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A justicialidade dos direitos sociais no Brasil

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27/12/2017 às 11:52
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2. Direitos fundamentais e constitucionalismo

Para admitir-se a justicialidade dos direitos sociais, i.e., a possibilidade de os direitos sociais virem a ser reivindicados perante o sistema judicial, impõe-se primeiro a compreensão do que sejam direitos fundamentais. Que são, afinal, os direitos fundamentais? Seriam os direitos fundamentais iguais aos direitos humanos? Há diferença entre ambos? Poderiam ser esses conceitos manejados indistintamente no sistema jurídico? Haveria relação entre direitos fundamentais e direitos humanos? Há implicações de sentido entre esses direitos?

2.1 Os direitos fundamentais e os direitos humanos

Ingo Sarlet aponta distinção entre direitos fundamentais (direito interno) e direitos humanos (direito internacional). Uma distinção meramente dogmática. Os direitos humanos estariam associados a direitos abrigados em documentos de direito internacional. De sua parte, os direitos fundamentais estão associados a direitos que já foram constitucionalizados. Cristalizam na ordem constitucional positiva de um país os discursos emancipatórios em favor da dignidade humana, construídos pela retórica universalista dos direitos humanos. A designação direitos fundamentais descenderia, para o autor, da tradição constitucional alemã, em razão da Lei Fundamental de 1949. [38]

Portanto, a compreensão desses direitos fundamentais de alguma forma está associada à compreensão dos direitos humanos, como horizonte político das utopias emancipatórias. Daí, a importância de se entender o discurso dos direitos humanos.

A história de construção dos direitos humanos corresponde a história das lutas emancipatórias sociais. Nos movimentos revolucionários liberais, que culminaram com declarações em favor da liberdade e da igualdade formal dos indivíduos, os direitos humanos surgem formalmente para expressarem essa incessante busca por justiça. O conjunto de instituições disponibilizadas e os mecanismos de movimentação dessas instituições representam garantias para efetivas conquistas, com permanentes aquisições e refluxos.

Nessa retórica de proteção à dignidade humana, constroem-se estruturas internacionais de proteção e salvaguarda aos direitos humanos, e que passam a ser internalizados nos direitos positivos dos países por meio de tratados internacionais ou pela constitucionalização desses direitos, quando assumem a condição de direitos fundamentais.

Todavia, há leituras críticas aos direitos humanos . Segundo Boaventura, após a segunda guerra mundial, os direitos humanos constituíram parte do arsenal ideológico manejado na guerra fria entre as duas grandes potências bipolarizadas, EUA e URSS. Agora, as forças progressistas, em face do cenário de crise irreversível dos projetos socialistas, recorrem ao discurso dos direitos humanos como guião emancipatório, a partir de uma reinvenção da linguagem de emancipação, desde que sejam claramente entendidas as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental.[39]

Ainda com mais ceticismo em relação ao discurso dos direitos humanos, em relação a sua pretensão crítica, emancipatória e universal, encontra-se Douzinas. Para o autor, os direitos humanos só têm paradoxos a oferecer. Apesar de as declarações internacionais promulgadas por diversos organismos internacionais prescreverem o direito à vida, por exemplo, os noticiários pululam na mídia retratando graves atrocidades cometidas diariamente, com a complacência dos governos; não obstante o discurso piedoso em favor da igualdade e dignidade, estaríamos a viver, segundo o autor, uma época marcada pela concentração de riqueza, pelas desigualdades entre ricos e pobres e pelas desigualdades regionais entre norte e sul. Ao mesmo tempo em que os direitos humanos são articulados como armas de resistências contra a opressão do domínio público e/ou privado, os direitos humanos também são mobilizados estrategicamente pelos países hegemônicos para abrir janelas, pela missão civilizadora, para o horizonte liberal e econômico. Nas entrelinhas dos diretos humanos, estariam a institucionalização das condições de possibilidade da adoção do modelo econômico e político neoliberal, o próprio enfraquecimento das garantias de efetividade dos direitos humanos no plano prático. Douzinas, em artigo publicado em 2008, sobre o “fim” dos direitos humanos, considerada uma síntese de sua conhecida obra de mesmo nome, deixa ao leitor a ambiguidade semântica do termo “fim”, para instiga-lo a descobrir as razões do fim dos direitos humanos ou a pesquisar pelas finalidades dos direitos humanos, verbis:

A moral global e regras cívicas são companheiros necessários ao capitalismo neoliberal. Ao longo dos últimos 30 anos, as regras legais regularam o investimento, o comércio, o auxílio e a propriedade intelectual. O Banco Mundial, o FMI e a OMC impuseram condições de “reestruturação econômica” para o desenvolvimento dos estados pelos contratos de empréstimo e ajuda financeira. Estes estados tem restrita sua capacidade de tomar decisões sobre níveis salariais, educação, saúde e políticas de segurança social, pois ditam a privatização dos serviços públicos e utilidades no comércio aberto, mantendo as políticas de proteção cruciais para os setores agrícola e manufatureiro ocidentais.[40]

Para Douzinas, os direitos humanos teriam por fim, então, manter essa chama da resistência. Como ideário e utopia mobilizados para o resistir à dominação e à opressão pública e privada. Não podem ser cooptados sorrateiramente pelas instâncias de poder governamental ou de corporações, transformando-se em mero ideário político em apologia ao sistema neoliberal ou na versão soft contemporânea da missão civilizadora. E Douzina, apresenta as sete teses:

1. A noção de ‘humanidade’ não possui um significado estático e não pode atuar como fonte de regras morais ou legais;

2. Poder e moralidade, império e cosmopolitismo, soberania e direitos, lei e desejo não são inimigos mortais. Ao contrário, uma amálgama, historicamente específica, de poder e moralidade constituem a ordem estruturante de cada época e sociedade;

3. A ordem pós-1989 combina um sistema econômico que gera enormes desigualdades estruturais e opressão com uma ideologia jurídico-política que promete dignidade e equidade. Esta grande instabilidade está levando ao seu fracasso;

4. O universalismo e o comunitarismo, ao invés de serem adversários, são dois tipos de humanismo dependentes um do outro. Eles são confrontados pela ontologia de igualdade singular;

5. Em sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos despolitizam a política e se tornam estratégias para a publicização e legalização do desejo individual (niilista e insaciável);

6. A virada biopolítica transforma os direitos humanos em ferramentas de controle sob a promessa de liberdade;

7. Em contraposição ao cosmopolitismo do neoliberalismo e do império, o cosmopolitismo vindouro estabelece o último princípio moderno de justiça.[41]

Para o autor, Marx teria sido o primeiro pensador a destacar esse paradoxo dos direitos humanos, demonstrando-o a partir de uma a genealogia dos diretos naturais modernos, reconhecidos nas revoluções burguesas. Para Marx, os direitos naturais teriam sido especificados como símbolo da emancipação individual dos contextos medievais de opressão. Todavia, concomitantemente, os direitos naturais foram estrategicamente desenhados como poderoso arsenal ideológico da emergente classe dominante, a burguesia. Em ascensão, a classe burguesa se serviu desse arsenal ideológico (direitos naturais) como estratégia de naturalização de relações sociais e econômicas dominantes. Essa naturalização ocorreu a partir do momento em que os direitos naturais foram mobilizados para retirar da arena política, que está submetida a contradições e refregas, a propriedade, as relações contratuais, a família, a religião. Ideologias, interesses privados e interesses egoístas parecem naturais e normais no âmbito do bem comum, quando encobertos pelo vocabulário dos direitos.[42]

Os direitos fundamentais constituiriam, para o autor, utopias veladas na consciência história e não deveriam ser tomados como meras e ociosas abstrações normativas. Para Douzinas, o fim dos direitos humanos, assim como o fim do Direito Natural, é a promessa do “ainda não”, da indeterminação da autocriação existencial diante do medo da incerteza e das certezas inautênticas do presente.[43]

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Da crítica marxista, observa-se que de nada adianta a abstrata disposição normativa positivada na ordem constitucional, ainda que demarcadora de horizonte simbólico, se não houver um contexto que estabeleça as condições de possibilidades sociais, políticas, de aplicação prática. Como pontuado por Lorena Freitas falar em ‘direitos’ enquanto garantias formais em tal situação nada mais é do que um discurso ideológico de manutenção do ‘status quo’.[44]

2.2 direitos fundamentais e constitucionalismo

A crítica marxista mostra-se importante para a compreensão de sentido dos direitos fundamentais. Permite uma visão de dinâmica de seu sentido e uma compreensão das tensões sociais que devem ser regulados pelos direitos fundamentais. A compreensão da constituição como processo social abre janelas para compreensão dos sentidos dos direitos fundamentais. E isso reclama uma articulação entre direitos fundamentais e constitucionalismo.

A compreensão dos direitos fundamentais reclama, assim, a percepção do constitucionalismo como novo paradigma do direito positivo. O constitucionalismo, nascido a partir do pós guerra, constitui um sistema de vínculos substanciais, que estabelece proibições e obrigações positivas nas ordens constitucionais. Esses vínculos substanciais se condensariam em princípios, que impõem compromissos a instâncias de poder, inclusive ao legislador, outrora representante da vontade gera da nação e, portanto, ilimitado. [45]

A garantia de efetividade desses vínculos residiria na rigidez das constituições, na necessidade de um processo especial mais rigoroso para reformas constitucionais, que exigiriam maior consistência nos consensos políticos, mediante a previsão de quóruns qualificados.

Essa rigidez constitucional, protegida por um sistema de controle de constitucionalidade remetido a órgãos jurisdicionais, condicionaria a atividade legislativa, não apenas por vínculos formais, mas condicionaria o próprio conteúdo da atuação legislativa. Condicionaria a substancia, o conteúdo da atuação legislativa.[46]

Por essa razão, para Ferrajoli, à luz do constitucionalismo, que repercutiria em toda a teoria do direito, os direitos fundamentais consignados nas cartas constitucionais devem ser garantidos e concretamente satisfeitos, com o máximo grau e efetividade. Não apenas os direitos de liberdade, mas também os direitos sociais em face dos poderes públicos e privados. Em suas palavras:

La historia del constitucionalismo es la historia de una progresiva extensión de la esfera de los derechos: de los derechos de libertad en las primeras declaraciones y constituciones del siglo XVIII, al derecho de huelga y a los derechos sociales en las constituciones del siglo XX, hasta los nuevos derechos a la paz, al ambiente, a la información y similares (...). Una historia no teórica, sino social y política, dado que ninguna de las diversas generaciones de derechos ha caído del cielo, sino que todas han sido conquistadas por otras tantas generaciones de movimentos de lucha y de revuelta: primero liberales, luego socialistas, feministas, ecologistas y pacifistas.[47]

Nessa perspectiva do constitucionalismo, quais seriam os direitos fundamentais? Ferrojoli apresenta três respostas. A primeira, oferecida pela teoria do direito, apontaria que os direitos fundamentais se identificam aos direitos concernentes universalmente a todos, portanto indisponíveis e inalienáveis. Como oferecida pela teoria, a resposta apresenta apenas a definição de direitos fundamentais (que são os direitos fundamentais), mas não designaria quais seriam os direitos fundamentais. Nessa definição, há a apresentação da forma, mas não do conteúdo. A segunda resposta é oferecida pelo direito positivo. Seriam direitos fundamentais os estabelecidos nas constituições e nas declarações universais, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nos tratados internacionais de 1966 e nas demais convenções internacionais sobre direitos humanos. Para a terceira resposta, Ferrojoli apresenta uma pergunta: quais seriam os direitos que deveriam ser garantidos como fundamentais? A resposta à pergunta é formulada pela filosofia política, de modo normativo, mediante critérios meta-éticos e meta-políticos. E assim apresenta três critérios axiológicos, hauridos no processo histórico do constitucionalismo. O primeiro critério concerne ao nexo entre os direitos humanos e a paz. Devem ser garantidos como direitos fundamentais todos os direitos cuja garantia constitui condição necessária à paz: direitos de liberdade, direito à vida e a integridade pessoal, os direitos civis e políticos, os direitos de liberdade, os direitos sociais necessários à sobrevivência. Referem-se aos direitos de resistência. O segundo critério axiológico pertine aos direitos de minoria. Concerne ao nexo entre direitos e igualdade. Direitos sociais como garantidores da redução das desigualdades econômicas e sociais. O terceiro critério se refere ao papel dos direitos fundamentais como leis dos mais frágeis. No duplo sentido, de tutelar as diferenças pessoais e de reduzir as desigualdades materiais.[48]

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Sobre o autor
Carlos Augusto Pires Brandão

Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Piauí (1993), graduação em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986), especialização em direito constitucional pela Universidade Federal do Piauí (2001) e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). Tem experiência na área de Direito e Filosofia do Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Processual, Hermenêutica Jurídica e Sociologia Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Carlos Augusto Pires. A justicialidade dos direitos sociais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5292, 27 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63082. Acesso em: 26 abr. 2024.

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