Capa da publicação Ação popular e o conceito de cidadão: por que não ampliar o rol de legitimados ativos?
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A ampliação do conceito de cidadão como legitimado ativo para propor a ação popular

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06/09/2018 às 09:15
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3 O conceito de cidadão e a limitação à legitimidade ativa para propor Ação Popular

3.1 Aspectos relevantes na conceituação de cidadão e de “nacional do país”

Conforme já demonstrado, é constitucionalmente previsto, nos termos do artigo 5º, LXXIII, que o cidadão é parte legítima para figurar no polo ativo na propositura da ação popular.

Para que haja uma compreensão da legitimidade para agir em sede de ação popular, necessário é que se faça uma conceituação de cidadão.

Ab initio, conforme já ressaltado em item 3.1 do presente trabalho, imprescindível é distinguir o conceito de cidadão do conceito de “nacional do país”. Este último abrange todos os brasileiros, ou seja, que possuem nacionalidade brasileira, que pode ser decorrente do nascimento em território brasileiro ou ter sido adquirida posteriormente, como nos casos de brasileiros naturalizados. Enquanto a nacionalidade revela-se por vincular a pessoa à nação, a cidadania é o vinculo que liga o indivíduo ao Estado, através do direito de participação na vida política do mesmo.

Verifica-se que apenas a condição de ser brasileiro, não preenche o requisito de ser cidadão para figurar no polo ativo da ação popular. A lei 4717/65, em seu artigo 1º, § 3º[22], estabelece que a prova da cidadania se comprova mediante apresentação do título de eleitor, ou seja, a prova de estar o brasileiro em pleno gozo de seus direitos políticos.

Dessa forma, para o exercício da ação popular, exige-se a presença de dois requisitos para o autor, quais sejam a condição de ser brasileiro e eleitor. Tais requisitos têm como justificativa a ideia de que somente o brasileiro, em pleno gozo de seus direitos políticos, terá condições de fiscalizar os representantes que elege para o Parlamento e consequentemente os demais agentes responsáveis pela gestão do patrimônio público.

Nesse raciocínio:

Os direitos políticos constituem o conjunto dos direitos de voto e elegibilidade, habilitando ainda o cidadão a uma fiscalização no exercício do poder público.[23]

O direito de voto, de ser votado, bem como o direito de iniciativa popular no processo legislativo, caracterizam-se como direito do indivíduo de participar da vida política e da estrutura do próprio Estado em que vive.

Nas palavras de Bilac Moreira Pinto:

Ora, sendo o direito público subjetivo de mover a ação popular especial um direito político, que compete a qualquer brasileiro, pode ser exercido pelo brasileiro nato ou naturalizado ou pelo que haja obtido a nacionalidade brasileira mediante título declaratório.[24]

No tocante à propositura da ação popular, tem-se que a legitimidade ativa é limitada ao cidadão, sendo este aquele que encontra-se em pleno gozo de seus direitos políticos.

3.2 Conceito de cidadania

A necessidade de compreensão do termo cidadania veio junto dos legados do processo de formação das democracias modernas.

A cidadania encontra-se intrinsecamente ligado à vida em sociedade. A princípio, entende-se que todo cidadão que integra a vida em sociedade no Estado Democrático de Direito faz jus ao exercício da cidadania, sendo esta o conjunto de direitos e deveres perante o poder Público.

Trata-se da participação do indivíduo na vida política do Estado e não se restringe à eleição dos representantes, revelando-se apenas como o direito de voto, mas também através de opiniões acerca do que seria justo, certo e conveniente para a gestão do patrimônio público.

Tal exercício almeja à garantia e efetividade de valores fundamentais imprescindíveis para o pleno desenvolvimento de uma sociedade digna e solidária.

Como vivemos em uma democracia representativa, para que o exercício da cidadania seja eficaz é necessário que haja a participação popular nas tomadas de decisões pelo Poder Público.

Hoje, após um extenso processo de evolução, torna-se indispensável o entendimento de que a cidadania vai muito além do que votar e ser votado. Trata-se de participação na vida em sociedade, na defesa pelos direitos de igualdade e liberdade e é através dessa participação coletiva que se encontra a essência da cidadania atual.


4 O que significa ser cidadão e sua compatibilidade com a democracia participativa

A democracia participativa é pressuposto indispensável à existência do Estado Democrático de Direito, consistindo na participação dos indivíduos na vida política do estado, possuindo direitos e deveres, bem como na existência de mecanismos efetivos para o controle dos atos praticados pelo poder público na gestão de todo o patrimônio coletivo.

O próprio conceito de cidadania compreende um governo do povo, em que haja prevalência da soberania popular e distribuição igualitária de poder.  

Abraham Lincoln definiu democracia como: “governo do povo, pelo povo e para o povo”. É neste contexto que se insere a ação popular. Esta é tida como um meio à disposição de qualquer cidadão para proteger os direitos fundamentais difusos, tais como o patrimônio coletivo, à moralidade administrativa, bem como a preservação do meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Revela-se, portanto, como uma das formas de participação na vida política do Estado, indo além do direito de votar e ser votado.

Por tais razões é que o exercício da ação popular tem ganhado tamanha importância no passar dos anos. Embora tal instituto seja pouco utilizado nos dias atuais, muitas vezes por falta de informação dos próprios cidadãos, reflete como um dos instrumentos mais relevantes para o exercício da cidadania.

A democracia participativa requer que toda a coletividade se empenhe na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, com a participação dos indivíduos na vida política do Estado e na tomada de decisões pelo poder público.

A verificação do grau de democracia de uma sociedade é feita mediante a análise do empenho de toda a coletividade na defesa de direitos fundamentais, bem como através dos instrumentos colocados à disposição dos indivíduos para que exerçam referidos direitos.

Entretanto, a própria eficácia dos direitos fundamentais prescinde da existência de uma sociedade democrática. Tem-se, portanto, que democracia e existência de direitos fundamentais eficazes são conceitos inseparáveis, visto que traduzem o exercício pleno da cidadania.

Dessa forma, tem-se que a ação popular constitui-se como uma das formas de defesa dos direitos fundamentais. Não apenas pelo fato de a demanda se inserir no rol de tais direitos previstos no artigo 5º da Carta Magna de 1988, mas também por afirmar um dos princípios basais do Estado Democrático de Direito, qual seja a dignidade da pessoa humana.

A participação política do povo nas tomadas de decisões do Estado trata-se de direito fundamental garantido constitucionalmente, razão pela qual deve ser assegurado a todos, sem distinções.


Conclusão

O debate sobre a legitimidade ativa no âmbito da ação popular é, certamente, muito mais abrangente do que aquele feito no presente trabalho. Muito embora não se trate de assunto novo, este só ganhou destaque nos últimos anos, encontrando-se, ainda, em fase de amadurecimento. 

Dessa forma, devem ser incentivados, ao máximo, a discussão e a produção acadêmicas, no que tange aos assuntos ligados à Ação Popular.

Após traçar a evolução do conceito de cidadania e democracia, verifica-se que ambos os institutos se desenvolveram com o passar dos anos e encontram-se intimamente vinculados. Por tais motivos, torna-se imprescindível a análise de referidos conceitos nos dias atuais, visto que apresenta aspectos relevantes para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É nesse contexto que entra a necessidade de ampliação do vocábulo cidadão como legitimado ativo no tocante à propositura da ação popular.

Conforme já demonstrado no presente trabalho, a ação popular é um dos meios à disposição de qualquer cidadão e reflete a participação dos mesmos no poder político do Estado, na gestão do patrimônio coletivo e no controle dos atos praticados pela administração pública.

Questiona-se, por exemplo, a possibilidade de a pessoa jurídica, diante do ato lesivo ao patrimônio público ou equiparado, figurar no polo ativo no ajuizamento da demanda, uma vez que paga tributo e participa da vida em sociedade.

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Seguindo o mesmo raciocínio, questiona-se a possibilidade de as associações de classe, as associações de bairro e a Ordem dos Advogados ajuizarem a ação popular, visto que tem se revelado tão atuante ao longo dos anos, desde que em prol do bem comum e atendendo aos anseios coletivos.

Nesta linha, deve-se ressaltar que os operadores do Direito (sejam eles advogados, juízes, promotores, consultores) têm papel fundamental na divulgação de institutos como a ação popular, principalmente por se tratar de umas das funções essenciais à justiça, sendo indispensável à administração desta.

Salienta-se que, em tais casos, as instituições acima apontadas dispõem de toda estrutura organizacional, ao mesmo tempo em que servem de incentivo a toda a sociedade para se utilizar desse remédio constitucional.

Cabe, ainda, levantar a questão de estrangeiros residentes no país que, embora não se encontrem em pleno gozo de seus direitos políticos, pagam impostos, participam da vida em sociedade e das tomadas de decisões pelo poder público. Em tais casos, se o estrangeiro é capaz de averiguar a lesividade do ato praticado na esfera pública, não há porque desconsiderá-los do rol de legitimados ativos no ato de ajuizamento da demanda popular.

Para tanto, não é necessário esperar a alteração do texto constitucional para que ele expanda a legitimidade ativa no âmbito da ação popular. O conceito de cidadão deve ser interpretado de forma ampla, e não restrita, como tem sido feito ao longo dos anos, permitindo, assim, o exercício pleno da cidadania.

 Por tais motivos, torna-se tão importante repensar o problema da legitimação. Desvendar novas possibilidades de extensão às pessoas jurídicas, às entidades públicas e até mesmo às associações, são diversas formas de ampliar as possibilidades de construção de uma sociedade com qualidade de vida merecida por todos os indivíduos sem restrições. Para tanto, a concretização de referido ideal precisa de um empenho coletivo.

A limitação da legitimidade ativa figura-se como afronta ao principio basilar do estado democrático de direito, qual seja o exercício pleno da cidadania. Ademais, restringir o conceito de cidadão como legitimado ativo, de certa forma, constitui-se como ofensa à própria Constituição, uma vez que a ação popular é tida como garantia constitucional na defesa dos direitos fundamentais difusos.

Conclui-se, sobretudo, que a ampliação do conceito de cidadão como legitimado ativo para a propositura da ação popular busca promover a igualdade de condições processuais para o exercício da titularidade de um instituto constitucional e, consequentemente, a defesa de direitos fundamentais.

A compreensão de todos acerca do instituto da ação popular é uma forma de enriquecer o presente debate que, além de multidisciplinar, apresenta soluções sólidas e seguras para os questionamentos que surgem.

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Sobre a autora
Carina Estephany Ferreira

Advogada. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (IEC PUC Minas). Pós Graduanda em Ciências Criminais pela Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Carina Estephany. A ampliação do conceito de cidadão como legitimado ativo para propor a ação popular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5545, 6 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64242. Acesso em: 26 abr. 2024.

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