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Magistratura e equidade: uma análise sobre a participação feminina nos tribunais brasileiros

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26/11/2017 às 12:20
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Analisa-se a forma de acesso aos tribunais que compõem o poder judiciário, à luz da PEC nº. 43, de 2016, de autoria da Senadora Vanessa Grazziotin, e das obras de Daron Acemoglu e James Robinson.

Resumo: O texto defende a adoção de medidas legislativas que viabilizem a participação feminina nos tribunais federais e estaduais do país como forma de desenvolver instituições políticas inclusivas. Provoca-se uma reflexão sobre os efeitos das políticas de inclusão no preenchimento de espaços públicos de poder. Com base na obra de Daron Acemoglu e James Robinson, adota-se a premissa de que o pluralismo é a pedra angular das instituições políticas e econômicas inclusivas que tendem a criar um círculo virtuoso e estimular o desenvolvimento econômico nos países pobres. A partir dela, propõe-se o debate acerca da Proposta de Emenda à Constituição nº. 43, de 2016, como instrumento de realização da igualdade de gênero nas instituições democráticas do país.


Introdução

A discriminação de gênero, durante muito tempo, foi tratada como um problema atrelado a intenções e decisões pessoais[1]. A legislação brasileira veda a prática de discriminação compreendendo o fenômeno, via de regra, como uma demonstração explícita do ânimo de ofender e excluir. Essa é a linha adotada pela Lei nº. 7.716, de 1989, que contempla a criminalização de diversas formas de preconceito, ainda sem tratar, no entanto, de gênero e orientação sexual. Mas estudar o aspecto da intencionalidade não é mais suficiente para a solução das questões contemporâneas. Diante de uma Constituição que contém uma previsão abrangente de erradicação de desigualdades e de desenvolvimento é preciso falar da discriminação institucional, aquela que, segundo Roger Raupp Rios, “volta-se para a dinâmica social e a normalidade da discriminação que ela engendra”[2].

Este trabalho busca analisar uma específica vertente de arranjo institucional que tem gerado resultados discriminatórios quanto ao gênero: a forma de acesso aos tribunais que compõem o poder judiciário. Como já se identifica uma sólida trajetória acadêmica que discutiu entre nós o provimento de cargos no Supremo Tribunal Federal e em outras cortes superiores, possíveis vantagens na nomeação de magistradas mulheres, dentre outros aspectos, não voltaremos os nossos olhos para o passado. A idéia é debater a Proposta de Emenda à Constituição nº. 43, de 2016, de autoria da Senadora Vanessa Grazziotin, do PC do B do Amazonas.

A Proposta visa a alterar o art. 94 da Constituição Federal, que trata do chamado “quinto constitucional”, dispondo que tanto na lista sêxtupla elaborada pelos órgãos de classe quanto na lista tripla formada pelos tribunais deve ser respeitado um percentual mínimo de participação de cada um dos gêneros masculino e feminino[3].

Como diversas perspectivas sempre concorrem para que se encontre o melhor olhar acerca de uma questão, optaremos por um marco teórico centrado no neoinstitucionalismo, mais especificamente na obra “Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza”, de Daron Acemoglu e James Robinson, e assim o faremos por trazer um novo olhar sobre a origem da riqueza e da prosperidade associando-a a formação de uma sociedade pluralista, cujas instituições políticas e econômicas inclusivas observam a igualdade não apenas diante da lei, como também no sistema político.


Panorama da desigualdade de gênero nas esferas institucionais dos poderes legislativo e judiciário brasileiros

O Brasil ocupa a 92ª posição no ranking da Organização das Nações Unidas de desigualdade de gênero, estando na pior metade numa amostragem de 150 nações. No Mapa Mulheres na Política 2015, apresentado pela ONU, o Brasil ocupa uma das últimas posições na lista de 188 países pesquisados quanto à participação feminina nos Parlamentos[4].

A análise dos dados acerca das cadeiras ocupadas pelas mulheres no parlamento do Brasil demonstra que elas ocupam menos de 11% das vagas do Congresso Nacional. Na câmara de deputados, apenas cinquenta e uma vagas são ocupadas por deputadas mulheres contra quatrocentos e sessenta e duas vagas destinadas a deputados do sexo masculino. No senado, são treze senadoras contra sessenta e oito senadores. A despeito disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou aumento no número de eleitoras e candidatas, as quais já representam 52,13% dos 142.822.046 eleitores[5].

Em termos de presença feminina em parlamentos, o Brasil só está mais bem colocado que Haiti, Belize e São Cristóvão nas Américas e no Caribe[6]. Esse quadro permite associar a pobreza e o subdesenvolvimento   à existência de instituições não inclusivas em sociedades despreocupadas com a realização da igualdade material, sendo necessário admitir que há algum problema com as condições de acesso das mulheres aos cargos de poder[7].

O espaço ocupado pela mulher nas instituições legislativas ainda reflete o domínio do homem no espaço doméstico e a violência dispensada a elas nesse ambiente[8]. Como esclarece Janet Halley, professora de referência da Universidade de Havard, “ainda há lugares onde a dominação masculina tem um personagem muito familiar, estrutural e imobilizado e acho que precisamos do feminismo para nos ajudar com isso.”[9][10].

Alguns mínimos avanços, contudo, já podem ser registrados no que concerne à igualdade de gênero no cenário do legislativo federal. Dos onze cargos na Mesa Diretora, um já é ocupado pela senadora Ângela Portela e a Ouvidoria do Senado é comandada pela senadora Lúcia Vânia. Pela primeira vez, a Comissão Mista de Orçamento é presidida por uma mulher: a senadora Rose de Freitas. 

Em 2009, a Lei Eleitoral nº 9.504/1997 foi alterada pela Lei 12.034, passando a prever o percentual mínimo de 30% e, máximo, de 70% de candidatos do mesmo gênero do total de candidatos registrados por um partido ou coligação[11]. Em 2015, foi apresentada pela Senadora Vanessa Grazziotin, a Proposta de Emenda Constitucional nº 23 de 2015, acrescentando o art. 16-A à Constituição Federal, para destinar 50% das vagas na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Câmaras Municipais para cada gênero, na forma da lei[12].

Segundo a Senadora, a lei 9.504/1997, com alteração feita pela Lei 12.034/09, mostrou-se pouco efetiva devido ao fato de os partidos serem dominados por homens. Esclarece que os partidos preenchem as vagas com mulheres, mas grande parte delas compõe apenas a chamada “candidatura laranja” – qualquer pessoa, como funcionárias e parentes, é indicada, apenas para colocar o nome e os partidos não serem penalizados pela Justiça Eleitoral. Aduz ainda que poucas são as mulheres que têm candidatura de fato e, quando têm, elas não acessam os recursos partidários para fazerem sua campanha.

Desde 15 de dezembro de 2015, a proposta de emenda à constituição se encontra pronta para análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. A proposta de medidas legislativas para ampliar o espaço da mulher no legislativo ainda recebe pouco apoio, mas sua existência já é um indicativo positivo da tentativa de se formar um parlamento, ainda que do ponto de vista da composição, um pouco mais democrático.

No Poder Judiciário, existem diferentes retratos quanto à equidade de gênero. Não são conhecidas as causas exatas, mas enquanto existe uma relação próxima da paridade na justiça do trabalho e nas defensorias públicas, a magistratura federal se apresenta, em contraposição, como o segundo ramo mais masculino, ficando atrás apenas da justiça militar estadual. As mulheres são hoje 26% da força de trabalho da magistratura federal. No âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a média se reduz ainda mais e passa-se a contar com um percentual de aproximadamente 20% de participação feminina. Há, inclusive, tribunal que não possui nenhuma mulher em sua composição, como é o caso do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que engloba seis estados do nordeste brasileiro[13]. Na Justiça estadual, temos 34,5% de juízas de direito[14].

Nas cúpulas do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal há um percentual de 18% de Ministras. Apenas em 1990 uma mulher passou a compor uma alta Corte brasileira, com a posse de Cnéa Cimini Moreira no Tribunal Superior do Trabalho. Em 2007, a ministra Maria Elizabeth Rocha, no Superior Tribunal Militar e, em 2013, a ministra Eliana Calmon, na condição de presidente interina, foi a pioneira no Superior Tribunal de Justiça, hoje presidido pela ministra Laurita Vaz[15].

No Supremo Tribunal Federal, somente dois dos quarenta e cinco membros que ocuparam a presidência da corte era do sexo feminino. Ellen Gracie, a primeira mulher a compor o STF e também a presidi-lo, tomou posse apenas em 2000 e em 27 de abril de 2006 empossou-se no cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal[16]. Cármen Lúcia foi empossada em 21 de junho de 2006, tornando-se a segunda mulher nomeada ao cargo de ministra do Supremo Tribunal Federal, e desde setembro de 2016, é a presidente da suprema corte. Coube, então, à ministra Cármen Lúcia ser a primeira mulher a presidir um pleito eleitoral no país, ao comandar o TSE entre 2012 e 2013.

A baixa presença feminina na magistratura federal, concretizada na relação de uma mulher para cada três homens mostra que o Poder Judiciário Federal ainda não é uma instituição pluralista e inclusiva, na prática. Assim como ocorre em outras carreiras jurídicas, superada a etapa inicial de acesso, a invisibilidade feminina tende a se acentuar na medida em que se afunilam as posições. Embora seja detectável pela simples análise dos números apurados quanto à progressão na carreira, este “teto de vidro” possui razões não exploradas, mas podem ser amenizada por meio da adoção de medidas de correção, legislativa ou até constitucional que promovam a inclusão da mulher no Poder Judiciário.

Os dados existentes se resumem, em linhas gerais, ao censo do Conselho Nacional de Justiça do ano de 2014. São poucas as evidências empíricas quanto à trajetória das juízas após a posse. Não se sabe, em que grau, superada a forma de ingresso que se supõe neutra e meritocrática, as mulheres são convidadas para tomar parte em posições de poder ou a relação que se estabelece entre estas posições e as futuras promoções para cargos como o de desembargador.

O panorama apresentado provoca reflexão sobre a importância de voltar o olhar para o futuro, para a necessidade de se afastar as barreiras invisíveis do preenchimento dos espaços públicos de poder pela mulher. Um dos 17 objetivos estabelecidos pelos 193 estados membros das Nações Unidas para a nova agenda de Desenvolvimento Sustentável para 2030 prevê a promoção da Igualdade de Gênero e o empoderamento de meninas e mulheres.[17]A preocupação se justifica por que as instituições pluralistas e inclusivas são anunciativas de um circulo virtuoso de prosperidade e riqueza como se verá adiante.


Contribuição de Daron Acemoglu e James Robinson – “neoinstitucionalismo” no debate

 Na obra “Por que as nações fracassam. As origens do poder, da prosperidade e da pobreza.”, Daron Acemoglu e James Robinson, professores de referência do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade de Chicago, demonstram que a causa da extrema pobreza em países subdesenvolvidos está nos governos compostos por uma pequena elite que organizou a sociedade em função de seus próprios interesses. Essa estrutura de poder é adotada em detrimento da massa da população e o poder político estritamente concentrado é utilizado para gerar riqueza para aqueles que já a possuem.

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Sustentam, por outro lado, que países ricos enriqueceram porque seus cidadãos derrubaram as elites que controlavam o poder e criaram uma sociedade cujos direitos políticos foram distribuídos de maneira ampla. Neles, a grande massa da população teve condições de tirar vantagens das oportunidades econômicas, as pessoas lutaram por mais direitos políticos e os conquistaram usando-os para ampliar suas oportunidades econômicas[18].

A incursão pela obra de Acemoglu e Robinson interessa ao presente artigo por contribuir para a busca de soluções para o preenchimento de espaços públicos pela mulher, sobretudo no Poder Judiciário. Ao demonstrar que o desenvolvimento de instituições inclusivas é acompanhado de melhorias econômicas, estimula a criação de medidas de inclusão da mulher nos espaços de poder.

Para os autores, o pluralismo é a pedra angular das instituições políticas inclusivas e demanda ampla distribuição do poder político pela sociedade, o que exige um processo de empoderamento num contexto de países marcados por instituições extrativistas onde há concentração de poder nas mãos de uma elite estrita. Mergulhando no passado e estudando a dinâmica histórica das sociedades, relatam que um dos pontos centrais para a mudança no sul dos Estados Unidos, na década de 1950, foi o empoderamento dos americanos negros da região e o fim do domínio irrestrito das elites sulistas. A coalização entre os negros do sul e as instituições federais inclusivas dos EUA produziu uma poderosa força no sentido de repudiar o extrativismo sulista, fortalecer direitos civis e políticos igualitários, eliminando os obstáculos ao crescimento econômico da região. [19]

A Suprema Corte determinou que as instituições educativas sulistas, entre elas a Universidade do Mississippi, em Oxford, fossem dessegregadas[20]. O efeito de todos esses acontecimentos foi uma mudança significativa nas instituições econômicas e jurídicas do Sul: a queda da discriminação contra os negros aumentou as oportunidades educacionais para essa parcela da população e o mercado de trabalho sulista tornou-se mais competitivo, gerando melhorias econômicas mais aceleradas na região[21].

Segundo os autores, em um contexto pluralista, nenhum grupo deseja ou se atreve a derrubar outro poder, por receio de que seu próprio poder seja desafiado futuramente. Mas ressaltam que instituições políticas e econômicas inclusivas não surgem de maneira espontânea – daí por que se propõe no presente texto a adoção de medidas legislativas que viabilizem a transformação do Poder Judiciário em uma instituição inclusiva. As instituições inclusivas, ressaltam, surgem durante circunstâncias críticas, quando uma série de fatores enfraquece o poder das elites e incentiva a formação de uma sociedade pluralista, criando um círculo virtuoso, um processo de feedback positivo[22].

O pluralismo, ao contrário do que pode parecer, reforça o princípio do estado de direito, de que as leis devem ser igualmente aplicadas a todos e não podem ser usadas por determinado grupo para violar direitos de outros. Ao trazer a ideia de que as pessoas devem ser iguais não apenas diante da lei como também diante do sistema político, estimula a maior participação também no processo político. As instituições políticas inclusivas apoiam e são apoiadas por instituições econômicas inclusivas, que anulam as relações econômicas extrativistas, de exploração – como a escravidão e servidão, os monopólios -, reduzindo os benefícios econômicos auferidos individualmente mediante a usurpação do poder político[23]. As instituições políticas inclusivas criam ainda um outro mecanismo de controle – o fortalecimento de uma imprensa livre – que fornece informações a respeito de eventuais ameaças às instituições inclusivas.

Os mecanismos do círculo virtuoso decorrente de instituições econômicas e políticas inclusivas alimentam uma poderosa tendência das instituições inclusivas persistirem, resistindo aos desafios e se expandindo. Já as instituições extrativistas engendram forças igualmente intensas no sentido de sua própria sobrevivência, criando um processo de círculo vicioso[24]. Para os autores, instituições políticas extrativistas produzem instituições econômicas também extrativistas, que promovem a riqueza de poucos em detrimento de muitos. Esses poucos utilizam os recursos para montar seus próprios exércitos privados, reunir mercenários a seu serviço e manipular eleições para se perpetuarem no poder[25].

A visão de Acemoglu e Robinson acerca da origem do poder, da prosperidade e da pobreza importa para a defesa de instituições pluralista, mais precisamente de um Poder Judiciário inclusivo. As distintas visões, influenciadas por diferenças biológicas, culturais e de experiências de vida, podem enriquecer o sistema de justiça e contribuir, de algum modo, para um processo de círculo virtuoso.

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Sobre a autora
Gabriela Macedo Ferreira

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Processual Civil pelo Jus Podivm, Juíza Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gabriela Macedo. Magistratura e equidade: uma análise sobre a participação feminina nos tribunais brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5261, 26 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61984. Acesso em: 18 abr. 2024.

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