1. Introdução
A partir da descrição de elementos históricos componentes dos três paradigmas constitucionais modernos, tanto no Brasil como na Europa de uma forma ampla, far-se-á uma análise dos conceitos de cidadania e inclusão jurídico-social em cada um deles, sobretudo o de Estado Social de Direito.
Por meio da confrontação qualitativa de uma bibliografia voltada a pensar o problema do Estado Democrático de Direito e suas respectivas exigências de concretização normativa, será demonstrado como a mediação de conflitos como mecanismo extrajudicial de resolução de litígios pode fortalecer o sentimento de redes de sociabilidade e participação na luta por direitos.
1.1 Paradigmas Constitucionais do Estado Moderno - Uma breve descrição
O Direito moderno caracteriza-se por um aumento de complexidade social e autodiferenciação funcional no interior dos sistemas sociais. De forma distinta à tradição clássica e medieval em que havia diferentes ordens jurídicas regulando normativamente cada estrato de uma sociedade de Antigo Regime profundamente marcada pela exclusão e rigidez nas estruturas sociais, determinadas pela condição de nascimento, o Direito moderno é, sobretudo, um direito posto, positivado.
A partir de então, direitos subjetivos são garantidos a indivíduos cujas normas regulatórias se caracterizam por serem abstratas e generalizadas, dotadas de oponibilidade erga omnes, sem qualquer espécie de distinção formal entre os indivíduos que estão tutelados sob uma determinada jurisdição estatal.
Neste movimento da modernidade, influenciada pelas ideias do Liberalismo clássico, predominante às formas de visão de mundo da época, em que os conceitos de indivíduo, sujeito de direito, sistemas sociais diferenciados e não mais regulados pela religião, sociedade industrial, alto grau de divisão social do trabalho, dentre muitos outros que compõe o arcabouço semântico do mundo moderno, um movimento constitucionalista revolucionário de caráter burguês no final do século XVIII modificou toda a forma de concepção ontológica do ser no mundo.
Pode-se mesmo afirmar, seguindo as formulações de Niklas Luhmann, que o advento do Constitucionalismo de matriz norte-americana marca o nascimento das Constituições formais/escritas, elemento delineador do que hodiernamente se entende por supremacia da Constituição em face aos demais atos normativos.
Pois bem, assentado o pano de fundo que compõe nossa consciência histórica, vale ainda notar que, seguindo as formulações tanto de Habermas, como de Menelick de Carvalho Neto e Cristiano Paixão, a modernidade pode ser caracterizada por três paradigmas constitucionais ou “ondas de direitos” que se superam e entrelaçam reciprocamente ao longo da história, para além de um único paradigma metafísico-tradicional típico das sociedades pré-modernas.
Vale ressaltar, o conceito de paradigma, como salienta Menelick de Carvalho Neto e Guilherme Scotti, é uma noção advinda da filosofia da ciência por meio de Thomas Kuhn, autor vinculado à hermenêutica filosófica. Em sua principal obra, A Estrutura das Revoluções Científicas, a tese central defendida é de que o conhecimento não progride evolutivamente, de forma pacífica, mas por saltos, rupturas, mudanças de paradigmas.
Sendo estes paradigmas espécies de filtros socioculturais condicionados pela linguagem, eles determinam a forma como concebemos a realidade em determinados contextos temporais e espaciais. O primeiro influxo paradigmático do constitucionalismo é o liberal, em que direitos em garantias individuais são afirmados e positivados. A concepção de Estado era voltada, sobretudo, a uma ideia de estado mínimo frente ao mercado e a individualidade das pessoas, cujas prerrogativas eram a de apenas assegurar direitos civis sem interferir nestes domínios.
Este primeiro paradigma trouxe significativos ganhos sociais, tais como a constitucionalização e, sobretudo, a elevação ao nível de direito fundamental, valores como a vida, liberdade e propriedade privada. Contudo, a semântica do conceito de liberdade versa acerca de uma liberdade estritamente formal, em que todos são iguais, mas iguais perante a lei, não materialmente.
Esta primeira geração de direitos se caracteriza por ser essencialmente à dos direitos civis. Direitos políticos, possibilidade de votar e ser votado, eram exclusividade apenas de uma pequena parcela das sociedades do período. Apenas quem detinha determinada quantidade de renda poderia participar da sociedade política. O paradigma liberal é marcado por uma supervalorização do privado em detrimento do público.
Este último só adquiriu primazia após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), quando o Estado Liberal tem sua queda após um dos períodos de maior exploração do homem pelo homem até então conhecido na história da humanidade, tal como analisado por Eric Hobsbawn. A ascensão do Estado de Bem Estar Social, assim como da sociedade de massas do século XX, contribuíram para que o domínio do Estado se expandisse e se enraizasse em todas as esferas da vida humana.
A partir daquele momento, cabia a uma cabeça política detentora de soberania regulamentar a vida socioeconômica e definir a unidade política da nação. Segundo afirma Menelick de Carvalho Neto, o paradigma do Estado Social teve com uma de suas principais características o retorno do princípio monárquico típico da formação da Teoria Geral do Estado alemã do século XIX, cujos principais exponenciais teóricos são Paul Jellinek e Georg Laband, em que cabia ao chefe do Executivo ou às instituições por ele delegadas, a prerrogativa de formação da vontade comum.
Para além destes caracteres, o paradigma constitucional do Estado Social, após sucessivas reinvindicações e crise de um modelo formal, mantêm a formalidade, mas também passa a garantir liberdade e igualdade em sentido material. Cabe ao Estado subsidiar diferenças sociais e suprir a população com meio que as permitam perseguir um ideal de vida boa.
Há uma enorme reinvindicação social para que Estados e governos fortes garantam benefícios sociais e, em última instância, acabe por tutelar a própria cidadania. Este paradigma social é, sobretudo, um domínio dos direitos políticos, em que o sufrágio se universaliza e todos podem votar e serem votados, independente de renda.
É a própria realização normativa da democracia representativa que se instaura nas Constituições de forma, para utilizar-me da expressão de Karl Loewenstein, nominal e, à duras penas, sob um processo de aprendizagem constante dos atores sociais, normativa.
Direitos civis são ressignificados e direitos políticos são adquiridos por todos. O conceito de cidadania se expande, há uma maior inclusão jurídica. Contudo, apesar dos avanços em direitos, alguns retrocessos ocorreram e trouxeram drásticos prejuízos sociais, tais como uma excessiva concentração de poder nas mãos dos chefes de Estado e uma sobrevalorização da res pública em detrimento da esfera privada que desembocaram de alguma forma em regimes totalitários, tais como o nacional-socialismo na Alemanha, a Itália fascista, Espanha franquista, Portugal salazarista, dentre outros.
É como uma crítica aos abusos totalitários do poder no modelo de Estado Social sobre o indivíduo e ao paternalismo que este promoveu, para além de outras motivações, tal como uma excessiva valorização da coisa pública em detrimento de liberdades privadas que surge o terceiro paradigma constitucional, o do Estado Democrático de Direito.
Entretanto, vale ponderar, a esfera pública do Estado de bem estar social está exclusivamente associada ao Estatal. Pensar em esfera pública neste momento é pensar nos órgãos máximos de Estado. A jurisdição constitucional, neste momento, e, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), já sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, encontra-se diante da necessidade de fazer valer as pretensões a direitos fundamentais.
É contra essa supremacia do “pai judiciário” e demais poderes estatais, sobretudo o Executivo, dessa privatização do público por agentes privados do Estado que surge a crítica específica do Estado Social. Sendo assim, este modelo chega, nas palavras de Marco Aurélio Marrafon “a ser uma apropriação individualista, baseada na ideia de direito subjetivo, dos direitos sociais.”
Portanto, a despeito das inúmeras realizações materiais realizadas pelo paradigma constitucional do Estado Social nas sociedades, este modelo de organização política, jurídica e econômica da vida social acabou por desqualificar a cidadania. Retirou o direito de participação ativa das pessoas, de suas respectivas capacidades e responsabilidades de postular direitos em uma esfera pública plural, assentada em um modelo procedimental-democrático.
Neste sentido, após a Segunda Guerra Mundial, como supracitado, um novo paradigma constitucional emerge, ou seja, o Estado Democrático de Direito, cujas características principais se norteiam na ideia de que direitos difusos sejam levados em consideração, de forma a não eliminar nem elementos do Estado Liberal assim como do Social, ambos são equiprimordiais e cooriginários, tais como a dimensão pública e privada da vida social. Não se deve valorizar um em detrimento do outro.
Cabe à sociedade civil zelar ativamente pela eficácia de seus direitos perante o Estado e seus arranjos institucionais para que não haja uma privatização das decisões de caráter público por uma pequena “classe” privatizada.
Sendo assim, faz-se necessário uma mudança cultural de entendimento de que todos os atores sociais destinatários de normas em uma dada jurisdição constitucional são capazes de interpretar o ordenamento jurídico com base em uma constante tensão entre princípios aplicáveis a regras em casos únicos e irrepetíveis. Devemos ser uma sociedade “aberta” de intérpretes da Constituição, de acordo com o termo cunhado por Peter Harbele, para que haja uma verdadeira vivência constitucional. Há vida constitucional fora das Cortes. Constitucionalismo é vivencia e prática ativa cidadã (re) inventada nas formas sociais cotidianas.
Antes de problematizarmos uma possível solução de realização normativa e democrática-participativa em relação à expectativas normativo-constitucionais de inclusão jurídica e de autopromoção de cidadania nas nossas sociedades globais hipercomplexas, ainda muito marcada por uma noção passiva de cidadania, faz-se necessário traçar de forma breve como se produziu historicamente a cidadania no Brasil e quais são seus desafios atuais frente a um contexto transconstitucional, em que problemas jurídico-políticos se apresentam ao mesmo tempo em distintas ordens jurídicas.
1.2 A trajetória histórica da cidadania no Brasil: um breve panorama da luta por direitos
O exercício e titularidade de direitos no Brasil por parte da população é permeado por percursos e historicidades complexas. De forma distinta ao modelo lógico e cronológico das “ondas de direitos” supracitada, baseado em um modelo teórico de T.A Marshall e, embora de forma um pouco distinta, de Habermas, José Murilo de Carvalho afirma, a partir de uma análise histórica do Brasil, que a sequência de direitos civis-políticos-sociais inglesa foi invertida no nosso país. Por consequência, cidadania e democracia no Brasil possui outra semântica.
Em um país assolado por profundas desigualdades sociais como o nosso, marcado por práticas históricas de exclusão e arbitrariedades político-jurídicas, tais como escravidão indígena e negra, golpes contra ordens constitucionais e governos de cunho ditatorial, a cidadania se viu comprometida em face de Executivos fortes e, atualmente, no pós-ditadura militar (1964-1985), um Judiciário que cada vez mais adota um discurso e prática de supremacia, ditando o “verdadeiro” sentido da Constituição, refletindo uma postura paternalista que compromete justamente aquilo que se quer proteger: a cidadania.
Destarte, José Murilo de Carvalho afirma que “aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular” (CARVALHO, p.219, 2012). Em seguida, em um período de ditadura militar, em que o Legislativo foi três vezes fechado, houve a maior expansão do direito ao voto até então no país.
Por fim, o autor encerra sua análise que ainda hoje, muitos direitos civis, tais como o amplo acesso à justiça e a garantia do devido processo legal, por exemplo, ainda não foram adquiridos por todos os brasileiros, sobretudo por aqueles mais desvalidos socioeconomicamente.
É sob este prisma internacional e nacional das distintas trajetórias histórico-institucionais que se pode afirmar, de forma breve e cautelosa que, embora se tenha produzido variados modelos e “qualidades” de cidadania, há no geral uma forte tendência de centralização da vida político-constitucional por parte dos órgãos de Estado, sobretudo no Brasil.
Postula-se aqui a tese de que para haver uma cidadania ativa e inclusiva, em que a própria sociedade reivindique seus próprios direitos sem intromissões paternalistas da jurisdição constitucional, hoje em crise pelo excesso de demandas, sejam imaginados e postos em prática arranjos institucionais voltados para a compreensão de que toda sociedade é hermeneuta do processo constitucional, não só as Cortes, Tribunais ou o Parlamento, como defende Jeremy Waldron.
Neste sentido, analisar-se-á a seguir de que forma instrumentos extrajudiciais de acesso à justiça, sobretudo a Mediação de conflitos, podem ser mecanismos de construção democrática centrados na participação ativa necessária a uma mudança cultural no nosso conceito de cidadania que promova uma verdadeira inclusão jurídica generalizada.
2. A mediação comunitária de conflitos como um instrumento de participação ativa no processo democrático: relato de algumas experiências brasileiras e norte-americanas
A mediação de conflitos é um dos métodos alternativos de resolução de litígios ou “alternative dispute resolution” – ADR surgido e, sobretudo, sistematizado nos Estados Unidos na segunda metade do século XX, haja vista que como prática não institucionalizada existe desde a Antiguidade.
Outros instrumentos, tais como a arbitragem e a conciliação, são mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos, de solução de contenciosos que não necessariamente estão tutelados à jurisdição constitucional do Estado ou de Cortes internacionais de justiça.
A escolha pela mediação se deu em virtude de seu procedimento específico de resolução de conflitos, centrado exclusivamente em um embate dialógico entre as partes. O mediador serve apenas como um terceiro neutro escolhido pelos envolvidos no problema a ser resolvido, que tem como objetivo precípuo conduzir a reconstituição da paz social entre os próprios litigantes.
Frente a um cenário global de inchaço de demandas postuladas no poder judiciário e, sobretudo, em países periféricos como o Brasil em que o acesso à justiça formal é limitado a grande parcela da população, faz-se necessária e urgente a utilização da mediação, pois ela é caracterizada como sendo um mecanismo célere, eficaz, pouco oneroso, inclusivo e estimulante de uma cidadania participativa em que as próprias pessoas se sintam responsáveis pela resolução de seus respectivos problemas.
Sendo assim, é possível afirmar que a mediação de conflitos, cada vez mais, na atual sociedade globalizada, espraia-se para outras realidades político-jurídicas. De início e ainda hoje muito utilizada nos EUA, a mediação expandiu-se para a Europa para resolver conflitos, principalmente, mas não somente, àqueles vinculados ao âmbito comercial.
Um exemplo de prática brasileira extrajudicial de acesso ao direito pela população sem acesso à justiça formal são as mediações comunitárias realizadas em comunidades carentes. O trabalho de mediação comunitária no bairro Alto da Cruz de Ouro Preto-MG, realizado pelo Centro de Mediação e Cidadania vinculado ao Departamento de Direito da UFOP é um exemplo de possibilidade de mesmo aqueles invisíveis socialmente resolverem seus próprios conflitos de maneira democrática e participativa, sem necessidade de judicializar suas questões.
Portanto, como alternativa a um modelo de cidadania historicamente vinculado a um Estado personalista, centralizador e produtor de clientes ao invés de cidadãos, a mediação de conflitos surge como uma solução pautada pelo consenso mútuo construído por intermédio de uma ética do discurso centrada nas próprias partes, em que é desenvolvido um sentimento de comunidade e respeito pelas múltiplas alteridades sociais.