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O âmbito de proteção constitucional à liberdade religiosa

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5.      A Discriminação Religiosa no Ordenamento Jurídico Brasileiro

A Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995, que busca coibir a prática discriminatória no âmbito da relação de emprego, se omitiu de forma lamentável ao não incluir a identidade religiosa como eventual motivo de discriminação.

O seu art. 1º refere-se ao sexo, à origem, à raça, à cor, ao estado civil, à situação familiar ou idade, mas menção alguma faz à religião, conquanto o termo “origem” pudesse ter o seu sentido eventualmente alargado para identificar a matriz religiosa do trabalhador, numa interpretação ampliativa que não violaria o sentido teleológico da norma. Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência já sugerira, em diversas ocasiões, que esta lista não é exaustiva, mas meramente exemplificativa.

Obviamente não seria a mera inexistência de dispositivo infraconstitucional que tipificasse a ilicitude de tal discriminação que significaria a autorização da prática na relação de emprego de discriminação fundada na orientação religiosa, especialmente diante do princípio geral de não discriminação proclamado pelo texto constitucional.

Como afirma Santos Junior, é bem verdade que, como o Brasil ratificou a Convenção nº 11, sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão, adotada em 25 de junho de 1958 pela Organização Internacional do Trabalho, o prejuízo causado pela omissão do legislador é reduzido:

A referida convenção não deixa de fora o motivo religioso. Mas a convenção, como sói ocorrer com documentos dessa natureza, proclama a não discriminação em linhas gerais, não descendo a maiores detalhes, demandando, para ser colocado em prática, que o direito interno dos países aderentes normatize o assunto[35].

Assim, a questão da discriminação religiosa no ambiente de trabalho ressente-se de um tratamento mais atencioso do legislador, que ao se eximir de uma ponderação preliminar dos interesses em jogo deixou ao completo alvedrio da jurisprudência a fixação dos critérios que devem ser considerados importantes para a justificação racional de um tratamento diferenciado.


6.      Critérios Objetivos para a Justificação do Tratamento Diferenciado

É possível vislumbrar situações em que o conflito entre a liberdade religiosa e a autonomia privada deve solver-se em favor desta, especialmente quando o fundamento para a discriminação se assenta na atividade profissional ou no serviço contratado, ou, ainda, com a natureza do empregador ou da atividade econômica por ele desenvolvida.

A noção de que a natureza da atividade profissional ou do serviço pode demandar um tratamento diferenciado é corrente na doutrina, sobretudo porque, em certa medida, a exigência de qualificação física, psicológica ou técnica para o exercício de diversas profissões, sobretudo as legalmente regulamentadas, já impõe a necessidade de diferenciação de tratamento entre trabalhadores[36].

Um exemplo disso é aquele no qual a situação individual do trabalhador tem que gerar uma discriminação em razão da sua impossibilidade de executar a tarefa em que deveria atuar. O exemplo de um deficiente visual que é impedido pelo poder diretivo do empregador de atuar na condução de veículos é evidente.

Alguns serviços exigem qualificação religiosa.

Por exemplo, não é raro que um hospital, uma universidade privada ou uma empresa com um grande número de funcionários empregue capelães (católicos ou espíritas ou de outra religião) para que prestem assistência espiritual à comunidade dos empregados, eventualmente disponibilizando tal serviço à sua clientela (estudantes, pacientes e funcionários etc.).

Neste caso, é perfeitamente razoável que a contratação recaia sobre profissionais qualificados por suas crenças ou por sua formação teológica relacionadas com um específico segmento religioso. Não se pode ver nisso uma discriminação ilegítima; afinal, como poderia um ateu desempenhar satisfatoriamente a tarefa de oferecer conforto espiritual a membros de determinado segmento religioso?

De um modo geral, quando o que está em discussão é a admissão do trabalhador ao empregado não há grandes discussões quanto à possibilidade de discriminar com fundamento na crença religiosa: como ocorre com qualquer profissão cujo exercício requeira uma habilitação técnica específica, também o profissional religioso precisa demonstrar uma qualificação desta natureza.

A questão se torna mais complexa se, durante o curso do contrato de trabalho, um profissional contratado com base em uma qualificação ideológica abandona as convicções religiosas que foram determinantes para a sua contratação, perdendo a fé ou mudando de religião: trata-se de um caso autorizador de justa causa? Na opinião de Santos Junior:

Em uma primeira análise, não parece que o exercício da liberdade de consciência, por si só, possa permitir a configuração da justa causa. Mas tampouco a decisão do empregador de dispensar o empregado poderá dar margem à interpretação de que a rescisão contratual configura uma condita discriminatória (ou mesma arbitrária), daí por que não deve ensejar dano moral algum a ser reparado[37].

Mais tormentoso que a utilização do critério da natureza da atividade profissional para afastar a caracterização da discriminação é o recurso ao critério da atividade empresarial ou da natureza do empregador.

Alguns empregadores, por integrarem a categoria de organizações de tendências religiosas (organizações religiosas, organizações confessionais e organizações empresarias com fins predominantemente ideológico-religiosos) podem interferir na liberdade religiosa e de expressão de seus empregados numa maior medida que os empregadores desprovidos de vinculações religiosas evidentes, uma tendência inclusive reconhecida em outros países, como nos Estados Unidos da América.

Por outro lado, é admissível, em casos mais extremos, que a atividade econômica de uma empresa justifique a recusa à contratação de trabalhadores religiosos (ou, pelo menos, de trabalhadores integrantes de certos estratos religiosos), como no caso de um centro de homotransfusão que não queira contratar Testemunhas de Jeová (segmento religioso que, sabidamente, se opõe à prática de transfusão de sangue).

Não há duvidas, portanto, de que a natureza do empregador ou da atividade empresarial também pode justificar algumas restrições ao exercício da liberdade religiosa do trabalhador. São as circunstâncias do caso concreto – sempre elas – é que devem dizer quando o empregador, por sua própria natureza ou em virtude de sua atividade empresarial, poderá restringir a liberdade religiosa do trabalhador numa medida que em circunstâncias normais não seria tolerável pelo ordenamento jurídico[38].


7.      Discriminação Religiosa na Relação Trabalhista

Na fase pré-contratual normalmente abarca todas as etapas que antecedem à admissão do obreiro, a partir do momento do anuncio do emprego por parte do vindouro chefe ou do momento de pretensão do empregado por parte do trabalhador, até o termino do processo de seleção que precede a contratação.

Variadas podem ser as possibilidades de discriminação religiosa em fase pré-contratual, a exemplo de um anúncio de emprego que exija do candidato o pertencimento ou não a uma determinada religião, como podemos perceber por

“Organizações de Tendência”, as quais consistem em entidades empregadoras que, em razão de características peculiares, possuem certa linha de orientação ideológica, filosófica ou religiosa, tais como colégios religiosos, sindicados, partidos políticos. Seria razoável exigir que tais empregadores aceitassem em seus quadros funcionais, para o desempenho de atividades precipuamente ligadas a sua ideologia, empregado que partilhassem de ideal distinto?

É certo que o princípio da proporcionalidade há de ser aplicado também em matéria de aferição de condutas discriminatórias, sendo imperioso questionar sobre a presença da tríade: necessidade, adequação e proporcionalidade, de molde a justificar determinadas exclusões.

Portanto, na mesma linha de raciocínio, indaga-se ainda: e se a atividade a ser desenvolvida por um candidato a emprego em uma organização de tendência não apresentar qualquer relação com sua ideologia? Ex. O auxiliar de serviços, que partilha de crença distinta em relação ao colégio católico cujo quadro funcional pretende ocupar?

Por certo, considerando a necessidade da aplicação dos princípios referidos alhures, a pergunta apresenta-se meramente retórica. Evidente que o exercício desta atividade, não guardando qualquer relação com os dogmas propagados pelo possível empregador, não poderia justificar a necessária  proporcionalidade para fins de exclusão à vaga almejada.

Observa-se assim que os critérios de seleção (fase pré-contratual da relação de trabalho) apresenta uma série de nuances, nem sempre sendo de fácil percepção a distinção quanto ao que se afigura como discriminação e outras situações justificáveis[39].

Vejamos o que diz o autor Santos Júnior:

A princípio, a introdução em um questionário de uma pergunta sobre a religião do aspirante ao emprego abre uma porta para a discriminação religiosa e deve ser evitada. Consciente de que a inserção de um trabalhador religioso no seio da empresa tratará como consequência o dever de acomodar razoavelmente as suas práticas religiosas, o recrutador que toma conhecimento da opção religiosa dos aspirantes à vaga tenderá naturalmente a excluir de antemão todos aqueles candidatos cuja expressão religiosa seja mais difícil de acomodar. Por exemplo, um trabalhador adventista, por causa das dificuldades relacionadas com a guarda do sábado, poderá vir a ser preterido para a vaga de trabalho, ainda quando a atividade empresarial não se desenvolva costumeiramente naquele dia da semana, por supor o empregador que no dia em que vier a necessitar, por uma circunstância excepcional qualquer, de funcionar no sábado, não poderá contar com os serviços do obreiro. Pode ocorrer, também, que determinada orientação religiosa pareça esdrúxula ao potencial empregador e, por conta de seus escrúpulos religiosos, prefira não conviver com pessoas que adotem tal credo, ainda que não haja razão alguma para supor que a atividade profissional seria prestada com menor eficiência.

É possível, todavia, que a inclusão na entrevista de recrutamento de uma pergunta sobre a opção religiosa do candidato ao emprego encontre uma justificação racional, fundada nos critérios objetivos da natureza do serviço ou da atividade empresarial. O cargo oferecido, por exemplo, pode reclamar uma qualificação diferenciada, relacionada com uma específica formação religiosa, como pode ocorrer com uma empresa que pretenda contratar um capelão para assistir espiritualmente aos empregados que professam determinada fé religiosa, de modo que não baste ao candidato a emprego ser um Bacharel em Teologia, mas alguém cuja doutrina religiosa se identifique com a do grupo que se beneficiará de sua atividade profissional. De igual modo, uma empresa que se dedique à exportação de carne de frango congelada para países do mundo islâmico poderá ser, a fim de que não se inviabilize sua própria atividade econômica, forçada a contratar a manter nos seus quadros um empregado mulçumano cuja função será unicamente a de fiscalizar a observância do método Halal no abate das aves, de acordo com os rituais exigidos por aquela religião. Nos dois casos, a qualificação exigida para o cargo pressupõe uma específica identidade religiosa.[40]        

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De forma muito comum nos vemos na prática por parte dos empregadores cláusulas que de alguma forma restringe a confissão religiosa do trabalhador. De certo modo, é a forma que estipulam para poderem garantir a confissão religiosa do trabalhador, pois no futuro o trabalhador pode vir a exigir, mesmo fora do âmbito de sua designação profissional e intrínsecas a essas situações.

Em primeiro momento, considera-se discriminação uma cláusula contratual que não permita a confissão religiosa do trabalhador. Existem duas formas de discriminação: direta e a indireta. No caso da direta, se manifesta aos obreiros que professem sua fé religiosa particularmente. E a indireta atinge a todos os obreiros que ingressam no ambiente laboral, isso porque apenas abrange os trabalhadores religiosos. 

No momento em que se percebe que o empregador tem a possibilidade de adaptar-se de forma moderada ao exercício das práticas religiosas dos seus funcionários, ao estabelecer uma cláusula vetando demonstrações de cunho religioso é inescusável ser abarcada como uma recusa, a princípio, de ajustamento.

Não obstante, a prévia rejeição aos ajustes, apenas, poderá ser aceita de forma excepcional, pois quando constituída em bons motivos, para que o empregado permaneça no ambiente laboral a preserve a sua identidade religiosa, que é a sua demonstração de sua dignidade pessoal seja a forma de expressar abertamente o desenvolver de sua personalidade.

Apesar disso, mesmo que essas causas sejam dadas pela organização empresarial, não será admissível evitar demonstrações por parte do trabalhador. Contudo, aquelas que possam vir a dar prejuízo à empresa.

Cláusulas que extinguirem por completo a confissão religiosa do trabalhador não poderá ser admitida com eficácia de validade, pois não passaria pelo crivo da aprovação do princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, é comum, na fase de execução contratual que surjam muitos problemas relacionados à questão da liberdade religosa dos empregados entrando em conflito com o poder diretivo do empregador:

O argumento de que, sob a égide do princípio do pacta sunt servanda, a conversão religiosa ocorrida posteriormente à admissão do trabalhador não pode interferir na execução do contrato de trabalho tem sido muito utilizado para afastar a possibilidade de que a restrição do empregador às novas práticas religiosas de um empregado seja considerada discriminatória. Tal argumento, porém, remonta a uma visão excessivamente individualista do contrato de emprego, que ignora o princípio da proteção e a própria função social do contrato. Há muito que o pacta sunt servanda deixou de ser um princípio absoluto, como se pode notar, por exemplo, no prestígio jurídico que ostenta a cláusula rebus sic standibus. Além do mais, o princípio da proteção inibe uma interpretação do contrato de trabalho que de tão engessada relativize por completo a sua função social de assegurar a subsistência e a realização pessoal do empregado. Se mudanças ideológicas na política empresarial podem afetar o contrato de trabalho, desde que não desordem dos limites do jus variandi, é indefensável que a conversão religiosa do empregado seja desconsiderada na execução do pacto, principalmente em um país cujo texto constitucional privilegia o fato religioso. Em qualquer circunstância, deve-se, na medida do razoável, buscar formas de se evitar que o trabalhador seja colocado na posição de ter que escolher entre a sua nova fé e o seu meio de subsistência. Tudo isso, é claro, deve ser compreendido no contexto de um dever de acomodação que não traga encargo excessivo à condução dos negócios empresariais.[41]   

Na fase de extinção do contrato também surgem conflitos desta natureza.

Sabemos que o emprego para o trabalhador é forma dele prover o seu sustento pessoal e, muitas vezes, também, o meio de sustentar seus entes familiares, a demissão que advém de discriminações ligadas à religiosidade necessita que seja repelida do ordenamento jurídico pátrio, pois a mais desumana prática de discriminação religiosa no ambiente laboral é a forma que sujeita o empregado às intimidações do mesmo perder o seu emprego por conta das suas crenças religiosas.

Desta forma, o trabalhador perde seu emprego e ainda é indicado por descumprir uma obrigação estabelecida em seu contrato cuja consequência é reduzir drasticamente suas parcelas rescisórias, ou o empregador apontar-lhe uma falsa falta grave, ou de outro modo sem alegar motivos necessários, ou nenhum motivo.

Independente de verbas rescisórias da demissão injustificada, as quais são pagas ao empregado, ou de uma reintegração ao trabalho com pagamentos de salários que foram vencidos no período do seu afastamento, terá o empregador de pagar danos morais, pois o constrangimento moral desse trabalhador não é compensado com as verbas que são devidas ao mesmo pelos seus serviços prestados.

No que tange à pérfida atribuição de justa causa, a manutenção do dano é considerada no mundo jurídico trabalhista a de maior gravidade possível e é a pior consequência que a conduta empresarial pode trazer a um trabalhador. Contudo, com ou sem a consideração da justa causa, todavia, a atitude de discriminação religiosa pelo empregador deverá causar a responsabilidade por danos morais pagas ao seu funcionário.

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Sobre a autora
Manoela Carla Felix Seixas Souza

Bacharela em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Damásio Educacional, Especialização em andamento em Docência do Ensino Superior pela Universidade Salvador (UNIFACS) Aluna Especial do Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Manoela Carla Felix Seixas. O âmbito de proteção constitucional à liberdade religiosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5565, 26 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61260. Acesso em: 20 abr. 2024.

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