Não é difícil se ouvir quando se reporta ao novo Código de Processo Civil, que este representa os anseios da advocacia, contudo, data vênia, não é bem isso que representa e remete o inciso IV do artigo 139 do citado diploma processual.
Eis que nos parece que tal dispositivo exubera de poderes o magistrado, lhe possibilitando adotar meios atípicos sem qualquer taxatividade ou limitação, para, segundo alude, garantir o cumprimento da ordem judicial.
Nesta toada, o quimérico “código do advogado” não reflete com tanta fidelidade as ambições dos causídicos, pois se assim fosse, ter-se-ia uma limitação ou qualquer balizamento afim de abrandar tamanho poderio concedido ao juiz.
Feitas tais considerações, e antes de se adentrar à expressiva metamorfose sofrida nesta matéria no Novo estatuto processual civil, deve-se buscar uma correspondência para o dispositivo em liça no seu predecessor, que no caso, ao menos em propósitos finais o que melhor se assemelha é o § 5º, do artigo 461, que trazia o seguinte texto:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
Veja que na vigência daquele diploma processual já havia sido prevista ao magistrado a possibilidade e a faculdade de determinar, inclusive de ofício, medidas para assegurar a efetivação da tutela, mas de forma tímida e moderada, pois o cabimento era limitado às ações que tivessem por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
Ponderação esta que sucumbiu-se a pelo menos dois pontos relevantes do Novo Código, o primeiro foi a supressão da delimitação das espécies de ações cabíveis, taxativo no então código de 73, e o segundo, que merece maior destaque, é a sua aplicação em obrigações pecuniárias de qualquer espécie, consagrando, no entanto, a atipicidade dos atos executivos ao dispor que incumbe ao juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.
Isso mesmo! Inclusive execuções de títulos extrajudiciais são abarcadas, aliás, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), afim de aclarar polêmicas que cercavam, e pode-se dizer que ainda cercam o tema, acabou por editar o enunciado 48 com a seguinte redação:
48) O art. 139, IV, do CPC/2015 traduz um poder geral de efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos extrajudiciais.
Há aí, portanto, uma grande novidade, que como dito, é o centro das críticas e polêmicas, a expressa previsão da possibilidade de utilização de meios extraordinários para assegurar o cumprimento de decisões que impõem obrigações pecuniárias, inclusive na execução de títulos extrajudiciais.
Assim, embora à primeira vista tal dispositivo apresentar-se como uma valiosa ferramenta capaz de trazer maior efetividade às decisões judiciais, inclusive, com significativa potestade coercitiva no campo das obrigações pecuniárias, a sua interpretação despudorada resta por fazer encarnar aplicações irrestritas e extremamente gravosas aos devedores.
E foram justamente essas venturosas e arrojadas interpretações, alicerçadas pelo intérmino poderio concedido pelo inciso IV do artigo 139, que passou-se à determinar medidas facilmente localizadas em julgados pelo país, como apreensão ou suspensão do passaporte e/ou de carteira nacional de habilitação do devedor.
Eis que, neste contesto que se tem a clara visão de que a ausência de balizamento específico e a redação aberta e excessivamente vazia da norma, acaba por permitir incursões graves em contraposição à princípios, legislação processual e inclusive direitos fundamentais dos devedores.
Assim, em que pese a louvável intensão do legislador em propiciar maior robustez e efetividade à decisão judicial, não se pode perder de vista que a perseguição do crédito não pode ser utilizada como meio de vingança privada como existia anteriormente, devendo o devedor “sofrer” apenas o necessário para que se consiga a satisfação do direito do exequente.
Ou seja, sempre que for possível a satisfação do direito do exequente por outros meios que sejam menos dolorosos ao devedor estes devem ser adotados, é o chamado princípio da menor onerosidade ao devedor, capitulado no artigo 805 do Novo Código de Processo Civil, e totalmente assentado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Ademais, justamente com vistas à plena proteção da dignidade humana, que se forma um dos princípios da execução, que é aquele em que a constrição se dá em face apenas dos bens do devedor, sem atingir, contudo, a sua pessoa.
Retrato disso, é a própria vedação da prisão civil por força supralegal consubstanciada pelo festejado pacto de San José da Costa Rica, que aliás, espelha mais que a vedação da prisão civil por dívida, traduz-se na verdade na impossibilidade de constrições pessoais por dívidas, colocando a salvo apenas as de cunho alimentar.
Por conseguinte a constrição mesmo que meramente temporária de direitos do devedor com vistas à compeli-lo A efetuar pagamento de débito, transcende a barreira da razoabilidade, e atenta contra dispositivo supralegal, com base em mero interesse privado.
Aliás, mais que isso, tais constrições desvigoram o consagrado direito à liberdade, afinal, os chamados direito de primeira dimensão/geração, realçam com grande proeminência, o princípio da liberdade. Isso porque são os direitos civis e políticos estandardizados pelas Revoluções Francesa e Americana que na sua essência realçam o dever de abstenção do Estado na vida privada do indivíduo, revelando uma obrigação de respeito à autodeterminação do sujeito também denominadas liberdades individuais.
E a liberdade de locomoção materializada neste caso pela Carteira Nacional de Habilitação e Passaporte está capitulada no art. 5, XV, Carta da República, sendo certo, portanto, que a sua suspensão ou apreensão, converge à uma limitação ou mesmo relativização de um direito fundamental, direitos estes que apenas podem ser mitigados em face de outro preceito também constitucional.
Melhor dizendo, obviamente, como todo direito fundamental, este não é absoluto e pode ser restringido em determinados casos, observando-se o princípio da ponderação, e razoabilidade, ou seja, a limitação do direito fundamental está adstrito ao necessário, sendo que tal também deverá ser compatível com os preceitos constitucionais. Segundo Konrad Hesse:
“A limitação de direitos fundamentais deve, por conseguinte, ser adequada para produzir a proteção do bem jurídico, por cujo motivo ela é efetuada. Ela deve ser necessária para isso, o que não é o caso, quando um meio mais ameno bastaria. Ela deve, finalmente, ser proporcional em sentido restrito, isto é, guardar relação adequada com o peso e o significado do direito fundamental.”
No mesmo sentido entendeu a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RMS 23.452/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 12.05.2000, p.20:
“OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”
Veja que, a relativização de um direito fundamental apenas pode ser praticada em benefício da aplicação de um outro preceito de mesma ordem, e ou, para proteger um interesse social, isto é, para garantir a soberania de um bem maior.
A exemplo da ação de alimentos em que existem em debate outros interesses e direitos também constitucionais, tais como direito à vida, dignidade da pessoa humana, além de outros princípios também constitucionais como o melhor interesse da criança, da paternidade responsável e mesmo da solidariedade familiar.
Nesta perspectiva, deve-se esclarecer que, o dissentimento com a norma aqui apresentado, não guarda relação com a execução de alimentos, e sim com a execução de dívida comum de um modo geral, pois esta não possui natureza jurídica idêntica, tampouco se amolda a mesma exceção daquela.
Conclui-se, portanto, que se a atipicidade das técnicas executivas persegue o resultado, deve ser pautado pela menor onerosidade, e respeitando direitos fundamentais, sendo difícil se admitir que a interpretação extensiva de dispositivo infraconstitucional possa fazer ceder, ainda que minimamente, direitos de estatura constitucional.
Mesmo porque a partir da constatação de que a flexibilização ou usurpação de conquistas legislativas obtidas no âmbito dos direitos prestacionais representaria um passo contrário ao dever concretizador da Constituição dirigente, faz emergir o Princípio da proibição do retrocesso social, tido como uma clausula geral de proteção dos direitos fundamentais.
Para Miozzo (2010. p. 61), “na medida em que há uma obrigação de concretizar um direito, por exemplo através da criação de normas infraconstitucionais, exsurge um dever anexo de não tomar medidas retrocessivas que atentem contra as conquistas já atingidas”.
Portanto, ao menos quanto ao núcleo essencial, cada direito deve estar protegido não só pela segurança contra medidas retroativas, mas também contra medidas retrocessivas.
Assim, impõe-se ao Estado que não viole o núcleo do mínimo existencial, independente das condições políticas, econômicas ou sociais, seja por meio de atos ou omissões, para não macular os princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
O princípio retro, de vedação ao retrocesso, encontra-se em perfeita harmonia com o debate ora traçado, já que somente se pode falar na experimentação de todos os direitos fundamentais de forma plena, na medida em que forem aplicados pelo Estado de forma duradoura, ampla e efetiva.
Deste modo, não se defende o esvaziamento completo do artigo 139, IV, mas sim melhor balizamento das constrições a serem aplicadas pelo magistrado, em especial no que tange à perseguição pecuniária de dívida comum, com vistas a assegurar o respeito a princípios, direitos e garantias constitucionais do devedor, para que não se aplique por via transversal baseado no excesso de poder conferido por este dispositivo, constrições descabidas e mesmo inconstitucionais de caráter pessoal ao executado.
Referência
HESSE, Konrad. Significado dos Direitos Fundamentais. In: Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Trad. Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009.
MIOZZO, Pablo Castro. O Princípio da Proibição do Retrocesso Social e sua Previsão Constitucional: uma mudança de paradigma no tocante ao dever estatal de concretização dos direitos fundamentais no Brasil. Revista Destaque Jurídico. São Paulo: Conceito editorial. v. 9, n. 1, p. 55-79, 2010.
STF, RMS 23.452/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 12.05.2000, p.20
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969.
Lei nº 5.869/73. Código Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm. Acesso em: 08/11/2017.
Lei nº 13.105/15. Novo Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 08/11/2017.