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Do emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem

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23/02/2018 às 09:10
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5. Da Ampla Subordinação Atual das Forças Armadas aos Poderes Constitucionais, em Especial ao Poder Judiciário.

Pontuamos, antes, quão regrada é atuação das Forças Armadas em missões de garantia da lei e da ordem. Incogitável, portanto, que o emprego militar ocorra ao alvedrio de algum Comandante de Força. Isso decorre da ampla subordinação (constitucional e legal) das Forças Armadas aos poderes constitucionais, e não aos integrantes dos mesmos, inexistindo, portanto, o vácuo jurídico de outrora, de modo que hoje é quase impossível imaginar os militares ostentando o poder político de ocasiões passadas, lacuna que, de certa forma, permitia as diversas intervenções experimentadas em momentos de crise, quando os castrenses, literalmente, tomavam (ex officio) as rédeas da situação, muitas das vezes, importante registrar, estimulados por lideranças civis de então, para as quais a atuação marcial era por demais conveniente, seja para a manutenção do poder (pelo governo), seja para a sua destituição (pelos opositores).

É também a opinião de MARIA CELINA D'ARAUJO (2009), para quem a antiga experiência brasileira de envolver as Forças Armadas na política e no combate político estigmatizou profundamente as instituições militares, cicatriz institucional que, diga-se de passagem, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) fez questão de aprofundar, nomeadamente ao recomendar, no seu relatório final o seguinte:

O conteúdo curricular dos cursos ministrados nas academias militares e de polícia deve ser alterado, considerando parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Educação (MEC), a fim de enfatizar o necessário respeito dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública aos princípios e preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos. Tal recomendação é necessária para que, nos processos de formação e capacitação dos respectivos efetivos, haja o pleno alinhamento das Forças Armadas e das polícias ao Estado democrático de direito, com a supressão das referências à doutrina de segurança nacional. (BRASIL, 2014)

Definitivamente, a CNV desconhece o amplo mapa normativo (constitucional e infraconstitucional) acima elencado, derivado, na essência, de decisão soberana emanada da Assembleia Nacional Constituinte, a qual, como visto, deliberou e inseriu, no art. 142, caput, da Carta de 1998, uma expressão ("por iniciativa de qualquer destes") que tornou as Forças Armadas absolutamente subordinadas aos poderes constitucionais, inviabilizando práticas interventivas de outrora, quando, não raro, os governos civis eram o primeiro a incentivar a insubordinação e a quebra da hierarquia e da disciplina, valores tão caros para os militares. Nesse sentido, discorrendo sobre o comportamento (antecedente à eclosão do movimento político-militar de 1964) adotado por JANGO, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, em entrevista ao site UOl Notícias, em 30 de março de 2014, anotou:

A situação era de impossibilidade de alguma solução. Jango fez um erro enorme que foi permitir a quebra de hierarquia de militar. Quebrou a hierarquia, como é que se faz? Quem é que segura a tropa? Ele quebrou [a hierarquia] no tribunal dos sargentos (revolta dos sargentos em Brasília, em 1963), que ele foi lá e fez discurso aos sargentos. Os generais, os coronéis, os oficiais ficaram com medo. Jango foi ficando num beco sem saída. (CARDOSO, 2014)

O desfecho daquele ano de 1964, quando as Forças Armadas instauram o Regime Militar, todos nós o sabemos e está devidamente registrado na história. No entanto, é possível dizer que, com o advento da Constituição de 1988, as Forças Armadas deixaram de intervir na vida constitucional e se restringiram ao seu papel clássico, próprio de um Estado Democrático de Direito, como, aliás, foi o desejo de CASTELLO BRANCO ao instituir os fundamentos ideológicos do movimento político-militar de 1964, segundo, inclusive, reconhece o insuspeito jornalista A. C. SCARTEZINI (2015):

Ao assumir o poder, o Marechal Castelo Branco providenciou uma reforma nas Forças Armadas que criou a chamada expulsória: a partir dos 70 anos, os militares passam à reserva automaticamente.

Além da idade, duas providências abreviaram a carreira de generais: nenhum oficial podia ser general por mais de 12 anos; e cada um dos três graus do generalato devia renovar anualmente um quarto de seu quadro. [...]. Os coronéis deviam permanecer na patente por pelo menos sete anos, mas não mais do que nove.

A ideia era castrar o amadurecimento de lideranças internas entre militares [...]. (SCARTEZINI, 2015)

Assim, não há como negar a evolução institucional vivenciada pelas Forças Armadas de hoje, cuja subordinação constitucional aos poderes constituídos não permite mais o seu emprego como mecanismo de solução política.

Afinal, como bem advertiu o Ministro CELSO DE MELLO, quando de sua posse na Presidência do STF, em 22 de maio de 1997, as crises políticas devem ser solucionadas dentro do quadro normativo delineado pelo ordenamento constitucional, com os instrumentos jurídicos nele previstos e com fundamento exclusivo no predomínio da Constituição e das leis, o que confere ao Judiciário como um todo, e em particular ao STF enquanto guardião do Texto Magno, um relevante papel, assim desenhado por CELSO DE MELLO, Relator do Mandado de Segurança nº 26.603/DF, Tribunal Pleno, julgamento em 4 de outubro de 2007:

O exercício da jurisdição constitucional, que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição, põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo Tribunal Federal, pois, no processo de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder. (STF, 2007)

Na mesma linha de dicção, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, em entrevista à Revista Esquerda 21, edição de janeiro de 1996, nº 1, assentou que as Forças Armadas já possuem uma noção a respeito de qual é o papel delas num Estado democrático. O mesmo ex-Presidente, em artigo ("Chegou a hora") publicado no jornal Estadão, em 1º de fevereiro de 2015, ao analisar a atual crise (moral, política, econômica, energética, etc.) vivida pelo país, assentou que:

Tudo isso é preocupante, mas não é o que mais me preocupa. Temo, especialmente, duas coisas: o havermos perdido o rumo da História e o fato de a liderança nacional não perceber que a crise que se avizinha não é corriqueira – a desconfiança não é só da economia, é do sistema político como um todo. [...].

Nada se consertará sem uma profunda revisão do sistema político e mais especificamente do sistema partidário e eleitoral. Com uma base fragmentada e alimentando os que o sustentam com partes do Orçamento, o governo atual não tem condições para liderar tal mudança. E ninguém em sã consciência acredita no sistema prevalecente. Daí minha insistência: ou há uma regeneração "por dentro", governo e partidos reagem e alteram o que se sabe que deve ser alterado nas leis eleitorais e partidárias, ou a mudança virá "de fora". No passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se vêem sinais.

Resta, portanto, a Justiça. Que ela leve adiante a purga; que não se ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, aos delegados ou à mídia. Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas, desde que efetivamente culpados. Que o STF não deslustre sua tradição recente. E, principalmente, que os políticos, dos governistas aos oposicionistas, não lavem as mãos. Não deixemos a Justiça só. Somos todos responsáveis perante o Brasil, ainda que desigualmente. Que cada setor político cumpra a sua parte e, em conjunto, mudemos as regras do jogo partidário eleitoral. Sob pena de sermos engolfados por uma crise que se mostrará maior do que nós. (CARDOSO, 2015, grifo nosso)

Vê-se, portanto, que FHC reconhece que a atual conjuntura, diversamente do que ocorria no passado, impede que os militares resolvam adotar alguma solução golpista para os graves problemas que atingem o país, justamente por estarem absolutamente compromissados com os alicerces de um Estado Democrático de Direito.

Questionada quanto à distinção entre os comandantes militares da época do Regime Militar e os atuais, MARIA CELINA D'ARAUJO situou a seguinte distinção:

O que observamos entre os comandantes militares atuais é uma diferença abissal. Hoje os comandantes militares têm uma ideia de profissionalismo muito mais forte, eles não têm um projeto político, são servidores do Estado e obedecem ao governo democrático de direito e à Constituição. Não se apresentam mais como atores políticos, que podem ter um projeto próprio ou falar em nome de um setor. É uma mudança muito grande e positiva que indica o fortalecimento da democracia no Brasil. As democracias têm como característica a subordinação dos militares ao poder civil e democrático. Isso dá mais segurança ao regime democrático. (D'ARAUJO, 2009)

Por terem essa visão democrática quanto à função que lhes reservou o Documento Fundamental do Estado, certamente as Forças Armadas sequer deram ouvidos, e muito menos se deixaram contaminar ideologicamente, pelas recentes manifestações (muitas das quais veiculadas pela mídia) contra o resultado das eleições presidenciais de 2014, ocasião em que grupos (antidemocráticos) de manifestantes chegaram a pedir a intervenção da Caserna em relação à reeleição da Presidenta DILMA ROUSSEFF.

Ao contrário, tendo em vista o princípio da subordinação, as Forças Armadas de hoje demonstram rejeitar qualquer proposta autoritária, seja de esquerda ou de direita, estando perfeitamente conscientes do papel institucional que lhes foi reservado no contexto do Estado Democrático de Direito, bem como de sua absoluta subordinação aos poderes constitucionais.

Nesse sentido, tivemos a oportunidade de proferir palestra na Academia Militar das Agulhas Negras - AMAN, em 26 de maio de 2015, para os 470 cadetes do último ano, sobre o tema Democracia e Regime Democrático, ocasião em que expressamente pontuamos o papel das Forças Armadas e, em especial, do Exército Brasileiro, na defesa do atual regime democrático nacional:

A vida da norma jurídica encontra-se no seu descumprimento. Porém, é exatamente no silêncio de sua rigorosa observância que ela cumpre plenamente o seu papel [...].

De igual forma, o EB não perdeu sua importância ao sair da arena política nacional. Pelo contrário, o seu retorno aos quartéis é a prova mais contundente de que cumpriu e vem cumprindo majestosamente a sua função de garantia do pleno funcionamento dos Poderes Constitucionais, notadamente o Poder Judiciário, cujas decisões acata não como ato de submissão mas, ao contrário, de serenidade de quem reconhece a importância da consolidação da harmonia institucional, com suas respectivas competências.

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6. Conclusão.

A partir de uma reflexão sobre os diversos dispositivos constitucionais relativos à missão das Forças Armadas, é possível afirmar que o emprego das mesmas enquanto instrumento de estabilização política não se dava ao arrepio da Constituição então vigente. A análise das Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, permite concluir, a partir de uma interpretação consentânea com as respectivas realidades históricas, que tal mister era, de um modo geral, constitucionalmente válido, bem como convenientemente interessante para o homem político, inclusive para os políticos militares. Assim, não há como afirmar que tal manejo (como mecanismo de estabilização política), absolutamente impensável nos dias atuais, ocorresse em afronta aos Textos Magnos.

Corrobora a afirmação que se acaba de fazer o fato de que a Assembleia Nacional Constituinte preocupou-se em consagrar ao atual dispositivo constitucional relativo à missão das Forças Armadas (art. 142 da CF de 1988) uma redação diferente daquelas previstas nas Cartas anteriores.

Ora, como cediço, e em obediência a lições elementares de hermenêutica jurídica, a lei não contém palavras em vão. Se a Constituinte, como visto, foi tão marcada por debates a respeito do tema, isso certamente decorreu, conforme atestam os recortes jornalísticos mencionados no presente texto, da pretensão de se sepultar de vez a experiência militar enquanto fator de equilíbrio político. Essa inferência, a nosso ver, é bastante ponderável, mormente se considerarmos que o art. 142 da CF de 1988, com a redação que lhe foi conferida, subordina as Forças Armadas aos poderes constitucionais, não sendo possível mais que o seu emprego (sempre excepcional) na garantia da lei e da ordem ocorra ex officio.

Com efeito, malgrado a atuação das Forças Armadas no campo da segurança pública (garantia da lei e da ordem) já estivesse disciplinada nas Cartas pretéritas, não há como deixar de reconhecer que a inserção da expressão "por iniciativa de qualquer destes" foi fundamental para que antigos episódios (talvez necessários naqueles momentos históricos) não se repetissem no presente e no futuro, onde nos encontramos diante de uma nova realidade de amadurecimento democrático e fortalecimento institucional. Da mesma forma, o implemento, no âmbito infraconstitucional, da Lei Complementar nº 97, de 1999, bem como a sua regulamentação através do Decreto nº 3.897, de 2001, reforçam o caráter sempre episódico que deve permear a missão de garantia da lei e da ordem.

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Do emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5350, 23 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64323. Acesso em: 22 nov. 2024.

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