Até o início do século XX, incontestável era a predominância no ordenamento jurídico da não limitação do direito probatório que preteria a ilicitude em favor do conteúdo, desde que este fosse dotado de veridicidade, num diapasão que primava pela verdade real.
O autor da prova ilícita responderia tão somente pela prática do ilícito material, sendo o vício da prova apenas uma falha pré-processual, seguindo a máxima maquiavélica, os fins justificam os meios.
Dentro deste cenário, o julgamento do ex-presidente Fernando Collor de Mello no HC 69.912-0-RS é a reflexão imaculada do posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) durante a primeira metade da década de 1990, em que prevalecia a teoria da incomunicabilidade das provas ilícitas.
Com efeito, na votação do caso, seis votos a cinco, consignava-se em verdadeiro prelúdio ao que se sucederia em meados da citada década. Em vista da anulação da votação por impedimento de um dos ministros, o apertado placar não se sustentou. Assim, insurgiu a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree) de inspiração norte-americana. Significa dizer que, para esta teoria, as provas ilícitas e aquelas derivadas de sua ilicitude são inadmissíveis (teoria da comunicabilidade das provas).
Na transcrição do HC 69.912-0-RS, deduz-se, de forma inexorável, o marco da teoria dos frutos da árvore envenenada na jurisprudência do Pretório Excelso:
[...] Não obstante, indeferimento inicial do habeas corpus pela soma dos votos, no total de seis, que, ou recusaram a tese da contaminação das provas decorrentes da escuta telefônica, indevidamente autorizada, ou entenderam ser impossível, na via processual do habeas corpus, verificar a existência de provas livres da contaminação e suficientes a sustentar a condenação questionada, nulidade da primeira decisão, dada a participação decisiva, no julgamento, de Ministro impedido (MS 21.750, 24.11.93, Velloso); consequente renovação do julgamento, no qual se deferiu a ordem pela prevalência dos cinco votos vencidos no anterior, no sentido de que a ilicitude da interceptação telefônica - a falta de lei que, nos termos constitucionais, venha a discipliná-la e viabilizá-la - contaminou, no caso, as demais provas, todas oriundas direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do paciente. Plenário. Julgamento em 16.12.93. Deferido o pedido, por maioria. Supremo Tribunal Federal.
Apesar desta prevalência, o STF tem admitido, no que o compete ao processo penal, a prova ilícita pro reo, isto é, esta será admitida sempre que invocar defesa indispensável do acusado, mas não para produzir elementos incriminadores.
Destarte, não se recepcionou a ideia de “pro societate”, isto é, as provas ilícitas não podem basear a acusação no processo penal. Tem-se, assim, que a flexibilização da ilicitude constitui consequência direta do sopesamento de direitos e princípios fundamentais.
Diante desta perspectiva, Dworkin concebe em sua Teoria Interpretativa do Direito, a movimentação jurisdicional para além de um legalismo hierático, coadunando a descoberta das visões inerentes ao Direito com o modo de interpretá-lo, na teleologia duma efetiva concretização da justiça.
Outrossim, a teoria de sopesamento de Robert Alexy e a sua ideia de otimização da norma quanto às diversas respostas existentes dentro do ordenamento, possibilita a construção jurisprudencial de exceções quanto à vedação da prova ilícita, e, até mesmo, da exclusão desta ilicitude em vista da legítima defesa das liberdades públicas fundamentais. Isso é aferido com a leitura do MS n. 23.452/RJ:
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição (STF, MS n. 23.452/RJ, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 12/05/2000).
Moraes (2013, p.120) exemplifica que “poderíamos apontar a possibilidade de utilização de uma gravação realizada pela vítima, sem o conhecimento de um dos interlocutores, que comprovasse a prática de um crime de extorsão, pois o próprio agente do ato criminoso, primeiramente, invadiu a esfera de liberdades públicas da vítima, ao ameaçá-la e coagi-la.” Dessa forma, a ausência de ilicitude verifica-se na medida em que se constata a legítima defesa dos direitos fundamentais e a invocação do vetor axiológico último do ordenamento, a dignidade da pessoa humana.
Por conseguinte, não se trata do acolhimento de provas ilícitas em desfavor dos acusados, vez que não desrespeita o art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. Expondo esta vertente interpretativa dentro da Corte Máxima, tem-se o voto do Ministro Moreira Alves, relator no Habeas Corpus nº 2 74.6781/SP:
[...] Evidentemente, seria uma aberração considerar como violação do direito à privacidade a gravação pela própria vítima, ou por ela autorizada, de atos criminosos, como o diálogo com sequestradores, estelionatários e todo tipo de achacadores. No caso, os impetrantes esquecem que a conduta do réu apresentou, antes de tudo, uma intromissão ilícita na vida privada do ofendido, esta sim merecedora de tutela. Quem se dispõe a enviar correspondência ou a telefonar para outrem, ameaçando-o ou extorquindo-o, não pode pretender abrigar-se em uma obrigação de reserva por parte do destinatário, o que significaria o absurdo de qualificar como confidencial a missiva ou a conversa.
No ensinamento escorreito de Paccelli (2013), tem-se ainda a possibilidade de se utilizar de gravações para defender interesse jurídico legítimo da vítima, sem o consentimento do interlocutor, se não houver cláusula legal de sigilo nem quaisquer outras limitações quanto à conversação. Assente à teoria da tipicidade conglobante, um fato só é típico se, ao tempo que a conduta se encaixa na descrição típica formal, também viola o ordenamento jurídico como um todo. De forma simples, a ilicitude não se configura quando a conduta é admitida em outras áreas do Direito, como civil, administrativa, trabalhista, visto que o sistema congloba na totalidade e, teoricamente, não possui contrariedades (ZAFFARONI APUD PACCELLI, 2013). O STF decidiu com repercussão geral sobre o assunto no RE n- 583.937/RJ, in verbis:
O Tribunal, por maioria, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, reconheceu a existência de repercussão geral, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da admissibilidade do uso, como meio de prova, de gravação ambiental realizada por um dos interlocutores e deu provimento ao recurso da Defensoria Pública, para anular o processo desde o indeferimento da prova admissível e ora admitida, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Eros Grau e, neste julgamento, o Senhor Ministro Carlos Britto. Plenário, 19.11.2009. (RG na QO no RE 583.937/RJ, rel. Min. Cezar Peluso, 19.11.2009, DJE 17.12.2009).
Numa linguagem pandectística alemã, a passagem da jurisprudência exegética à jurisprudência sistemática estabeleceu uma elaboração do sistema empírico ou indutivo, acarretando, numa outra acepção, a exclusão da incompatibilidade de normas do Direito.
A despeito da força normativa eminente no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, é evidente a atuação do STF a flexibilizar a vedação da prova ilícita, de forma excepcional, ainda predominando a teoria da comunicabilidade (fruit of the poisonous tree), quanto às provas por derivação, e o princípio da proporcionalidade quantos àquelas que beneficiem o réu.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3. ed.São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3.ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
OLIVEIRA, Eugenio Paccelli. Curso de Processo Penal. 17. ed.rev. e amp. atual. São Paulo: Atlas, 2013.