Delegado de polícia e o controle do poder punitivo estatal:

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V.Consequência:

                Considerando que a polícia militar não tem atribuição constitucional para a lavratura de Termo Circunstanciado de Ocorrência o ato praticado é nulo. Nesse sentido Por Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr[12]:

Nesse contexto, uma vez considerada a incompetência da Polícia Militar para a lavratura de Termo Circunstanciado, deve ser reconhecida, por via de consequência, a nulidade do ato expedido, porquanto constatado vício insanável. Como se sabe, tem-se como requisito de validade do ato administrativo a emissão por sujeito competente, não divergindo, seja doutrina, seja jurisprudência, nesse particular. Assim, necessária a desconstituição de todos os atos já praticados, porquanto "o reconhecimento, em juízo, da nulidade do ato (...) opera efeitos ex tunc"(STJ, REsp 293.840/RS), ou seja, retroage às suas origens. Assim, considerando a nulidade do Termo Circunstanciado lavrado por policiais militares, e que tal invalidade perpassa por todos os atos processuais subsequentes (efeito ex tunc), contaminando o feito de forma insanável (CPP, art. 573, § 1º), o abuso do Estado, por seus agentes deve ser reconhecido, tornando sem efeito qualquer consequência jurídica. Não é por acaso que Zaffaroni afirma que “a mais óbvia função dos juízes penais e do direito penal como planejamento das decisões judiciais é a contenção do poder punitivo. Sem a contenção jurídica (judicial) o poder punitivo ficaria liberado ao puro impulso das agências executivas e políticas e, por conseguinte, desapareceriam o estado de direito e a própria república”.[iv] É o que se espera do magistrado em nosso cenário democrático-constitucional, não se admitindo qualquer flexibilização da forma – que é garantia – sendo impensável que se exija demonstração de prejuízo para o acusado para caracterizar a existência de nulidade.[v]

É preciso abandonar a crença infundada na bondade do poder punitivo. A contenção do poder punitivo é uma exigência irrenunciável para a concretização do Estado Democrático de Direito. Cuida-se de colocar cada personagem do sistema penal em seu lugar respectivo, ou seja, no seu quadrado. É nesse sentido que o Estado Democrático de Direito deve ser compreendido como o que submete todos os habitantes à lei, em oposição ao Estado de polícia, no qual todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam.[vi] O desenho constitucional não pode ser modificado por conveniência e oportunidade, dado que o exercício de funções não previstas em lei e, no caso, em desconformidade com a Constituição da República, afeta a matriz do Estado Democrático de Direito. Aceitar o contrário seria reconhecer que todos os órgãos podem usurpar todas as funções e, assim, tornar sem sentido as distinções constitucionais. Cada um no seu quadrado é o comando constitucional. Quem não respeita, no afã puniendi, anula o que faz, mesmo que de boa-fé.

                No mesmo sentido Henrique Hoffmann[13] :

Os Tribunais Superiores igualmente entendem que são nulas as provas colhidas com desrespeito à divisão constitucional de atribuições, em manifesto abuso de poder:

A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art.5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em consequência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene retentum". (...)

Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação (STF, RHC 90.376, Rel. Min. Celso de Mello, DP 03/04/2007).

                Também Ricardo Cintra[14]:

Todos os elementos produzidos arbitrariamente pela Polícia Militar consubstanciam-se em provas ilícitas, que devem ser amputadas dos autos. Essa exclusão dos elementos imprestáveis é claramente uma forma de garantir o respeito a direitos fundamentais, e de evitar que os tribunais se tornem cúmplices da ilegalidade, assegurando ao povo que o Estado agirá dentro da lei e não poderá ter benefícios quando agir fora dela.

                Professor Henrique faz distinção das consequências[15]:

                Consequência para o Estado:

O Brasil foi condenado pela CIDH, no Caso Escher, exatamente porque um policial militar do Estado do Paraná usurpou as atribuições da polícia judiciária, o que gerou uma indenização de U$ 30.000,00. Quem arcou com o custo não foi o miliciano usurpador, mas sim a inocente população brasileira. Além desse caso emblemático envolvendo o Brasil, motivo de vergonha para todos os brasileiros, a CIDH possui outros julgados condenando os Estados que ousam promover investigações despóticas[16].

                Para os Agentes Públicos:

As consequências do desrespeito à Constituição Federal, aos tratados internacionais de direitos humanos e à legislação infraconstitucional não ficam somente no campo da ilicitude da persecução penal. Os agentes públicos que se arvoram no direito de exercer atribuição não conferida pela Lei Maior praticam ato ilícito, tanto penal como civil.

A doutrina indica que o policial que insistir na inconstitucionalidade poderá incorrer no crime de usurpação de função pública (art. 328 do CP) e abuso de autoridade (art. 3º, a da Lei 4.898/65), como já assentou inclusive o Supremo Tribunal Federal:

A atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar.

Quanto ao delito estampado no art. 328 da Lei Repressiva, ensina a doutrina:

O Estado tem interesse em preservar incondicionalmente a escolha e a investidura das pessoas a quem são confiados os cargos públicos e o exercício das funções públicas. Destarte, não se admite o comportamento daquele que afronta esta prerrogativa do Poder Público, sujeitando-se o infrator às sanções cabíveis. Entra em cena o crime de usurpação de função pública.

Usurpar o exercício de função pública é investir-se nela e executá-la indevidamente, arbitrariamente, sem possuir motivo legítimo para tanto. (...)

O funcionário público pode ser autor do delito, desde que usurpe função distinta da sua, como no exemplo em que um escrivão realiza atos privativos do Delegado de Polícia. Em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Com relação ao crime plasmado na Lei 4.898/65, eis a lição doutrinária:

Agem as autoridades no intuito de prevenir e reprimir a prática de crimes, hipótese em que está configurado o estrito cumprimento do dever legal. Obviamente que elas devem agir dentro dos rígidos limites de seu dever, fora dos quais desaparece essa excludente da ilicitude.

Noutro giro, saindo da esfera penal, tem-se que a Lei 8429/92 prevê três espécies de atos de improbidade administrativa: 1) os que importam em enriquecimento ilícito (art. 9º), 2) os que causam prejuízo ao erário (art. 10) e 3) os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).

Vejamos a modalidade trazida pelo art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

A doutrina ensina que:

O art. 11 da Lei Federal n. 8.429/92 funciona como regra de reserva, para os casos de improbidade administrativa que não acarretam lesão ao erário nem importam em enriquecimento ilícito do agente público que a pratica. Compreende-se que assim seja, visto que o bem jurídico tutelado pelo diploma em questão é a probidade administrativa, objetivo revelado no art. 21, quando aventa a possibilidade de se caracterizar ato de improbidade, ainda que sem a ocorrência do efetivo prejuízo.

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Para a configuração da referida improbidade, a doutrina e jurisprudência majoritárias exigem a presença do elemento volitivo consubstanciado no dolo, de modo que nem toda ilegalidade é sinônimo de improbidade.

Não se falaria em dolo, e consequentemente em improbidade administrativa, apenas se o agente público apresentasse justificativa razoável para a ilicitude praticada, explicação essa que ocorre geralmente em casos de condutas omissivas, não sendo o caso em tela.

Na situação em exame, em que o agente público é avisado para que se abstenha de usurpar função a ele não conferida constitucionalmente, porém delibera em continuar na esfera da ilicitude, resta evidente a má-fé. Confira-se o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:

O réu menospreza os princípios constitucionais aos quais deve obediência no exercício do múnus público que lhe foi outorgado, demonstrando não ter a moralidade necessária àqueles que devem ocupar ou permanecer em cargos públicos. Nesse contexto, a pena de suspensão dos direitos políticos não se mostra desproporcional, mas, ao contrário, necessária.


VI. Conclusão:

                O professor Ives Gandra Martins[17] citando o mestre José Afonso da Silva demonstra a diferença do tratamento constitucional quanto à função das polícias:

Em outras palavras, as polícias civis e militares, fundamentais para manutenção da segurança pública, têm funções nitidamente delimitadas na legislação superior, ou seja, nos dois respectivos parágrafos (...) [18].

                Importante destacar que não se trata de discutir o conceito de Autoridade Policial muito bem ensinado pelo mestre Hélio Tornaghi[19]. A questão é prévia. É de constatar, como muito bem reconhecido pelo Supremo no julgamento da ADI 3416 PR[20], quando o Ministro Cezar Peluso alerta: ‘o problema grave é que, antes da lavratura do termo circunstanciado, o policial militar tem que um juízo jurídico de avaliação dos fatos que lhe são expostos’. Sendo seguindo pelo Ministro Celso Mello que expressa ‘mas o que se mostra grave, aí, são as consequências jurídicas que decorrem, exatamente, da elaboração do termo circunstanciado de ocorrência, e finaliza o Ministro Meneses Direito ‘é exatamente dessa avaliação jurídica. Isso que é o grave’.

                Em síntese, o Delegado de Polícia Daniel Valença[21] conclui:

O Termo Circunstanciado de Ocorrência lavrado pela polícia militar não traz celeridade ao conflito sendo constatada nos locais onde isso ocorre o elevado retorno dos procedimentos a Delegacia de Polícia para complementação de diligências.

A lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência não gera prestigio ao policial militar muito pelo contrário, a pessoa pode inclusive praticar crime contra o policial e o máximo que ele poderá fazer é o registro e permanecer com o infrator no local.

A vítima ficaria totalmente desprotegida e a permanência do autor no mesmo local geraria uma situação de insegurança.

                Outros argumentos extrajurídicos como: deslocamentos até o plantão gera desfalque no policiamento ostensivo, analise realizada nos sistemas policiais verificam sua inconsistência, considerando o baixo índice de ocorrências (cerca de ¼), uma média de 1,64 expedientes lavrados nas sessenta e oito unidades de plantão da Polícia Civil de Minas Gerais, importante destacar que os militares após entregarem a ocorrência e o conduzido são liberados imediatamente, como regra.

                A Constituição da República Federativa do Brasil definiu as atribuições das polícias, o direito internacional em total compatibilidade com a Bíblia Política veda a investigação de civis por militares, também a legislação infraconstitucional. O Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos têm entendimentos nessa mesma linha. A violação dessas normas pode gerar efeitos civis, penais e administrativos.

                Nunca é demais lembrar o constitucionalista Ronald Dworkin que alerta que devemos levar os direitos a sério.

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Sobre os autores
Sergio Luis Lamas Moreira

pós-graduado em Direito Constitucional pelo Centro de Ensino Renato Saraiva/Estácio de Sá, graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Delegado de Polícia em Minas Gerais, autor de artigos jurídicos.

Carlos Eduardo

pós-graduado em Direito Constitucional pelo Centro de Ensino Renato Saraiva/Estácio de Sá, bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora e em Administração e Marketing pela Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora, autor de artigos jurídicos

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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