6. ANÁLISE CRÍTICA DA SÚMULA 581, DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Neste último capítulo passa-se a fazer a análise crítica e, sobretudo, teleológica da Súmula 581, do Superior Tribunal de Justiça. Referida súmula causa ao empresário, que busca com o instituto da Recuperação Judicial, uma forma legal de superar o estado de crise, mediante a renegociação de todos os passivos abrangidos pela recuperação judicial, mas na maioria das vezes comprometido com garantias pessoais dadas em favor da pessoa jurídica, uma total incongruência e distanciamento da verdadeira recuperação judicial.
Muito embora este devedor tenha obtido êxito na aprovação do plano de recuperação judicial pela Assembleia Geral de Credores, para honrar seu passivo de modo mais vantajoso, o mesmo permanece sofrendo ações contra si ou terceiros coobrigados pelos valores originais da dívida, sem os benefícios da recuperação judicial.
Consabido que a recuperação judicial “tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (art. 47 da Lei nº 11.101/05). Quando concedida, abrange todos os créditos, ainda que não vencidos, existentes na data em que feito o respectivo pedido (art. 49, caput), ressalvadas as exceções legalmente estatuídas.
E, como referido, o respectivo plano, aprovado e homologado judicialmente, implicará na novação dos créditos anteriores ao pedido, novação esta que fica sob a condição resolutiva do descumprimento do plano, caso em que deixará de ter efeito, restabelecendo-se as obrigações originárias (art. 59, caput).
Todavia, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que a novação decorrente da recuperação judicial não gera os mesmos efeitos da novação prevista no Código Civil, a qual, como regra, extingue as obrigações acessórias (art. 364[21]). No campo da recuperação judicial, os credores do devedor conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, cujas obrigações, em regra, não se sujeitam ao plano.
O presente tema foi chancelado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso especial representativo de controvérsia, que assim ementou:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO E CONCESSÃO. GARANTIAS PRESTADAS POR TERCEIROS. MANUTENÇÃO. SUSPENSÃO OU EXTINÇÃO DE AÇÕES AJUIZADAS CONTRA DEVEDORES SOLIDÁRIOS E COOBRIGADOS EM GERAL. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 6º, CAPUT , 49, § 1º, 52, INCISO III, E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005". 2. Recurso especial não provido.[22]
Do voto, faz-se necessário, para a devida compreensão da interpretação dada pela Corte Superior, a transcrição da seguinte passagem:
“[...]
Portanto, muito embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral.
[...]
4. Ambas as Turmas de Direito Privado têm entendimento uniforme acerca do tema, seja na primeira fase da recuperação - processamento -, seja na segunda - concessão da recuperação depois de aprovado o plano.
Nos dois casos, entende-se ser descabida a suspensão das ações, em razão do processamento da recuperação, ou extinção, por força da alegada novação operada pelo plano, verbis:
[...]
A título de exemplo, na mesma linha são as seguintes decisões monocráticas: AREsp 569.220/SP, Relator Min. Ricardo Villas BôasCueva e AREsp 280.395/SP, Relator Min. Marco Buzzi.
Ressalte-se, por oportuno, que o entendimento abraçado de forma unânime nas Turmas de Direito Privado vale para todas as formas de garantia prestadas por terceiro, sejam elas cambiais, reais ou fidejussórias.
No que se refere ao aval, que é o caso ora em exame, a conclusão é reforçada tendo em vista a natureza da obrigação. Sabe-se que o aval - diferentemente da fiança, por exemplo - é obrigação cambiária que não guarda relação de dependência estrita com a obrigação principal assumida pelo avalizado, subsistindo até mesmo quando a última for nula, conforme o magistério de abalizada doutrina:
O aval é obrigação formal, independente e autônoma, surgindo com a simples aposição da assinatura ao título, tornando inadmissível ao avalista arguir falta de causa, opondo defesa de natureza pessoal, só admissível ao aceitante.
[...]
Portanto, dada a autonomia da obrigação resultante do aval, com mais razão o credor pode perseguir seu crédito contra o avalista, independentemente de o devedor avalizado se encontrar em recuperação judicial.
Em se tratando de aval, a jurisprudência segue também esse exato entendimento: v.g. AgRg no REsp 1.334.284/MT, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/09/2014, DJe 15/09/2014/; AgRg na MC 20.103/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 21/08/2014, DJe 08/09/2014; AgRg no AREsp 276.695/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/02/2014, DJe 28/02/2014; AgRg no AREsp 96.501/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/08/2013, DJe 20/08/2013; AgRg no AREsp 133.109/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 18/02/2013.
Portanto, para efeito do art. 543-C do CPC, encaminho a seguinte tese:
A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005.
A partir deste julgamento, que unificou o entendimento já predominante da Segunda Seção, do Superior Tribunal de Justiça, sobreveio recentemente a Súmula 581, que tomou a seguinte redação:
A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.
Salvo melhor juízo, há um lamentável equívoco na decisão consolidada no Egrégio Tribunal de Justiça, tendo em vista que o garantidor de uma operação financeira tomada pela devedora principal não terá qualquer benefício eventualmente obtido na Recuperação Judicial.
Muito embora a clareza dos dispositivos que tratam do assunto e exaustivamente referidos neste artigo, o tema foi reiteradamente levado aos tribunais pátrios, já que inicialmente foi demais invocada a novação espelhada na legislação civil, quando então a jurisprudência e a doutrina - já citada neste artigo - tratou de dar interpretação diversa para a novação da recuperação judicial e da lei civil, o que é uma incongruência.
A Súmula 581, publicada pelo STJ, ao ratificar a tese firmada no REsp. 1.333.349, conferiu segurança jurídica e econômica aos bancos, notadamente para a concessão dos empréstimos financeiros às sociedades empresárias.
Referida súmula garante às instituições financeiras o direito de perseguir a satisfação do crédito junto aos avalistas dos títulos emitidos pela empresa, independentemente da concessão da recuperação judicial ou da aprovação do plano de recuperação judicial, e, o que é mais espantoso, pelo valor do crédito original, como que se todo o processo de Recuperação Judicial não tivesse existido.
A doutrina, por sua vez, faz severas críticas à lei e, sobretudo, ao posicionamento assumido pelos tribunais. Sobre o tema João Pedro Scalzilli:
Explica-se: se por um lado é possível argumentar que as garantias cumprem justamente a função de garantir o credor em face do inadimplemento do devedor; por outro não se pode falar em inadimplemento, pois a obrigação original foi extinta. E como adveio nova obrigação em função da ‘novação concursal’, não seria possível admitir que o garantidor tenha se obrigado além do montante que se obrigou o devedor principal.
Finalmente, mantendo-se intacta a posição adotada pelo STJ, corre-se o risco de arruinar o próprio instituto da recuperação judicial, pois uma vez pago crédito garantido pelo coobrigado ou pelo garantidor, exsurgiria para esse direito de regresso contra a recuperanda, anulando todo o benefício alcançado com a aprovação do plano (abatimento, entre outros). Haveria simples postergação do pagamento.
O efeito final seria o enfraquecimento da própria recuperação judicial como opção efetiva para saneamento da crise empresarial, soçobrando todo o sistema. Portanto, por uma questão de interpretação lógico-sistemica da LFRE, a única opção que contempla o princípio da preservação da empresa seria aquela que estende os efeitos da novação aos coobrigados e garantidores.”[23]
Com efeito, não há lógica na legislação vigente e, sobretudo, na interpretação dada pela Súmula 581, pois trata de forma diversa uma única situação, ou seja, por um lado o credor se submete aos efeitos da recuperação judicial no que diz respeito ao devedor principal, no entanto, faz uma via única e livre de todos os preceitos do plano da recuperação judicial no que diz respeito aos garantidores da operação, sobretudo aos coobrigados.
Esta sistemática da lei de Recuperação Judicial traz à lembrança a contradição da Lei de Locações. No caso de locação de imóvel, o fiador não possui a proteção legal da Lei 8009/90, podendo o locador executar e levar à praça o único imóvel do fiador, sendo este um dos casos de exceção ao chamado bem de família.
Todavia, o mesmo não ocorre com o locatário, que pode invocar a Lei 8009/90 para defender o seu único imóvel que serve de moradia para si e sua família. Ou seja, a lei protege o imóvel do devedor de locativos, mas é dura e cruel com o imóvel do fiador.
No caso em tela, a lei de Recuperação Judicial dá todas as chances para o empresário e a empresa buscarem uma forma de renegociar seus passivos e, não raras vezes, alongar o perfil das dívidas, com significativos deságios e carências, mas ao coobrigado nada beneficia, pois a garantia prestada fica hígida e integralmente exigível pelo credor.
Em sentido contrário há quem defenda que muitos contratos firmados entre os tomadores do crédito e os seus credores têm a figura das garantias como mecanismo de viabilidade na celebração, pois o risco do negócio faz com que a empresa devedora necessite de outrem para garantir o valor tomado. E, caso o credor não possa cobrar no momento da recuperação judicial do garantidor o cumprimento da dívida, melhor seria não haver contratado com o devedor, pois de nada valeu a garantia para salvaguardar a negociação.[24]
Sucede, todavia, que na grande maioria das vezes o garantidor destas operações é o próprio empresário ou sócio, através da sua pessoa física, que além de estar sob pressão com todos os contratempos e desgastes inerentes a um processo de recuperação judicial e, muito embora tenha obtido êxito na aprovação do plano, de nada irá se beneficiar em relação a sua pessoa física, que seguira sofrendo a cobrança do valor original do crédito que restou novado pela aprovação do plano de recuperação judicial.
Para abalizar este entendimento, é importante se socorrer do ilustre Manoel Justino Bezerra Filho, que lecionou que:
No entanto, nesse caso, estaria frustrado o próprio espírito da Lei, que pretende dar oportunidade de recuperação ao devedor em crise. É que, embora o devedor fizesse um acordo com seu credor para pagar um valor em condições mais favoráveis (no caso, em valor menor do que o original), ainda assim viria a responder, em regresso, pelo abatimento que teria conseguido com o credor. Com certeza, em tal situação, não estaria sendo atendida a finalidade da Lei, pois haveria apenas simples postergação do pagamento, tornando-se inócuo qualquer acordo que fosse feito entre devedor em crise e credor. Em consequência, a sociedade empresária estaria desestimulada de se socorrer da recuperação judicial que a Lei lhe oferece.[25]
A observação feita pelo ilustre doutrinador é conclusiva em si, ou seja, eventualmente aprovado o plano de recuperação judicial em melhores condições que a dívida originária, como ocorre constantemente, e tendo o garantidor pago o valor integral da dívida que estava obrigado, certamente irá ingressar com uma ação de regresso contra o devedor principal pelo valor que efetivamente é devido, o que retiraria todo o benefício alcançado pela recuperação judicial, em evidente frustração da lei.
Diante do que ficou exposto, este assunto deverá ter maior e melhor debate nos tribunais, com uma nova visão, não se podendo admitir a imutabilidade da Súmula 581, do STJ, sob pena de frustrar o próprio espírito da Lei de Recuperação Judicial, que trouxe ao empresário, à empresa e a própria sociedade, grandes avanços para possibilitar a manutenção da empresa, tendo em vista seu caráter social, visando manter a atividade produtiva, a geração de lucros, o pagamento de impostos e geração de empregos.