É feminicídio, não se engane!

Leia nesta página:

O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre a utilização da expressão “crimes passionais” nos feminicídios íntimos pelos atores do sistema de Justiça e pela mídia brasileira.

INTRODUÇÃO:

O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre a utilização da expressão “crimes passionais” nos feminicídios íntimos pelos atores do Sistema de Justiça e pela mídia brasileira, buscando compreender a definição dessa categoria pela doutrina, conhecer as implicações políticas de seu emprego no enfrentamento à violência contra as mulheres e desnaturalizar a utilização do termo após a alteração do Código penal com a inserção da qualificadora do feminicídio. 


DO CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO:

A violência contra as mulheres é fruto de um patriarcado milenar em que os papéis sociais das meninas e dos meninos são determinados desde a concepção. Os pais, imediatamente após saber o sexo biológico da criança, iniciam um processo de escolhas para e pelo filho. Quarto cor-de-rosa para a menina, que será ensinada a ser frágil, sensível, mãe, submissa, com direito de chorar livremente. O azul, para o menino, que cedo aprenderá que homem não chora, que deve ser forte, protetor e dominador.

É nesse espaço marcado por padrões heteronormativos que surge a violência, pois, ainda que biologicamente diferentes, a Constituição Federal e Tratados Internacionais nos aproxima quando reconhece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e que a violência contra as mulheres constitui grave violação de direitos humanos. Assim, a supervalorização dos papéis masculino em detrimento aos femininos é fato gerador e perpetuador da violência contra as mulheres sob a perspectiva de gênero.

Um dos maiores desafios para as mulheres na atualidade é a materialização e manutenção de direitos que vimos conquistando através de lutas e resistências. Há todo momento temos que nos manter vigilantes sobretudo em momento de flagrante retrocesso às políticas públicas já estabelecidas.

Nesta toada, revistaremos os homicídios passionais: avanço, retrocesso ou manutenção de ordem social?


DA CONCEITUAÇÃO DO CRIME PASSIONAL

O código criminal de 1830 isentava de pena aquele que matasse sua esposa sob domínio de emoção. O artigo 252, expressamente estabelecia pena de prisão e trabalhos para os adúlteros, especificando que à mulher adultera só se aplicaria a pena “se estivesse viva”, restando evidente o direito do marido em matá-la para assegurar sua honra.

Como exemplo do nível que a perversa democratização da violência sofrida pelas mulheres alcançou, no ano de 1873, no estado do Maranhão, temos o caso do Desembargador Pontes Figueira, que, apaixonado por uma jovem de 15 anos, a matou após ter seu pedido de casamento negado.

A expressão crime passional ou homicídio passional ganhou notoriedade na década de 60 quando o playboy Doca Street, por não suportar o fim do relacionamento que mantinha com Ângela Diniz, a assassina, e ao se defender, diz que o fez por amor.

A doutrina conceitua homicídio passional como sendo aquele onde o agente, homem ou mulher (ainda que as estatísticas venham demonstrando ano após ano que as mulheres são as maiores vítimas), impelido pela não retribuição ao amor que o mesmo sente, assassina a vítima por vil sentimento.

Matar por amor é uma justificativa que encontra ressonância em grandes clássicos da literatura, como Otelo de Shakespeare, que, após matar Desdêmona, justifica sua ação: “(...)digam de mim que sou um honorável assassino, se assim preferirem; pois eu nada fiz por ódio, eu tudo fiz por honra”.

A pergunta que norteia esse estudo é: Mata-se por amor? É justificável o amor desencadear uma reação tão descontrolada que leva ao assassinato da pessoa amada?

Crime passional é uma tese construída nos Tribunais pelos advogados criminalistas na busca de absolver assassinos de mulheres sob o sentimento abjeto da paixão. É um conceito contraditório, que traz um paradoxo em si: Amor é vida e não morte.

Busca-se a romantização do crime onde o comportamento do agente é naturalizado e perdoado e a vítima culpabilizada. 

Luiza Nagib Eluf, em seu livro A paixão no banco dos réus orienta que crime passional é muito mais do que ciúmes é um sentimento de posse de exclusividade, uma prepotência que decorre de uma disparidade da condição social do homem e da mulher.


HOMICÍDIO PRIVILEGIADO:

Poderá o homem que cometeu feminicídio ser beneficiado pela tese da legítima defesa da honra e ser absolvido? Ou ter sua pena diminuída pelo privilégio, reconhecido assim que sua ação se deu em nome da paixão que sentia pela mulher que o traiu, abandonou e o rejeitou?

O homicídio privilegiado se constitui numa especial causa de redução de pena autorizada pelos jurados vinculando o magistrado à obrigatoriedade da redução da pena ao realizar a dosimetria da mesma.

Tecnicamente essa minoração é perseguida quando o autor for primário, com bons antecedentes e estar acometido por uma violência emocional. Sim, busca-se demonstrar que circunstâncias psicológicas, morais, sociais e humanas estavam presentes quando do cometimento do crime.

É importante entender que a violenta emoção que o autor do crime alega para justificar seu ato vil, nada mais é do que fruto de um machismo histórico e cultural onde o homem, por não admitir o término do relacionamento, assassina sua (ex) parceira.

Nesse momento invertem-se os papéis. A vítima passa a ser responsabilizada por seu comportamento destoante do papel socialmente construído e esperado pela sociedade, e o homem (lembrando que em menor escala poderemos encontrar mulheres como autora do delito) é perdoado por ter matado por amor.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Não é crível que o “NÃO” da mulher seja justificativa para prática do crime. Sim, pois a injusta provocação exigida pelo privilégio estará, segundo a defesa do autor, no comportamento da vítima.

A qualificadora do feminicídio foi inserida no Código Penal sob dois argumentos: a um, para dar visibilidade ao fenômeno – mulheres são violentadas por sua condição de gênero – que, segundo a Organização Mundial da Saúde, constitui-se numa epidemia; e a dois, para romper com a equivocada, mas tão presente, tese do crime passional nos Tribunais brasileiros.

Assim, não há que se falar em homicídio passional quando o crime for cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino nas situações de violência doméstica e familiar ou quando estiverem presentes o menosprezo ou discriminação à condição de mulher, mas, sim, nos termos do Código Penal, em feminicídio.


O PAPEL DA MÍDIA NOS TRIBUNAIS DO JÚRI:

Não há dúvidas de que a mídia exerce uma forte influência nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida – aqueles que são levados ao tribunal do júri - e não teria como ser diferente, pois estamos frente a julgadores que, em geral, não são técnicos, mas, sim, cidadãos que se alimentaram, até o momento da apresentação dos fatos e das provas pelo Ministério Público e pela Defesa, tão somente dos noticiários reproduzidos pelos canais de comunicação.

Induvidosamente, para uma boa parte da população brasileira, a mídia representa a única forma de acesso às informações. Assim, o que é reproduzido pelos telejornais torna-se realidade. É fato posto.


CONCLUSÃO

Volta-se, assim, à questão inicialmente levantada. Quem ama mata? Sim, mata, porém, imbuído de um sentimento de ódio.

O que nos leva a afirmar a necessidade da não utilização da expressão crime passional, por não encontrar respaldo legal para sua utilização, por naturalizar o comportamento do homem através da romantização da sua conduta e por culpabilizar a vítima.

A morte de mulheres em razão do gênero é feminicídio.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos