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A justicialidade dos direitos sociais no Brasil

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27/12/2017 às 11:52
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3. Os sentidos da Constituição de 1988 e os direitos sociais

Como se observa nas passagens acima, a abordagem teórica e prática sobre os direitos sociais não pode prescindir da realidade, do contexto de significados da experiência constitucional, das constrições da realidade social. Nessa dinâmica, não há nada pronto e acabado. Os sentidos políticos e jurídicos que polinizam na experiência constitucional a textura aberta e vaga dos dispositivos constitucionais são construções dos processos sociais. Esses sentidos não são dados pelo legislador constituinte originário, disponibilizados ao labor intelectual de quem interpreta a Constituição. Esses sentidos são construídos nessa articulação incessante entre a institucionalidade constitucionalizada e o contexto conflitual da realidade.

Os direitos sociais surgem na dinâmica da expansão capitalista. Em finais do século XIX, quando a ideologia do laissez faire, laissez passer favoreceu a exploração e opressão da classe trabalhadora, os direitos sociais aparecem como estratégia de atuação do Estado na economia, para reequilibrar os contratos civis e trabalhistas. Surgem quando na revolução industrial, com a implementação de tecnologias, a mão de obra se torna vulnerável sob o pálio da liberdade de contratos. Nessa contexto, de concentração de forças econômicas na classe burguesa, a classe trabalhadora se submete a jornadas de trabalho extenuantes. Os direitos sociais surgem como estratégia de enfrentamento das desigualdades sociais provocadas pelos efeitos colaterais da revolução industrial.

Como os direitos sociais ostentam propósitos transformadores, de atuarem sobre um contexto de desigualdades sociais restritivo à dignidade humana, toda abordagem acerca desses direitos sociais deve, então, articular as proposições normativas com a realidade social. A pergunta pela justicialidade dos direitos sociais passa pela compreensão da Constituição, como programa político, vetorizado para a emancipação humana e social. Perguntar pela justicialidade dos direitos sociais implica perguntar pelo sentido dos direitos sociais, cuja resposta se encontra no âmbito do sentido da Constituição.

A Constituição não é um dado da intuição para exercício intelectual. A Constituição corresponde a um conjunto de práticas de sentido que se institucionaliza no plano prático. O termo “Constituição” é utilizado para designar o conjunto de normas fundantes que compõem o código político de uma comunidade. Em seu texto, encontram-se consolidadas as normas que regulam as relações entre a cidadania e os poderes, as normas sobre legislação e as normas que organizam o poder político.[49]

 Toda constituição é histórica e expressa o modo de vida, a cultura da comunidade política. Abriga em seu texto as correntes ideológicas, os vetores sociais, econômicos, os sentimentos culturais e políticos que matizaram a sua gestação, sua elaboração e promulgação.

A Constituição é um plano normativo regulador da convivência social e política. Traduz um programa político, composto por normas cogentes dispostas a interceder na vida social e política. Como projeto, a Constituição lança no espectro do tempo os consensos primários vetorizados pelas forças sociais, projeta no futuro as decisões fundamentais[50] sobre o exercício do poder, que servirão de balizas ao tráfego de ideias e ao concerto de ações no palco da história.

Toda constituição traz consigo um projeto social e político. Reflete os valores de sua época, tentando projetar no tempo os consensos fundantes da comunidade política, traduzidos e consolidados em texto dotado de normatividade, em princípios e regras. A Constituição norte americana, por exemplo, tinha como foco a independência dos Estados Unidos, enquanto a Constituição francesa de 1789 tinha como foco a derrocada do da ordem social do ancien regime[51]

Em noção mais habitual, a Constituição condensa, de forma sistemática e racional, a ordenação da comunidade política, em que se garantem direitos fundamentais e se estrutura o poder político, conforme o princípio da separação dos poderes. Do ponto de vista filosófico, a constituição reflete no mundo contemporâneo o lema moderno sapere aude, de uma subjetividade projetante, que ilumina o sujeito moderno elaborador dos destinos: os homens são capazes de construir um projecto racional, condensando as ideias básicas desse projecto num pacto fundador — a constituição.[52]

Assim como o direito, de uma forma geral, reflete a vida social dos humanos, a Constituição de 1988 também reflete o seu tempo, a sua história[53]. Toda a mobilização em torno da convocação da Constituinte e da elaboração da Carta Política tem enorme significado político e também jurídico, e deve servir de pano de fundo na experiência constitucional. A Constituição representou conquista política e cultural da comunidade civil, e representa o compromisso político de que essa conquista se projetará no futuro, transmitindo os sentimentos e as esperanças dos processos sociais que culminaram com sua promulgação. Toda abordagem teórica ou prática não poderá afugentar esse espírito participativo e transformador que iluminou a redação de seu texto.[54]

Batizada Constituição Cidadã[55], surgiu em meio à ampla mobilização da sociedade civil[56], que foi a ruas e praças clamando por extinção do regime militar, por liberdade política, democratização, realização de justiça social e afirmação da cidadania. E consagrou o valor da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, como critério e parâmetro de valoração para a vida institucional no país.[57]

A Constituição, em seus 250 artigos, a mais analítica da história institucional brasileira, é minudente no elenco dos novos direitos e garantias individuais e sociais, destacando-os logo nos primeiros dispositivos, levando ao campo jurídico a preservação e a promoção da dignidade humana como horizonte de sentido.

Há na Constituição o aporte de sentimentos políticos que ganham fins pedagógicos e devem orientar a práxis social e cívica, consolidando a experiência constitucional como tradição cultural, que se transmite entre as gerações. A Constituição representa uma espécie de correia de transmissão, desses valores fundantes, no horizonte do tempo. Por ser filha da esperança nacional na democracia, representa uma ruptura em relação ao autoritarismo burocrático e centralista do Estado que vicejou no campo político brasileiro e definiu gramática social, desde os remotos tempos de colônia ibérica, autoritarismo que ganhou uma feição técnico-burocrática no período militar inaugurado em 1964[58].

Essa ruptura política, mediante uma nova programação democrática e republicana, deve implicar mudanças de sentido do direito, da institucionalidade. As leis anteriores em vigência são recepcionadas, mas recebem novos sentidos. As instituições devem ser ressignificadas e sincronizadas com o novo programa politico e social.

O atual discurso constitucional, para além da racionalidade formal e abstrata gestada pela ideologia liberal que desenhou o direito moderno e a pretensa neutralidade política do sistema judicial, confere agora uma proposição programática e substancialista ao direito[59], exigindo uma ressignificação do direito, inclusive em relação ao catálogo de direitos considerados individuais, que passam a ser interpretados na perspectiva da igualdade material, e exigindo uma reprogramação dos sistemas institucionais dedicados a realização do direito, mercê da redefinição funcional e política do sistema jurídico. O direito, agora impregnado de política, assume o sentido de projeto.

Há a positivação do Estado Constitucional. A Constituição Federal estabelece o conteúdo da lei, estrutura os órgão de poder, estabelecendo os procedimentos de acesso e os princípios de seu processamento. A Constituição estabelece os mecanismos de participação nos debates públicos, como também os limites materiais para as deliberações públicas e sociais. A estruturação institucional pretende inviabilizar o exercício de poder além dos limites formais e materiais, trazendo com princípio para a deliberação pública a porosidade dessas instituições à participação[60]. Há, assim, a adoção do Estado constitucional.

A substancialização do direito provocada pela expansão normativa da Constituição, para a regência da vida social e política, imprime uma profunda transformação qualitativa na própria concepção de direito e na atividade jurídica, impregnada pelos novos sentidos políticos. Além dessa pauta substantiva, a Constituição estrutura as instâncias de decisão, disponibilizando os mecanismos de reivindicação de direitos e de acesso à participação social na vida política do País, prestigiando o modelo de democracia participativa[61].

A Constituição se materializa na vida social e política em uma dinâmica de construção de sentidos. Esses sentidos não estão dados previamente. São tecidos nos debates e diálogos por ocasião de questionamentos ou conflitos de interesses. Para abrigar a dinâmica da vida política, a Constituição traz uma textura vaga e aberta para acolher e incluir nos processos de decisão a contribuição dos intérpretes em sentido amplo, que expressam a nossa realidade pluralista. E essa dinâmica de construção de sentido reclama uma dogmática fluida.[62]

Os espaços de interpretação devem ser ampliados e caracterizados como espaços públicos, para admitir o tráfego e a interação de interesses contrapostos, e a decisão não pode ficar a cargo de um exclusivo intérprete público (juiz). O juiz constitucional não pode interpretar de forma solitária. Deve levar em consideração as contribuições dos participantes do processo. Cabe ao juiz, ao decididor, seguir a proposição de Peter Häberle:

La sujeción del juez solamente a la ley, y su independencia personal y material, no pueden ocultar el hecho de que los jueces interpretan dentro de la publicidad y la realidad de la Constitución. Sería erróneo considerar las influencias, las expectativas, los “imperativos” sociales, a los que se ven expuestos los jueces sólo bajo el aspecto de los riesgos que corre su independencia. Estas influencias contienen también un pedazo de legitimación e impiden la arbitrariedad en la interpretación judicial. La garantía de la independencia judicial solamente es soportable, porque otras funciones estatales y el espacio público pluralista proveen material “para” la ley.[63]

De outra parte, importa registrar que, para a gramática constitucional, a democracia não se reduz a um sentido metódico, a um mero procedimento, ao arranjo formal que processa a liberdade de participação na formação da vontade do Estado, de participação do povo nas funções legislativa e executiva.[64] 

A Constituição de 1988, sendo fruto de uma ampla mobilização cívica, com a participação de uma pluralidade de forças sociais e políticas, é vazada em discurso que se dispõe a traduzir na ordem social e política os seus consensos fundantes e a romper com o quadro normativo autoritário e de restrições políticas herdado no processo histórico. A práxis constitucional nos processos políticos e sociais de efetivação de seu programa deve referenciar-se na dimensão pragmática do programa, como também nessa abertura para uma comunidade plural de intérpretes.

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Compreender os novos vínculos entre o direito e a política, sob as referências da democracia e da república, esse novo sentido da institucionalidade desenhada pela Constituição de 1988, em que o direito, pela força normativa da Constituição[65], ganha uma dimensão política e se apresenta como recurso, como vetor de transformação e de desenvolvimento social, tem enorme importância prático jurídica, e suscita novas abordagens e construções teóricas.

A Constituição de 1988 não se dispõe a ser apenas uma folha de papel[66]. Para a densificação de seu sentido político e normativo, há instâncias e mecanismos processuais para irradiação da Constituição nas interações sociais e políticas.

A Constituição representa um legado de cultura e um programa político. Há essa inerente tensão entre tradição (permanência) e programa (transformação) que se dialetiza na experiência constitucional. Compreender os contextos programáticos, em articulação com os contextos emergentes do mundo da vida, torna-se imprescindível para a fusão dos horizontes de sentido nas decisões. As interpretações não se prestam ao exercício de meras especulações intelectuais, mas representam convocações de sentidos para a programação do futuro. Veja-se em Gadamer:

Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentre deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição.[67]

Não se exige muito esforço para perceber o quadro de injustiça social do Brasil. Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ocupamos a posição 79 no ranking, entre os 188 países. Temos uma sociedade marcada por uma desigualdade naturalizada e excludente, em que 1/3 da população se submete a uma condição de subcidadania.[68] Compreender a naturalização da desigualdade social, construída a partir do processo de modernização no Brasil, sob o guião de um Estado com raízes históricas no autoritarismo, que se serviu de bem sucedida importação "de fora para dentro"[69] de valores e de instituições modernas, constitui um chave hermenêutica para a construção de uma cidadania plena e do modo como esta se articula com a institucionalidade.

Para fazer face ao quadro de injustiça social, a Constituição articula as categorias políticas da república e da democracia, como premissas valorativas da vida política e social, que se co-implicam e se complementam.

Pelo eixo republicano, a solidariedade com a comunhão de valores, com vistas à consecução do bem comum e da igualdade material, a serem realizados em uma sociedade matizada por desigualdades regionais, sociais e econômicas, engendradas em um processo histórico colonialista e excludente; na outra vertente, pelo eixo democrático, a Constituição projeta a superação da prática elitista de exercício da política, que marcou o cenário histórico, em que o Estado compareceu protagonizando o papel principal, deixando à sociedade um papel meramente coadjuvante e passivo.

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Sobre o autor
Carlos Augusto Pires Brandão

Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Piauí (1993), graduação em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986), especialização em direito constitucional pela Universidade Federal do Piauí (2001) e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). Tem experiência na área de Direito e Filosofia do Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Processual, Hermenêutica Jurídica e Sociologia Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Carlos Augusto Pires. A justicialidade dos direitos sociais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5292, 27 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63082. Acesso em: 20 abr. 2024.

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