Na obra Ética e sociabilidade, o filósofo Manfredo de Oliveira leciona que “a ordem social, ética e política não é um dado da natureza. Só a razão consegue legitimar essa ordem e superar o estado caótico da vida natural, em função da autoconservação dos indivíduos” (1993, p.20). O argumento situa o ser humano no centro da atividade terrena, entregando à dimensão de sua liberdade o protagonismo das ações e transformações históricas necessárias ao bom convívio. Esta circunstância não elide o fato de que o ser humano é um ente coletivamente posto no mundo, estando sua subjetividade adstrita ao interesse coletivo.
Olinto Pegoraro, em Ética é justiça, adverte que “ninguém é ético para si mesmo, mas em relação aos outros e ao mundo exterior” (2002, p.101), significando dizer que, pelo zelo do interesse comum, a ética não deve ser compreendida como algo fruto de decisão exclusivamente subjetiva. A existência de uma convivência pacífica, a realização de uma sociedade sustentada à base do respeito, está diretamente associada a “uma noção de ética e de justiça extensiva a toda coletividade, e não originária do arbítrio de cada pessoa”, ensinara Josaphat Marinho, em Ética, Justiça e Direito (PINHEIRO et al., 1996, p. 128).
Foi com fulcro na premissa em destaque, de que a melhor ordem é a fundada na harmonia social, que, segundo o preâmbulo da Constituição, reuniu-se a Assembleia Constituinte para dar escopo ao Estado brasileiro. Daí fazer sentido quando a Constituição dispõe, no art. 3º, que são objetivos fundamentais da república construir uma sociedade justa e solidária (inciso I), promover o bem de todos... (inciso IV). Não por mero acaso, mas para viabilizar uma ambiência harmonizada, uma coletividade mais equalizada em suas arestas sociais, o Título II providenciou, dentre os direitos e garantias fundamentais, dezenas de normas individuais e coletivas, sociais, políticas. No cerne de toda articulação jurídica, fruto do consenso social, está o princípio da presunção de inocência, consagrado no inciso LVII do art. 5º.
Pelo respeito à natureza democrática que guardam em si, os órgãos do Estado estão intimamente vinculados ao dever de cumprir as normas supremas da nação. O art. 127 da Constituição incumbiu ao Ministério Público de zelar permanentemente pela “defesa da ordem jurídica, do regime democrático...”, por isso, é inadmissível que seus membros ignorem os pressupostos normativos da Constituição, fazendo pouco caso da perspectiva jurídica geral, unicamente para conformar seus interesses subjetivos, políticos e especulativos.
No caso do escarcéu jurídico criado em torno dos recibos de locação apresentados à Justiça pelo Ex-Presidente Lula, demonstrando não ser proprietário do afamado apartamento 121, supostamente objeto de propinada Odebrecht, se a Procuradoria da República paranaense opta por não dar curso à realização de perícia técnica sobre a fé documental, que reconheça a idoneidade do material ou silencie. Desistir, porém, do periciamento após sustentar, com veemência, sobre a certeza de uma dissimulação que não conseguiu provar, e, na contramão do princípio da presunção de inocência, bem como de toda justificativa já concedida pela defesa, excogitar a indecorosa fabulação de que os recibos são “ideologicamente falsos” é um atentado não apenas à racionalidade jurídico-normativa (indisfarçável lawfare), como à ética que deve mover a conduta de qualquer ser humano, sobretudo quando encarregado estatal do cuidado com a harmonia social.