Considerações Finais
As recentes manifestações em escolas e universidades públicas do Brasil, com ocupação de prédios, reitorias e paralisação de aulas, podem ser interpretadas à luz dos conceitos de liberdade apresentados acima. Afinal, o direito de manifestar-se em locais públicos — o que seria elogiado por Hannah Arendt — sobrepõe-se ao direito individual de alunos continuarem a estudar, o que restringiria a liberdade negativa, segundo Isaiah Berlin?
O conteúdo político das invasões (ou ocupações) de prédios públicos, em um primeiro momento, poderia ser visto como “desobediência civil”, pois há identidade de interesses entre os envolvidos e o questionamento acerca da legitimidade do governo (ARENDT, 1999, p. 55;64). Todavia, Arendt poderia vislumbrar que o uso da violência nas manifestações — exemplificado pelos choques com a polícia e a morte de um estudante em uma escola estadual no Paraná — demonstram que a ação política é enfraquecida para a geração de poder.
Isaiah Berlin, por sua vez, também não aplaudiria os meios violentos para atingir determinados objetivos dos manifestantes. Da mesma forma, poderia refletir que restringir o acesso da comunidade a escolas e universidades vai de encontro com o espírito de liberdade por ele sustentado, pois a defesa da liberdade consiste, segundo Berlin, na meta “negativa” de evitar a interferência (op. cit., 234). Nesse sentido, a imposição de liberdade positiva por manifestantes bloqueia as liberdade individuais de ir e vir dos demais, o que se mostra nocivo à sociedade civil.
Em seu ensaio clássico dedicado a Tolstói, “O ouriço e a raposa”, Berlin estabelece duas categorias para as personalidades artísticas e intelectuais, levando-se em conta o verso do poeta grego Arquíloco, que diz “a raposa conhece muitas coisas, mas o ouriço conhece uma única grande coisa”.
Assim, de um lado, temos Platão, Dante, Dostoiévski e Nietzsche como “ouriços", pois relacionam tudo a uma única visão central, um único sistema, menos ou mais articulado, em função do qual compreendem, pensam e sentem; por outro lado, temos Heródoto, Aristóteles, Montaigne, Goethe, Joyce, entre outros, como "raposas", que buscam muitos fins, cujos pensamentos são dispersos ou difusos, analisando uma imensa variedade de experiências e objetos, sem procurar ajustá-los a qualquer visão interior unitária (BERLIN, 2013, p. 24-5).
A partir das duas classificações, Lafer observa que tanto Arendt quanto Berlin são “raposas", pois as reflexões nas obras de ambos demonstram assegurar “um mundo comum, assinado pelo pluralismo e pela diversidade e vivificado pelo novo que só o exercício da liberdade permite” (op. cit., p. 146). Liberdade e pluralismo são, portanto, preocupações compartilhadas pelos dois, que se dedicaram a avaliar e entender a singularidade de pessoas e situações.
Ainda que a liberdade tenha sido o conceito analisado no presente artigo, é possível traçar outros paralelos nas obras de Arendt e Berlin, como em relação à tradição judaica após o surgimento de Israel e à crítica de ambos aos regimes totalitários. De toda forma, ao enfocarmos o conceito de liberdade no pensamento de ambos os autores, verifica-se o quanto havia necessidade, após os horrores da Segunda Guerra, de recuperar-se a importância do significado de "ser livre" após o advento do totalitarismo.
Denota-se, contudo, que as primeiras décadas do século XXI ainda nos traz desafios — no Brasil e no mundo — para que que a liberdade seja defendida na esfera política. Nesse sentido, tanto Hannah Arendt quanto Isaiah Berlin, muito ainda contribuem para uma reflexão — um “parar para pensar”, como afirmaria Arendt — acerca do que ocorre no relacionamento entre seres humanos que se interagem em espaços públicos.
Referências Bibliográficas
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