Questão que baliza as mais recentes tendências da evolução do Direito Público Contemporâneo é a ruptura, ou ao menos a reformulação, da clássica dicotomia havida entre Direito Público e Direito Privado. É notório que diversos institutos típica e historicamente atrelados ao Direito Civil e ao Direito Empresarial estão cada vez mais relacionados à seara pública, que os readapta conforme suas próprias peculiaridades.
O estudo desses institutos e especialmente a forma pela qual são recepcionados pelo Direito Público é de fundamental relevância para se compreender a modulação atual desta dogmática, bem como da própria dicotomia entre Direito Público e Direito Privado.
Um desses institutos é o conceito de marca, tipicamente atrelado ao Direito Empresarial e muito pouco estudado pelo Direito Público, mas que pode ser atrelado a esta seara do Direito, consoante se verificará no decorrer do presente artigo.
A preocupação em criar algum sinal que identifique e individualize um determinado objeto não é preocupação recente do ser humano. Conforme leciona Irineu Strenger:
“ao que tudo indica, a questão das marcas é preocupação há bastante tempo, pois há referências à ordenação de 1445, referentes aos tecelões de mantas, estabelecendo que cada mestre deveria ter seu sinal próprio para marcar suas obras[1]”.
Essa necessidade em criar traços individualizantes ganhou mais notoriedade depois de firmada a Revolução Industrial, o que deu ensejo à fabricação em série e contínua de produtos padronizados, sobre os quais a marca exercia extrema relevância.
Daí surgiu a necessidade de tutelar a marca juridicamente, visando à proteção da criação intelectual. No Brasil, a Lei n° 5.772, de 21 de dezembro de 1972 instituiu código de propriedade intelectual, tratando especificamente dessa matéria.
Sobre a elaboração de um conceito de marca, estabelece Irineu Strenger que é preciso diferenciar dois elementos essenciais que a compõe: o subjetivo e o objetivo. Quanto aos elementos subjetivos expõe que:
“As marcas, como qualquer outro elemento do ativo de uma empresa, podem pertencer a esta com plena propriedade ou estar à disposição da mesma por diversos vínculos diversos. Por isso, as marcas podem pertencer a qualquer pessoa, tenha esta ou não caráter empresarial[2]”.
Em relação à outra espécie de elemento:
“dois são os elementos objetivos a considerar, como configuradores do conceito de marca: a) sinal distintivo e b) produtos e serviços. No que concerne ao primeiro, tem-se que toda marca consiste em um sinal que deverá, para existir como tal, ser determinado, fixo ou constante além de reproduzível (...) relativamente ao item b, o elemento objetivo determinante do conceito de marca, enquanto sinal distintivo das empresas, é individualizado por sua relação direta com os produtos e serviços. Significa que uma marca não é um sinal determinado, destinado a distinguir produtos ou serviços indeterminados, mas um sinal determinado a distinguir produtos e serviços também determinados, de modo que, quando há sinais suficientemente distintos entre si, há marcas distintas, mesmo quando os sinais sejam idênticos[3]”.
O autor, portanto, sugere a definição por meio de dois elementos essenciais: o objeto e seu titular. Quanto a este, o elemento subjetivo, explica que qualquer pessoa, física ou jurídica, pode ser titular de uma marca, incluindo neste ponto as empresas estatais, não sendo necessária a exigência do caráter empresarial:
“O uso de marcas, apesar de, em sua notória maioria, estar a cargo de empresas privadas, também se realiza pelas empresas públicas. Mais esporádico, porém também corrente, é o uso ou registro de marcas por parte de entidades, que dificilmente se encaixam dentro do conceito estrito de empresa, como as entidades culturais, desportivas, religiosas, etc. Essa perspectiva se amplia a admitir-se a marca de serviços, entre os quais expressamente se incluem educação, lazer, etc[4]”.
Esse elemento subjetivo, nitidamente amplo, é resultado dos próprios elementos objetivos da marca, ou seja, o estabelecimento de um sinal distintivo de produtos e serviços. Destarte, qualquer produto ou serviço individualizado pode ser objeto de marca, cuja titularidade pode ser de qualquer pessoa, física ou jurídica, que exerça ou não atividade empresarial.
A definição de Newton Silveira também se coaduna com o estabelecido pelo autor:
“todo nome hábil para ser aposto a uma mercadoria ou produto ou a indicar determinada prestação de serviços e estabelecer entre o consumidor ou usuário e a mercadoria, produto ou serviço, uma identificação, constitui marca[5]”.
Pelo exposto, percebemos que a marca é um instrumento, cuja função é a de individualizar. Esta a análise teleológica que vai determinar sua conceituação. Portanto, para o Direito, o objetivo da marca é apenas e tão somente o de individualizar serviços e produtos. Conforme Strenger:
“a marca juridicamente considerada não exerce outra função que a de individualizar, em um ou outro aspecto, produtos ou serviços. A presença de uma marca significa somente que todas as coisas que ostentam aquele sinal têm em comum determinado caráter, determinada propriedade, certo elemento estrutural ou funcional, ou que ao menos tenha sido comum certo fato, ato, evento ou operação que possua algum significado social, técnico ou jurídico[6]”.
Assevera Newton Silveira:
“a natureza da marca decorre de sua finalidade. O sinal deve simplesmente ser capaz de preencher tal finalidade[7]”.
Do mesmo modo, José Cretella Neto:
“Do ponto de vista jurídico, uma das poucas funções da marca é a de individualizar, em um ou outro aspecto, produtos ou serviços, e também o fabricante[8]”.
No mesmo sentido, Paul Mathély:
“a marca, na realidade, não consiste em sinal gráfico em si mesmo; consiste em um sinal gráfico considerado em sua aplicação a um objeto determinado, com a função de distingui-lo[9]”.
Conforme as exposições acima, podemos estabelecer o seguinte conceito jurídico de marca: marca é um instrumento de identificação de um serviço ou produto determinado de titularidade de uma pessoa física ou jurídica, que exerça, ou não, atividade empresarial.
Prefere-se o termo “instrumento” em vez de sinal porque este é um elemento objetivo da marca, o qual não poderia se equiparar à própria marca.
Todavia, conforme o desenvolvimento das técnicas de comercialização, a marca ganhou alguns predicativos que se aderiram à sua finalidade.
“Do ponto de vista comercial, no entanto, a marca pode chegar a valer muito mais que todos os ativos fixos de uma empresa, caso, por exemplo, da Nike (e do grafismo que identifica a marca, designado como swosh), a qual não possui uma única fábrica, mas cuja marca está avaliada em bilhões de dólares[10]”.
“Daí resultaram definições de marca com a ideia de ser esta um sinal com que um fabricante ou comerciante diferencia seus produtos dotados de função identificadora da empresa. Também se aludia reiteradamente ao crédito e à reputação alcançados pelos produtos de uma empresa no mercado, com a função de garantia. A estas facetas vieram aditar-se a de notoriedade, ou divulgação do sinal no mercado, com função de reclame[11]”.
Notamos, portanto, o desenvolvimento de uma função adjacente à função jurídica de identificar, típica das marcas, qual seja, a de status econômico, representada pelo crédito e pela notoriedade mercadológica de que goze um determinado ente. É exatamente este aspecto funcional-econômico, ademais, que justifica a utilização da franquia empresarial, constituindo-se no grande polo atrativo de interesses dos franqueadores:
“mais do que nunca, nos dias atuais, a marca, além de representar determinado produto e/ou serviço, identifica-se com os desejos do consumidor, de acordo com as máximas ‘você é o que você usa’ e ‘o seu valor está no que você consome’[12]”.
Destarte, podemos arrematar que encontramos dois aspectos funcionais para o conceito de marca: o jurídico, que representa o escopo de individualizar um produto ou serviço e o econômico, que possui o objetivo de informar a notoriedade de uma dada empresa inserida na lógica mercadológica.
Ambos os aspectos se complementam, conferindo a real função das marcas em dias atuais. No entanto, é sempre bom ressaltar que para o mundo jurídico, a marca não perde sua caracterização se não possuir notoriedade econômica. Exatamente por isso, essa funcionalidade econômica é mais bem vista como predicado do que como elemento essencial. Ou seja, é apenas um elemento identificador de seu poderio econômico.
“Certamente todas as marcas não identificadoras, desprovidas de prestígio, publicidade, etc., nem por isso deixarão de ser economicamente marcas e muito menos deixarão de ostentar tal condição jurídica[13]”.
Firmada a conceituação e os aspectos funcionais das marcas, partimos para a moldação desse conceito à Administração Pública.
Inicialmente, no que se refere aos órgãos da Administração Direta, das autarquias e das fundações públicas, ou seja, das pessoas dotadas de personalidade jurídica de direito público, não é de todo incompatível aplicar o conceito jurídico de marca.
Ora, como exposto anteriormente, tal conceito considera a marca apenas como um sinal diferenciador de produtos ou serviços. Assim, os sinais distintivos que caracterizam um determinado serviço executado pela Administração Pública podem ser passíveis de individualização por meio de uma marca, desde que o referido serviço possua características que permitam sua individualização, como a determinabilidade.
“Como a finalidade é identificar o produto, é preciso que a marca tenha características que permitam tal identificação. Em suma, a marca é um sinal, que se acresce ao produto para identificá-lo e que deve ser suficientemente característico para preencher tal finalidade. Em consequência, o que não tiver característica de marca, como o nome do próprio produto ou outros nomes ou sinais que genérica e usualmente são empregados em relação ao produto sem com isso implicar a distinção entre uns e outros da mesma espécie e gênero[14]”.
Elucidemos com uma exemplificação. A Universidade de São Paulo é uma autarquia de regime especial, cujo objeto é a prestação de serviços de ensino superior. A USP possui um sinal distintivo, representado por letras de uma fonte específica e um brasão. Ora, qual a outra função destes sinais se não distinguir, individualizar os serviços de educação prestados pela universidade das outras entidades de ensino superior. É neste sentido que podemos afirmar que a USP possui uma marca, em seu sentido jurídico. O que não seria viável é atribuir à marca da autarquia uma conotação creditícia, de função econômica, visto que a USP não é uma entidade empresarial que concorre no mercado. Não é este seu objetivo.
O mesmo acontece, também, com a Administração direta quando se valem de sinais e slogans para individualizarem a sua administração.
O que deve ser relevado é o fato de que os serviços ou mercadorias precisam ser identificados, para se aplicar o conceito jurídico de marca. No caso da concessão de serviços públicos, a Administração é a titular desses serviços e concede a execução para um particular ou para um ente da Administração indireta. No entanto, esses serviços não são especificados, ou seja, não são individualizados entre outros serviços. Concede-se, por exemplo, a uma empresa privada a execução dos serviços de transporte urbano. Ora, transporte é gênero e não espécie. Quanto a este aspecto, não se pode aplicar o conceito jurídico, muito menos o econômico, de marca, pois não existe qualquer objeto individualizado. Há apenas um objeto que pode vir a ser especificado, ou seja, caso a empresa concessionária preste o serviço, ela aplicará à sua execução uma marca, mas a simples existência de serviço de transporte não dá ensejo à marca.
Portanto, o pensamento de Maria Sylvia Zanella di Pietro de que para a Administração Pública “dificilmente pode-se falar em marca como sinal distintivo aposto facultativamente a determinados produtos, mercadorias ou serviços. Não dispondo de ‘marca’, a Administração Pública também não tem como conceder licença de uso de marca[15]” é plenamente correto se considerarmos um produto ou serviço indeterminado ou o próprio caráter econômico adjacente ao conceito de marca, mas não em sua conceituação estritamente jurídica.
Também neste sentido, cabe estabelecer que a inexistência de uma marca a ser transmitida no contrato administrativo de franquia de serviço público, por exemplo, não é suficiente para inviabilizar a realização desta espécie contratual. Conforme expõe Luiz Felizardo Barroso:
“Já quanto ao fato de que o franchising se adaptaria mal à Administração Pública, porque esta não teria uma ‘marca’ que viesse a ser licenciada ao franqueado, lembramos que na franquia empresarial, o que é licenciado ao franqueado não é propriamente a marca do franqueador, senão seu conceito de negócio, seus procedimentos e sua tecnologia de administração, afeiçoados a determinado negócio, serviços e/ou produtos. A marca seria, como efetivamente o é, apenas um sinal representativo e distintivo, que, em verdade, resume tudo o que foi falado acima, mas que, se apresentada isoladamente em um contrato, nada significaria em termos de franquia empresarial, pois seria um mero licenciamento de marca, outra figura jurídica distinta do franchising, eis que dissociada de seu conteúdo dogmático e mesmo pragmático. No que concerne à figura da concessão – instituto semelhante ao franchising – de que dispõe a Administração Pública, também nela a concessionária trabalha sob a marca do concedente. Se a Administração Pública não tem marca, a julgar pela dedução do raciocínio da Dra. Maria Sylvia, adotado pelo Relator, também não poderia fazer concessões[16]”.
O autor nos chama a atenção para o fato de que, como exposto anteriormente em seu conceito, a marca é um instrumento e não um fim em sim mesma. Ela seria um sinal capaz de resumir todo um conjunto de elementos de técnica, know-how, influência nas opções do usuário ou consumidor, gestão administrativa, etc. E é exatamente o alcance dessas características que constitui o objetivo do contrato de franquia. Caso alguns desses elementos estejam presentes, mas não propriamente a marca, por não se tratar de um serviço determinado, não se poderia considerar prejudicada a conclusão da franquia de serviço público.
Ou seja, não existe incompatibilidade em se proceder ao contrato de franquia de serviço público com o fato de que não se pode falar em marca para essa espécie de serviço[17], porque o contrato de franquia, tanto a empresarial como a pública, não se confunde com o contrato de licença de uso de marca, o qual tem por objeto o próprio licenciamento.
Situação diferente, no entanto, acontece quando analisamos as entidades da Administração indireta, dotadas de personalidade jurídica de direito privado e que exercem atividade econômica em sentido estrito. Percebe-se ser plenamente possível, neste caso, a aplicação do conceito de marca. Em primeiro lugar, presente está o conceito jurídico de marca, pois os serviços prestados, ou eventualmente os produtos que tais entidades venham a produzir, são objetos plenamente determinados no mercado consumidor, dotados de especificidades que os diferenciam de seus concorrentes.
Além disso, é cabível também, diferentemente do que ocorre com a Administração direta, a aplicação da função econômica da marca. Ora, justamente pelo fato de estas entidades atuarem como empresas, na produção de produtos e serviços e procedendo ao seu lançamento no mercado consumidor e, principalmente, pelo fato de elas visarem ao lucro, elas possuem uma dada notoriedade no mercado, estando passíveis a considerações típicas de qualquer empresa que participe da estrutura de concorrência econômico-capitalista, como seu poderio econômico, seu grau de confiabilidade em contratar, seu capital social como garantia de adimplemento de obrigações e todas as outras características comumente utilizadas como medidores do status econômico-financeiro de uma empresa.
No exemplo já mencionado acima, eis outra característica que fortalece a tese de que a utilização do contrato de franquia por essas entidades da Administração Pública é a que melhor se afeiçoa à técnica desenvolvida no Direito Empresarial. O que guiará os interesses do franqueado, nesta espécie de franquia, é exatamente a notoriedade que possui a empresa estatal diante de seus concorrentes.
Em suma, não há incompatibilidade em se coadunar o conceito de marca com a Administração Pública. No que se refere à Administração direta e a indireta dotada de personalidade jurídica de direito público, pode-se falar apenas em conceito jurídico de marca, ou seja, afeiçoar a especificidade da prestação de seus serviços. Para a Administração indireta que preste atividade econômica em sentido estrito, tanto o conceito jurídico de marca, como sua função econômica são cabíveis.
Notas
[1] STRENGER, Irineu, Marcas e Patentes, São Paulo, LTR, 2004, p. 21.
[2] STRENGER, Irineu, Marcas e Patentes, São Paulo, LTR, 2004, p.22.
[3] STRENGER, Irineu, Marcas e Patentes, São Paulo, LTR, 2004, p.22.
[4] STRENGER, Irineu, Marcas e Patentes, São Paulo, LTR, 2004, p.23.
[5] SILVEIRA, Newton, A Propriedade Intelectual e as novas leis autorais, São Paulo, Saraiva, 1998, p.16.
[6] STRENGER, Irineu, Marcas e Patentes, São Paulo, LTR, 2004, p.25.
[7] SILVEIRA, Newton, A Propriedade Intelectual e as novas leis autorais, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 16.
[8] CRETELLA NETO, José, Manual jurídico do franchising, São Paulo, Atlas, 2003, p. 92.
[9] MATHÉLY, Paul, Le nouveau droit François dês marques, apud José Cretella Neto, Manual jurídico do franchising, São Paulo, Atlas, 2003, p. 93.
[10] CRETELLA NETO, Manual jurídico do franchising, São Paulo, Atlas, 2003, p. 93.
[11] STRENGER, Irineu, Marcas e Patentes, São Paulo, LTR, 2004, p.25.
[12] CRETELLA NETO, Manual jurídico do franchising, São Paulo, Atlas, 2003, p. 93.
[13] STRENGER, Irineu, Marcas e Patentes, São Paulo, LTR, 2004, p.25
[14] SILVEIRA, Newton, A Propriedade Intelectual e as novas leis autorais, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 17.
[15] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parcerias na Administração Pública, 5ª edição, São Paulo, Atlas, 2006, p.219.
[16] BARROSO, Luiz Felizardo, O Dilema da Franquia Pública, parecer ao anteprojeto de lei sobre Franquia Pública in www.abdf.com.br/docs/luiz%20felizardo%20barroso%201.doc, acessado em 20/08/2007.
[17] Em sentido oposto: CRETELLA NETO, Manual jurídico do franchising, São Paulo, Atlas, 2003, p. 75: “No contrato de franchising, tanto a licença de marca quanto a transmissão de know-how são elementos essenciais (...) no franchising, o uso da marca é não apenas um direito do franqueado, mas também uma obrigação”.