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A justicialidade dos direitos sociais no Brasil

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27/12/2017 às 11:52
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4. A justicialidade dos direitos sociais

Os direitos fundamentais não são direitos (inerentes à natureza humana, eterna e transcendental) que já estariam adquiridos e careceriam apenas de eficácia. Os direitos fundamentais são resultados de fluxos das lutas sociais; estão positivados em potência para serem conquistados nos processos sociais e políticos, como conquistas. São constructos da história e se efetivam mediante processos de reivindicação, de lutas em torno da dignidade humana. As normas, as disposições de direitos, são garantias de efetivação. E essa efetivação passa pelo emponderamento das pessoas que sofreram violações em seus direitos, para que ganhem força para reação, pois os direitos fundamentais são materializados nas lutas e sob condições sociais, políticas, culturais etc. Nesse sentido, Herrera Flores sintetiza: los derechos humanos serían los resultados siempre provisionales de las luchas sociales por la dignidad.[70]

Os direitos fundamentais, porque traduzem na ordem constitucional a positivação de direitos humanos, são sempre direitos libertários. Devem ser acionados, mediante garantias de efetivação, como linguagem de emancipação política, para a construção de novos mundos e de novos cenários de liberdade, não podendo perder essa dimensão crítica e reflexiva de resistência a dominações políticas hegemônicas que impeçam o exercício da atuação crítica e das interações nos espaços públicos. Não podem ser reduzidos a ociosas disposições abstratas inidôneas para a luta contra as injustiças sociais decorrentes de práticas políticas e econômicas hegemônicas.

Os direitos fundamentais estão positivados na ordem constitucional, formando o seu núcleo estruturante. É esse núcleo que imprime unidade e identidade orgânica a toda ordem constitucional, considerado estruturante, disponibilizado para proteger e afirmar a dignidade da pessoa humana, centro de gravidade da institucionalidade. Esse núcleo é fundamental para a dinâmica da vida social e política, e confere estabilidade e legitimidade constitucional à atuação política e social.

Esse núcleo essencial condensa um conjunto de regras e de princípios considerados fundantes da ordem constitucional. Esse conjunto de normas tem unidade sistêmica. Compreende o sistema de direitos fundamentais que vai definir a dogmática constitucional, o modo como a Constituição será percebida no tempo, interpretada e aplicada na dinâmica social e política. E sendo sistema de direitos fundamentais, há interdependência entre cada um desses direitos fundamentais (partes do sistema) e implicações mútuas entre essas unidades fundamentais. Isso faz com que a unidade de sentido não se estabeleça em cada direito fundamental, mas apareça (se desvele) no conjunto desses direitos, que devem ser percebidos e valorados de modo articulado.[71]

Todos os direitos fundamentais são interdependentes, não obstante a indivisibilidade que lhes caracteriza. Todos devem ser articulados no sentido de proteger e de afirmar a dignidade da pessoa humana, centro de gravidade dos sistemas de direitos fundamentais, da ordem jurídica como um todo, fundamento da República Federativa do Brasil.[72]

A Constituição de 1988 aborda os direitos sociais da mesma forma dos direitos civis e políticos. Esses direitos estã previstos como direitos fundamentais no título II da Constituição Federal (DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS). Segundo o seu art. 5º, § 1º, da CF/88, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Ora, esses direitos fundamentais constituem garantias para a cidadania. E podem ser mobilizados nas estruturas de poder. Por um lado, há os direitos fundamentais que implicam ação do Estado, prestação material como saúde, educação, moradia. De outra parte, há os direitos fundamentais cujo conteúdo é o respeito, a consideração pelas instâncias de poder na não intervenção. Esses direitos fundamentais impõem abstenção do Estado e das estruturas de poder. São os direitos de liberdade.[73]

Os direitos sociais se fundam na ideia de igualdade material, no sentimento de solidariedade material, de que ninguém sofrerá privações nas condições básicas de uma vida digna. Estabelecem as condições vitais de exercício dos direitos de liberdade.

Sua efetividade, seu caráter vinculante, sua metodologia e dogmática, deverão levar em conta essa premissa política de que esses direitos sociais positivados projetam na ordem jurídica interna os valores e diretrizes compartilhados como direito internacional e consolidados no Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, em vigor desde 3 de janeiro de 1976.[74]

A indivisibilidade, a interdependência, a unidade que matizam os diretos fundamentais repercutem nos direitos sociais positivados na Constituição, tornando-os, tal como os direitos civis e políticos, justicializáveis, i.e., passíveis de serem demandados judicialmente. 

Como bem apontado por Abramovich, ambos os direitos civis e sociais envolvem despesas. Há custos nesses direitos. Em relação aos direitos civis, há todo um aparato, um sistema de proteção mantido pelo poder público para imprimir efetividade e proteção aos direitos civis. Há, por exemplo, estrutura cartorária para os registros civis, órgãos judiciais e sistema de repressão contra as afrontas aos direitos de liberdade, por exemplo. Para o autor, todos os direitos, sejam civis, políticos, sociais, econômicos ou culturais demandariam custos e prescreveriam obrigações negativas e positivas. Como os direitos civis que não se esgotam na abstenção do Estado, mas exigem serviços e estruturas de proteção, os direitos sociais importam também abstenções, obrigações negativas. O Poder Público não pode, por exemplo, realizar atividades que inviabilizem os direitos sociais. Não pode, por exemplo, inviabilizar o direito de greve.[75] Os direitos sociais, como os direitos civis, importam custos. O fato de serem onerosos, portanto, não pode servir de argumento para submeter a sua implementação à discricionariedade da representação política.

Ora, a comunidade internacional tem sistematicamente ratificado o caráter indivisível e interdependente de todos os direitos humanos, considerando meramente ideológica e ultrapassada a divisão entre direitos civis e políticos versus direitos sociais, econômicos e culturais, sendo esta divisão inidônea para negar a natureza de direitos fundamentais dos direitos sociais. Como estes direitos sociais se dispõem à proteção e à garantia das condições básicas da vida digna, eles constituem premissas também para a efetivação dos direitos civis e políticos, considerados fundamentais. Não devem prevalecer, pois, para se negar a efetividade aos direitos fundamentais, os argumentos econômicos, financeiros, políticos que insistem na flexibilidade das redes sociais de proteção em tempos de globalização e de crise fiscal do Estado ou que levantam a natureza autoritária da judicialização da política [76]

Os direitos sociais estão positivados na Constituição, e este estatuto na sua unidade tem força normativa. A possibilidade de se ter a proteção judicial de um direito constituiu elemento central da própria definição de direito. Kelsen registrou que o Direito é uma ordem coativa, pois reage contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas - particularmente contra condutas humanas indesejáveis - com um ato de coação.[77] Ora, se os direitos sociais são categorizados como direito, há de se admitir a possibilidade de reclamação no sistema judicial contra eventual descumprimento desses direitos.[78]

Na Constituição Federal, os direitos sociais estão anunciados no título II, reservado aos direitos e garantias fundamentais. Os artigos 6º a 14 deste título estão reservados para os direitos sociais da educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, infância, assistência a desamparados, políticos. Sendo fundamentais, os direitos sociais incorporariam o princípio da aplicabilidade imediata, conforme determinação expressa da Constituição.

Os direitos sociais representam uma profunda mudança sobre o significado do conceito de liberdade. No processo de emancipação do ser humano, a experiência concluiu que o absentismo do Estado não era suficiente para o exercício das liberdades. A liberdade reclama ruptura com as estruturas de opressão que submetem o ser humano, condenando-o a reprodução material da vida, privando-o da liberdade. Sem as condições básicas que garantam a dignidade da pessoa humana não há liberdade, fonte de sentido do direito velado no liberalismo[79].

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Essa percepção de que os direitos sociais compõem ou pelo menos condicionam o exercício dos direitos de liberdade promove a transformação de sentido do direito. Essa aderência dos direitos sociais ao âmbito dos direitos tem repercussão na dogmática jurídica, na teoria da interpretação e na prática jurídica, alterando o papel da institucionalidade em matéria de direitos fundamentais.

Sendo justiciáveis os direitos sociais, isso não quer dizer que o Judiciário possa assomar à frente dos demais poderes, monopolizando a atribuição de sentidos e encaminhando ordens aos demais poderes. A Constituição imprime aos poderes atuação funcional de modo equilibrado e ponderado, preservando as competências concernentes a cada órgão. Ao poder Judiciário fica reservado o papel subsidiário, i,e., cabeo-lhe atuar quando os demais podres não esteja cumprindo o seu papel.

Considerar todos esses direitos sociais como fundamentais tem enorme repercussão para a prática jurídica. Esses direitos sociais passam a ser justicializáveis, passíveis de serem demandados no sistema judicial. Todavia, os direitos sociais importam custos, demandam provisões orçamentárias, estrutura e logística de serviços. E essa previsão de despesas públicas está submetida ao elenco de prioridades políticas, que em princípio estaria a cargo da representação política. Concluir-se pela justicialidade implica em admitir-se a intervenção do sistema judicial na alocação de despesas, o que repercute no princípio da separação dos poderes, diagramado pelo racionalismo iluminista:

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.[80]

Todavia, o princípio da separação de funções deve estar em sintonia com o conjunto do programa constitucional. Há na tradição velada pela Constituição uma disposição política ao diálogo com a realidade social, com propósitos emancipatórios para o ser humano. Para compreensão desse programa emancipatório da Constituição, impõe-se sua genealogia, o exame dos sentimentos que acalentaram o seu processo político de elaboração e promulgação. Sendo a Constituição uma construção social, política e histórica, a formulação teórica acerca da dinâmica constitucional, da dogmática constitucional, da justiciabilidade dos seus direitos, da forma como a Constituição se irradia no plano da realidade, da prática das instituições na afirmação dos consensos fundantes, não pode prescindir do próprio caráter contextual, temporal da Constituição, a menos que se busquem fundamentações metafísicas, para além do plano da história[81], o que saltaria as fronteiras da ciência.

Nesse diálogo da experiência constitucional com a realidade social, a doutrina vem levantando a reserva do possível. Por essa expressão, nascida na Alemanha no início da década de 70, a doutrina no Brasil vem defendendo que a implementação dos direitos sociais estaria condicionada à disponibilidade econômico financeira do Estado.

A indeterminação dos conceitos e das categorias dos direitos sociais, com abertura semântica para abrigar a dinâmica de construção de sentidos no processo político e institucional, sujeita a sua implementação a esferas de discricionariedades que são próprias do mundo político, onde a complexidade potencializada pelo número de variáveis deve compor a concretização dos sentidos na vida prática. Há de se ter muita prudência no exercício do controle judicial de legitimidade da atuação político administrativa na implementação de direitos sociais, para que não assuma, pelo princípio da substituição, as atividades próprias da política. As atividades políticas, concernentes à vida prática, não são apenas atividades de conhecimento, atividades da ciência cognitiva. Essas atividades envolvem, como se observou acima, escolhas, decisões, com amplo espectro de discricionariedade.

A doutrina, então, vem construindo parâmetros para a atuação judicial. A reserva do possível compõe essa referência para o controle judicial. Como os direitos sociais envolvem prestações materiais, que exigem custos, há a necessidade de eleger-se prioridades. Os custos entram, então, como a primeira referência para a atuação judicial. A construção da dogmática da reserva do possível foi construída sob essa lógica da restrições financeiras e econômicas. Nesse sentido, os direitos sociais só poderiam ser efetivados quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos.[82]

A escassez de recursos poderia impedir a exigibilidade de um direito fundamental social. Nesses casos, o Judiciário, perante o qual esta exigibilidade foi reclamada, terá ao seu alcance o mecanismo para cotejar o direito sócia vindicado com o sistema de direitos sociais, para então avaliar se a restrição de recursos levantada pela representação política é legítima ou não, e se há medidas que poderiam ser adotadas para a implementação da política pública específica. Com isso, prestigia-se a justicialidade dos direitos sociais, entendendo-os como sistema de direitos.

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Sobre o autor
Carlos Augusto Pires Brandão

Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Piauí (1993), graduação em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986), especialização em direito constitucional pela Universidade Federal do Piauí (2001) e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). Tem experiência na área de Direito e Filosofia do Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Processual, Hermenêutica Jurídica e Sociologia Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Carlos Augusto Pires. A justicialidade dos direitos sociais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5292, 27 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63082. Acesso em: 25 abr. 2024.

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