há uma expectativa subjetiva de privacidade, deixando-o imune à intrusão governamental.[9]
No que tange às informações trocadas ou fornecidas na Internet, a intimidade está sempre relacionada com a confiança depositada no interlocutor. Apenas está em causa o direito à intimidade quando existe uma “confiança quebrada”, pois ninguém confia segredos a estranhos. O Supremo Tribunal Federal, na voz do Ministro Sepúlveda Pertence disciplinou que:
Não é o simples fato de a conversa se passar entre duas pessoas que dá, ao diálogo, a nota de intimidade, a confiabilidade na discrição do interlocutor, a favor da qual, aí sim, caberia invocar o princípio constitucional da inviolabilidade do círculo de intimidade, assim como da vida privada.[10]
O que dizer de um diálogo privado, entabulado entre uma celebridade e um jornalista pertencente à imprensa marrom?[11] É possível que o jornalista resolva expor, à autoridade policial, o diálogo ocorrido na Web, ou mesmo veicular a informação em jornal. Nesse caso, não existiria violação da privacidade. Ademais, sempre foi lícita a gravação clandestina de conversa ocorrida em reunião que, transcorrendo em local público, não tenha conotação secreta ou privada.
A conversa entabulada na Web perde sua completa expectativa de segredo quando a característica dos interlocutores demonstra falta de discrição por parte de um dos participantes do diálogo.
O Supremo Tribunal da Alemanha sintetizou:
[...] A proteção do segredo das telecomunicações não vai além do alcance do segredo determinado pelos participantes e segundo a discrição destes. A garantia constitucional desse segredo não limita qualquer dos participantes na comunicação em seu direito de sozinho decidir se e em qual extensão ele vai manter a comunicação fechada ou irá garantir acesso a ela a um terceiro.[12]
Quando o internauta cria um grupo restrito para troca de informações, a autoridade policial pode vir a alcançar lícito acesso ao grupo, podendo efetuar a obtenção da prova, a qual será valorada no processo penal.
Entabular conversa numa rede de relacionamentos aberta a vasto grupo de amigos pode implicar em abdicação aos primados da intimidade, uma vez que se deve presumir que as informações, naquele momento, são do domínio coletivo e podem ser compartilhadas com sites alheios ao do grupo interlocutor. Diálogos coletivos em sites de relacionamento não implicam em puridade, mas sim em possibilidade de dessegredo.[13]
Realçamos, pois, dois pontos fundamentais na apreciação da existência de privacidade das informações obtidas em um diálogo limitado a grupo restrito de usuário em um site de relacionamento: o número de interlocutores e a confiabilidade deles, elementos que devem ser apreciados, de forma conjugada, no caso concreto.
2.3 Das conversas e informações privadas
É possível que o usuário de determinado site de relacionamento mantenha informações indisponíveis a todos, ou seja, com visualização exclusivamente privada. Pode também, esse internauta, trocar informações confidenciais por meio do envio e do recebimento de mensagens inbox (diálogo oculto, privado e bilateral). Nessas hipóteses, qualquer intromissão estatal, desprovida de ordem judicial ou de autorização do proprietário da informação, constitui, em regra, flagrante violação da privacidade.
Já tivemos a oportunidade de perceber que a natureza do interlocutor pode expressar uma tácita abdicação da privacidade, expondo as informações transmitidas. Entretanto, se identificarmos que as informações estão guarnecidas pelo manto da intimidade do internauta, apenas a competente ordem judicial poderá validar a incursão investigatória para obtenção dessa prova.
Ao interesse comunitário na repressão da criminalidade impõem-se limites. A dignidade humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente é limite imposto à atividade investigatória estatal.[14] Até mesmo a ordem judicial que comina a intrusão na privacidade do investigado deve efetivar cuidadosa ponderação dos interesses conflitantes no jogo processual.
Toda incursão estatal em busca de prova que resida no seio da intimidade do investigado deve observar o ritual contemplado pela lei. Existem previsões legislativas e constitucionais que outorgam ao juiz legitimidade para quebra da privacidade. O magistrado deve esquadrinhar e contrastar os bens jurídicos em conflito, buscando impor, na força do mandato, o limite absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário[15], atento ao rito, à forma e às hipóteses de cabimento contempladas pela lei. Nesse ponto, a intromissão na privacidade do investigado passa a se justificar perante a utilização de um critério de razoabilidade.
A jurisprudência lusitana[16], apreciando a aplicabilidade da proporcionalidade, estabelece uma prevalência de valores baseada na tonalidade ético-normativa dos princípios em contraste, admitindo que a lei possa ressalvar as hipóteses em que poderá haver uma compressão de direitos constitucionais, dentro de uma lógica de razoabilidade, exigida pelo próprio interesse do Estado no funcionamento da justiça penal.
Alexy denomina a máxima da proporcionalidade em sentido estrito como mandado de ponderação[17], a partir do qual se realiza a otimização dos bens constitucionais em conflito. Assim, se um direito fundamental com caráter de princípio entra em colisão com o princípio oposto, a possibilidade jurídica de realização da norma fundamental dependerá da força do princípio oposto.
Uma vez identificada a natureza privada e sigilosa do conteúdo posto no site de relacionamento, pende sobre ele o direito à intimidade, o qual, apenas em hipóteses excepcionais, poderá sofrer a intrusão estatal, ponderada a razoabilidade da incursão. Diante dessa conclusão, devemos dissecar o fundamento do princípio da proporcionalidade e delimitar a sua aplicação na persecução cibernética.[18]