Em meio a um cenário de avassaladoras notícias de prática de corrupção que se reiteram, sem pausas, e cuja extrema gravidade se agrega à quantidade de agentes públicos nelas envolvidos, gerando um quadro que reclama, constantemente, a tomada de providências jurídicas urgentes, quer no âmbito policial, quer no âmbito judicial, surge, como mais uma aberração, a descabida aprovação, na quarta-feira (8/11), em Comissão Especial da Câmara dos Deputados, da PEC 181/2011, acertadamente batizada com o nome de “PEC Cavalo de Troia”, pretendendo criminalizar a prática de aborto relativo à gravidez decorrente do hediondo crime de estupro.
O despropósito da pretensão é de tal magnitude que provoca a movimentação e a reação dos mais variados setores da sociedade civil, quer de organizações ligadas ao universo da mulher, quer de outras vozes, algumas individuais, outras coletivas, todas expressivas e eloquentes, empenhadas em fazer “abortar”, imediatamente, a tentativa de retrocesso.
Retrocesso visível nos planos jurídico e ético, a proposta fere direitos humanos, fere liberdades individuais, desrespeita até mesmo o direito que todo ser humano tem à sua própria integridade física. Proposta que prevê criminalização de ato legítimo — que o Direito Penal brasileiro já consagrara há quase oito décadas — jamais poderá ser acolhida.
O legislador de 1940, agindo com sensatez e equilíbrio, acolheu possibilidades de aborto em situações altamente gravosas, a saber, nas hipóteses de gravidez decorrente de estupro (o chamado aborto sentimental) e de gravidez com riscos para a gestante (o chamado aborto terapêutico). A essas previsões legais somou-se, recentemente, em 2012, a legalidade do aborto cometido nas hipóteses de anencefalia do embrião.
Ressalte-se que, em se tratando de aborto relativo à gravidez decorrente da prática do violento crime de estupro, as normas jurídicas vigentes permitem que a gestante decida se deseja ou não fazer o aborto, deixando a seu critério, como titular da própria integridade física e do próprio corpo, a decisão, cujas consequências interferem direta e fisicamente em sua vida. Se, mesmo diante do crime de estupro contra si praticado, a mulher deliberar dar à luz, ela o estará fazendo conscientemente, amparada pela lei e, evidentemente, assistida pelo Estado. Mas tem em suas mãos o poder de decidir.
A norma ampara e respeita — como deve ser — o direito da mulher, que, se forçada a conviver com o fruto de ato vil e indigno como é o estupro, estará sendo violentada todos os dias da vida, sendo obrigada a conviver com a prova carnal do ato bárbaro e selvagem a que foi submetida.
O delito de estupro é a expressão máxima da selvageria e do desrespeito à mulher. Vilipendia, fere, humilha, menospreza a dignidade da mulher, sua liberdade, seu corpo, sua integridade física. Acresce registrar que a maior parte das vítimas de delitos contra os costumes são muito jovens, adolescentes, quase meninas, cuja estrutura orgânica, na maior parte das vezes, sequer suporta sem consequências as alterações provocadas por uma gravidez tão prematura.
Ademais, são sobejamente conhecidas as mazelas familiares e financeiras que orbitam em torno desse quadro. Muitas vezes, o autor do estupro é um vizinho, parente próximo, amigo da família, que não somente dá as costas para a ofendida como chega a insinuar — e sabemos que isso não é raro — que a “culpa” pelo crime doloso é da vítima e que ele apenas seguiu sua natureza selvagem. Com esse comportamento cínico, muitas vezes os ofensores cometem a segunda violência contra as vítimas, desta vez moral, num cipoal de torpeza.
Noutras vezes, as famílias restam destroçadas, pela intransigência de pais que não aceitam a existência do crime, fecham os olhos para a realidade e fazem triste e deprimente coro aos que imputam responsabilidade à ofendida. Essa é a realidade. É essa a cruel verdade que está nas ruas, nas cidades, nos fóruns, nos centos de saúde, nas delegacias policiais.
É óbvio que nem todas as mulheres pensarão dessa forma. Algumas, por razões de foro íntimo — que não incumbe ao Estado perquirir nem investigar — poderão desejar ter o filho, mesmo em decorrência do infortúnio. Se assim o desejarem, quer por razões psicológicas, quer por motivos de ordem religiosa, são também livres para não interromper a gravidez.
A possibilidade de decisão, presente na lei penal vigente, é outorgada pelo Direito natural, pois não se concebe que o Estado, ou qualquer pessoa ou autoridade religiosa, possa interferir na decisão da gestante. A proposta contida na PEC 181 é artificial e sem razão de ser. Aberractio.
Se terceiros não podem interferir, também não poderão influir para que a proibição do aborto, nos casos citados, se materialize.
O que se destaca na lei penal vigente é que a decisão pertence à titular do direito, a mulher.
A terceira hipótese em que o Direito brasileiro autoriza o aborto deriva de decisão jurisdicional, e não do texto legal. Decorre da decisão proferida em 2012, pelo Supremo Tribunal Federal, que julgou procedente ação de inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Também nessa hipótese o retrocesso deve ser rechaçado, pela evidente violência que também traria à vida da gestante.
Concluindo, ao relembrarmos que a PEC 181 originalmente se destinava à ampliação de direitos trabalhistas, entre os quais o aumento do tempo de licença-maternidade para mães de filhos prematuros, afigura-se totalmente descabida a inserção, em seu bojo, da proposta aviltante de criminalizar condutas já consideradas legais, pela legislação vigente.
Em pleno desenrolar do século XXI, a dignidade da mulher não pode ser, irresponsavelmente, objeto de redução ou afronta. Penalizar ainda mais as vítimas de atrocidades, como as violências sexuais, é outorgar poder à barbárie. A plenitude dos valores e dos ideais democráticos reclama de todos os cidadãos um veemente e ostensivo repúdio à PEC 181.