Capa da publicação Totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
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Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

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24/03/2018 às 15:40
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Investigam-se evidências da existência de um totalitarismo moderno, baseado no liberalismo político e na teoria dogmática dos direitos humanos.

Resumo: O objetivo deste artigo é investigar as evidências da existência de um totalitarismo moderno, baseado no liberalismo político e na teoria dogmática dos Direitos Humanos. 70 anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as violações aos mesmos direitos, aparentemente, são parte da estrutura da sociedade internacional. As origens deste problema e suas possíveis soluções serão aqui demonstradas.

Palavras-chave: Direitos Humanos – Liberalismo – Direito Internacional – Relações Internacionais – Geopolítica


1- Introdução

Dresden, Alemanha. 13 a 15 de Fevereiro de 1945. Um mortal bombardeio aliado, protagonizado pelas forças aéreas americana e britânica, sob comando de Arthur Harris – o piloto inglês que fez por merecer o epíteto de “o açougueiro” -, arrasa a conhecida e militarmente irrelevante cidade alemã de Dresden, arrastando a vida de um número incerto entre 25 e 100 mil pessoas. As razões para o ataque são até hoje obscuras, uma vez dado o quase nulo valor estratégico da região para o andamento da Guerra, ademais de uma previsível rendição alemã cada vez mais próxima. O maior significado de Dresden para a Alemanha na Guerra era como abrigo de centenas de milhares de refugiados e desabrigados de outras partes do país mais afetadas pelos combates. Contudo, por quaisquer razões – e estas giram em torno de táticas de guerra total, demonstração de poderio bélico ou, em último caso, pressão para a rendição do Eixo -, o ataque ocorreu e se configurou como um dos mais brutais de toda a Segunda Grande Guerra, num gesto de terror análogo aos da própria Alemanha Nazista.

Bengala, Índia. 1943. Envolvido nos confrontos da Grande Guerra, o Império Britânico realiza em suas posses orientais um dos maiores expurgos da história humana. Visando o controle da distribuição de alimentos em Bengala, Índia, temendo uma crise alimentar que atingisse os soldados ingleses em pleno período de guerra e consciente da ausência de reservas alimentares para a satisfação parcial ou total da população, foi cessado o fornecimento de arroz aos habitantes da região, causando a morte por fome de um incerto número entre 1,5 e 3 milhões de indianos. O então Primeiro Ministro Winston Churchill é ainda assim lembrado como um dos maiores bastiões da democracia e da vitória contra o terror alemão. Vitória esta em que, cabe salientar, Churchill foi um mero coadjuvante, protagonizando apenas terror análogo contra um povo que foge aos holofotes da mídia global.

Hiroshima e Nagasaki, 6 e 9 de Agosto de 1945. Diante de um Império Japonês arrasado e praticamente entregue, já impotente ante o avassalador inimigo Aliado, utilizando de seus últimos recursos, recorrendo a ataques suicidas e tentando se manter em linha num país internamente devastado, principalmente pelos anteriores ataques dos Aliados em regiões de maioria civil – vide os mortais bombardeios incendiários às casas de papel em Tóquio –, os Estados Unidos da América comandam uma das operações militares mais brutais e dispensáveis já registradas, despejando sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki duas bombas atômicas, em um ataque genocida contra civis desarmados e inocentes, numa pura e cruel demonstração de poder e subjugação humilhante do inimigo a seus escusos interesses, que mais tarde viriam à ciência geral com a reconstrução do Japão em troca do alinhamento ao Ocidente. A contagem de mortos excede aos 200 mil.

Vietnã, 1965. Os Estados Unidos da América intervêm militarmente nos conflitos que se deflagram há mais de uma década no Vietnã. O objetivo central da operação é fazer frente ao progresso das forças soviéticas, que apoiam o Vietnã do Norte, comunista, contra o Sul, uma ditadura militar brutal e pró-Ocidente. Surpreendidos com as táticas de guerra de guerrilhas dos chamados vietcongues – guerrilheiros comunistas pró-Norte que viviam e combatiam no Sul -, bem como o até então desconhecido campo de batalha em floresta tropical e a forte crise interna de cunho social e cultural nos EUA – o movimento hippie, o pacifismo, o aumento dos índices de doenças venéreas e tráfico de drogas, gangues violentas de veteranos enlouquecidos da guerra e mais uma série de problemáticas -, o país epicentro do bloco capitalista, do mundo ocidental civilizado e da democracia liberal se arroga do direito de devastar o difícil terreno de combate vietnamita com armas químicas, causando, ao contrário do esperado, a morte de uma maioria de civis, não evitando a derrota de Washington e o avanço comunista na Ásia. Porém, os rastros da presença americana ficaram marcados na vida de milhões de camponeses que tiveram suas casas e plantações incendiadas, suas mulheres violentadas e famílias torturadas por supostamente abrigarem soldados inimigos.

América do Sul, 1968. As diversas ditaduras militares da América do Sul, reunidas sob o comando central dos EUA, iniciam a chamada Operação Condor. O objetivo da ação é unir os governos aliados ao bloco capitalista ocidental numa frente única contra o avanço dos oposicionismos de esquerda a esses mesmos regimes, aniquilando uma longínqua possibilidade de avanço comunista pela América Latina. Os resultados da Operação são conhecidos perfeitamente pelos sul-americanos, que possuem recente memória dos abusos dos direitos básicos do homem, ocorridos das mais diversas formas, há pouquíssimo tempo, justificados pela luta contra o terror comunista. Até hoje famílias procuram corpos de parentes desaparecidos, comissões são abertas para apurar a verdade sobre a Operação e um trauma coletivo de um passado tão recente ainda assombra milhões de cidadãos.

Oriente Médio, começo dos anos 2000. Impulsionado por uma reação aos ataques de 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos da América, com apoio multilateral das principais potências ocidentais, declaram a chamada Guerra Global ao Terror, sendo o primeiro passo da mesma a Invasão do Iraque de 2003, justificada sob o controverso e incomprovado apoio do Líder Baathista, Saddam Hussein, a grupos terroristas – grupos estes que, sabe-se e cabe salientar, receberam grande apoio de cunho logístico e financeiro por parte do Ocidente durante o regime comunista afegão por fazerem oposição ao alastramento soviético -, ademais das jamais encontradas armas de destruição em massa, supostamente em posse do regime iraquiano. A guerra ao terror jamais cessou desde então, e seus efeitos perduram de forma cada vez mais preocupante.

Todos os fatos supracitados compartilham um protagonista em comum. Ademais, os três primeiros ocorreram sob o contexto da Segunda Grande Guerra, outros dois sob a Guerra Fria e a geopolítica bipolar, e o último num mundo pós-Muro de Berlim, sob a mais consolidada vitória liberal.

Como se pode ver, o tempo não fez com que as atitudes mudassem de quaisquer formas. Acontece, porém, que, entre os três primeiros e os três últimos eventos, veio ao mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, à histórica data de 10 de Dezembro de 1948.

Se antes não havia um consenso universal em matéria de direitos básicos do homem, após 1948 nada justifica a persistência das principais potências do globo em tais práticas genocidas. E ainda que em um contexto de disputa geopolítica acirrada, com uma brutal corrida militar e tecnológica, os dois polos do mundo tenham excedido o uso da força com vistas a interesses maiores, ainda assim não se é possível encontrar hipóteses justificadoras para a persistência da violação dos Direitos Humanos num mundo unipolar, onde a prometida e decepcionante vitória do capitalismo global sob égide americana parece não ter levado benesses a todos os povos, mas incrementado a rivalidade entre as nações e prolongado o abismo entre países ricos e pobres.

Marx em meados do Século XIX, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, viria a dizer que a História se repete, sendo a primeira vez uma tragédia e a segunda uma farsa. O fato é que se houve a tragédia da Segunda Grande Guerra, com o genocídio legalista dos alemães e os abusos de todos os lados do conflito, há também uma farsa evidente em matéria de proteção dos Direitos Humanos e tentativa de impedimento dos eventos ocorridos entre 1939 e 1945.

70 anos depois de seu advento, a Declaração Universal dos Direitos Humanos parece haver se convertido em um instrumento de Vontade para seus supostos defensores e as Nações Unidas parecem tomar os mesmos rumos da outrora Liga das Nações. Detectar os problemas básicos e fundamentais que vêm levando a este rumo aquele que é o principal legado do mundo pós-1945 é o objetivo do presente estudo, bem como apontar saídas e soluções ante o caminho já tomado.


2 – Da Genealogia da Universalidade de Direitos

Como bem ocorre com qualquer teoria que se pretenda universal, a ideia de uma universalidade de direitos incorre inerentemente em um subjetivismo típico das inovações acadêmicas ocidentais modernas. E para que se trace uma genealogia dos Direitos Humanos é preciso revisitar aquele que pode ser considerado seu alicerce filosófico, o individualismo.

Tomando por base o que enuncia Alain de Benoist no tocante aos Direitos Humanos, sua universalidade está intrinsecamente entrelaçada à noção do indivíduo como sujeito histórico das relações humanas, uma vez que, para Benoist, é minimamente curioso, estranho ou suspeito que um rol de direitos naturais inerentes a todos os homes em todas as partes do globo venha a ser percebido, desenvolvido e positivado em forma de Declaração apenas por uma tão ínfima parcela, não só da humanidade, como também da civilização europeia, correspondendo tão acertada e exclusivamente aos rumos e interesses ocidentais, de forma alheia à ampla maioria das cosmovisões dos diferentes povos.

Para que haja, portanto, uma universalidade de direitos com os quais nascem e aos quais guardem todos os seres humanos, de forma independente de seus respectivos contextos espaço-temporais, culturais e sociais, é preciso tomar por base o indivíduo como centro de todas as relações estabelecidas, separando-o de qualquer agrupamento, seja este de dimensão social, biológica ou cósmica. Logo, a única meta-teoria política sob a qual se é possível admitir o fenômeno da universalidade de direitos é aquela para a qual o indivíduo é admitido como o sujeito único da história. Desta forma, não se pode pensar em Direitos Humanos fora do liberalismo político.

Porém, o individualismo liberal possui raízes longínquas, que em muito superam os rasos estudos rotineiros das fontes convencionais. Pode-se pensar numa origem da mentalidade individualista na era medieval, com o surgimento da escolástica na Europa Ocidental católico-romana, já havendo séculos de divisão entre os mundos cristãos, ocidental e greco-romano-oriental. Ao passo que neste perdurou o legado romano até o Século XV, sobrevivendo o Império dos Césares alicerçado na teologia mística e patrística do cristianismo bizantino, naquele, o desenvolvimento de uma tradição escolástica, com uma teologia cada vez mais acadêmica, acabou por desembocar nos primórdios do racionalismo moderno, que por sua vez foi a base de todas as mudanças políticas e sociais na Europa mais tardia.

Pode-se traçar a origem do racionalismo ocidental na teologia tomista, onde se tem por possível a compreensão de Deus pelos atributos racionais do homem. Tomás de Aquino em sua Summa Theologica apresenta as 5 Vias para a comprovação da existência de Deus, sendo elas a via do movimento (tudo é movido por algo, logo, há o primeiro motor), a via da causa eficiente (todas as coisas têm uma causa eficiente, logo, há uma causa primeira de tudo), a via do contingente e do necessário (algumas coisas são necessárias e outras não. É necessário haver coisas necessárias para dar origem às não necessárias. Logo, há um primeiro necessário), a via dos graus de perfeição (as coisas do mundo possuem um grau de perfeição, que é a maior proximidade com aquela coisa que lhe é originária. Logo, há uma causa originária de tudo) e a via do governo das coisas (algumas coisas no mundo operam para um fim, logo, algo inteligente lhes move. Logo, há um primeiro inteligente que move todas as coisas a um fim específico).

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 Assim, pela lógica se torna possível, na tradição cristã ocidental, a compreensão de Deus, sendo irracional negar Sua existência. E é desta forma que a racionalidade assume papel central na sociedade medieval tardia da porção ocidental da Europa. Ao passo que, na porção oriental, a tradição cristã bizantina mantinha seu caráter profundamente místico, conservando a Patrística em total detrimento da sistematização acadêmica da teologia, isolando-se por completo das inovações filosóficas que viriam a culminar no racionalismo moderno.

O passo mais marcante do cristianismo ocidental rumo ao moderno individualismo vem com o advento da Escola Nominalista de Guilherme de Ockham e a consequente concepção de singularidade do ser. Em Ockham o indivíduo toma pela primeira vez o lugar central das relações humanas, e esta foi a matéria-prima para o desenvolvimento da Escola de Salamanca, sobre a qual vem a enunciar Benoist:

No século XVI, pela influência dos dois principais representantes da Escola de Salamanca, Francisco de Vitória e Francisco Suárez, a teologia escolástica passa de uma noção de direito natural objetivo, fundamentado na natureza das coisas, a uma noção de direito subjetivo, fundamentados na razão individual. Enquanto afirma a unidade política do gênero humano, o jesuíta Francisco Suárez declara que o fato social e político não se explicitaria pela pura inclinação natural em uma direção sociabilidade: falta um ato de vontade dos homens e um acordo de suas vontades (a mesma ideia será retoma por Pufendord). Francisco de Vitória acrescenta que "o direito das gentes é o que a razão natural estabeleceu entre todos os povos". O direito se torna, então, sinônimos de uma faculdade individual conferida pela lei moral, com um poder moral para fazer. Com o direito subjetivo - assinala Michel Villey - o indivíduo se transforma "no centro e origem do universo" (BENOIST, 2013, pg. 23).

A influência dos pós-escolásticos – como ficaram conhecidos os teólogos se Salamanca – é notória e reconhecida inclusive por alguns dos maiores nomes do liberalismo econômico. E é deste ramo tardio da teologia sistematizada católica que surgem as bases metafísicas para erigir o pensamento individualista, do qual vão se apropriar os autores que posteriormente virão a defender os outros dois pontos cruciais da genealogia do universalismo de direitos, a saber, o Estado-Nação e a democracia liberal.

Hobbes não mudou de opinião quanto ao individualismo, e toda a teoria do Estado-Nação moderno vem de uma base individualista, sendo o instrumento principal pelo qual, ao longo da transição do medievo para a modernidade, a burguesia assumiu o papel central na máquina política, destruindo os resquícios finais de estratificação social, trazendo uma nova era à humanidade.

Em verdade, se pode dizer que todo o imaginário moderno de democracia, liberdade, igualdade e universalidade de direitos é absolutamente impensável sem o Estado-Nação. O Estado-Nação, a ideia de um conglomerado quantitativo de indivíduos sob o governo de um homem ou de uma assembleia de homens é, sem qualquer espaço para questionamentos, a condição de existência de todas as três teorias políticas modernas (liberalismo, comunismo e fascismo), das quais apenas a primeira se sobressaiu, decorridos os eventos do último século.

Sumariamente, o Estado-Nação é a supressão de todas as noções identitárias regionais em nome de um contingente populacional. É a substituição do(s) povo(s) pela massa trabalhadora. É o reino da quantidade em detrimento do império da qualidade. Esta é a base de todo o pensamento liberal-democrático e universalista moderno, o qual se constrói sobre o solo da atomização do indivíduo, esta inovação racionalista que separa o homem de todas as suas formas de identidade, sejam elas de qualquer natureza.

O homem é reduzido à dimensão atomizada do vazio extremo, desprovido de qualquer contexto que o classifique como tal. O homem moderno não é mais integrante de um clã etnicamente ligado, onde a tradição, a religião e as relações sociais gravam na história os laços familiares de uma nação – a noção de nação como uma grande família. A nova concepção de Estado admite apenas um somatório de indivíduos atomizados, distantes entre si, sem laços que componham qualquer unidade, à exceção da explorável força produtiva. Esta é a única via possível para a existência de uma igualdade de direitos.

Cabe ainda mencionar as implicâncias de um dos mais influentes eventos da história ocidental na ascensão da cosmovisão individualista e para a ascensão do Estado Nacional burguês, a Reforma Protestante. Convêm, antes de qualquer aprofundamento retórico, ressaltar a própria natureza individualista da Reforma enquanto ato, uma vez que, segundo a qual, um homem em particular vem a trazer à luz uma verdade obscurecida durante séculos de cristianismo, estando ele à frente de um incontável rol de santos e doutores de mais um milênio de cristianismo – frise-se que Lutero não dirigiu suas críticas à Roma de modo a aderir às teologias cristãs não ocidentais, tais como os cristãos ortodoxos gregos e os miafisitas do Oriente, mas julgou-se a si próprio como o reformador da já estabelecida igreja cristã, arrogando-se o luteranismo de ser o continuador da mesma igreja dos Santos Padres, que teria se corrompido e perdido sua legitimidade, resgatando-se pelas palavras e atos do  indivíduo Lutero.

Teológica e filosoficamente, Lutero advém diretamente dos nominalistas. Guilherme de Ockham e Gabriel Biel, como se bem vê em sua Disputatio contra scholasticam theologiam, são suas maiores influências. Desta forma, o individualismo alimenta todo o trabalho no qual se empenhou Lutero, que por sua vez se torna a chave essencial para o desenvolvimento de uma série de mudanças radicais na sociedade europeia, uma vez que o protestantismo, em suas mais diversas facetas, é de papel marcante e insubstituível para a ascensão do capitalismo em sua forma hoje conhecida.

Quem brilhantemente discorrerá sobre isso séculos mais tarde é o economista e sociólogo alemão Max Weber, em sua obra mais brilhante, Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, onde são relacionadas as circunstâncias que tornaram possível o desenvolvimento do chamado “espírito capitalista” com o terreno europeu ocidental pós-Lutero, onde a ética protestante impulsionou uma série de mudanças sociais nos Estados Nacionais burgueses.

Pode-se dizer concretamente que o protestantismo se tornou a fé burguesa ocidental por excelência, culminando no motor de uma série de mudanças sociais visando o desenvolvimento do capitalismo em um contexto de Estados artificialmente nacionais, onde identidades fictícias são construídas a partir do sufocamento de identidades reais e originárias, resultando no somatório populacional classista da sociedade burguesa. E isto ocorre fundamentalmente em razão da mudança da cosmovisão europeia do trabalho que vem a ocorrer coma reforma.

Sumariamente, entre católicos ocidentais, ortodoxos, miafisitas e faces mais tradicionais do cristianismo, o trabalho é visto como um fardo para o homem decaído, uma maldição que se subsegue ao pecado e à qual deve carregar o homem para sua própria sobrevivência em razão de haver transgredido uma lei primária. Esta visão que guiou por anos o mundo cristão vem a mudar radicalmente com o advento da Reforma Protestante e principalmente com as inovações de Calvino, onde o trabalho adquire um valor metafísico salvífico, atribuindo ao enriquecimento um caráter glorioso, meritocrático e acima de tudo sacro. As consequências gnosiológicas da Reforma são a matéria-prima e o solo fértil para o desenvolvimento do capitalismo industrial, que vem a substituir as antigas sociedades católicas de economia predominantemente agrária, onde o trabalho, em seu entendimento cristão tradicional, era voltado, sobretudo, para a subsistência, não visando o acúmulo de lucros privados. Com o protestantismo, em sua ética apologética da riqueza, são abertos os espaços para a atuação dos grandes industriais e a consolidação do capitalismo.

A Ética Protestante do trabalho, contudo, tem efeitos distintos, contribuindo, para além da mera edificação da sociedade burguesa, também para a fomentação de todo um aparato cultural que transcende a mera transição dos sistemas de produção, a exemplo do inestimável valor cultural da arte protestante alemã e a influência dos valores luteranos e calvinistas nas Virtudes Prussianas (nas palavras de Walter Flex, Wer je auf Preußens Fahne schwört, hat nichts mehr, was ihm selbst gehört), que mais tarde vêm a ser exploradas brilhantemente por Oswald Spengler como expressão do Socialismo Prussiano (Preußentum und Sozialismus. SPENGLER, 1920), que diferem em totalidade da mentalidade individualista liberal moderna. Há de se ressaltar, porém, que a própria unificação alemã demonstra o quão artificial é a configuração da nacionalidade nos termos modernos, quando a mesma se mostra advinda de um processo de supressão da pluralidade regional, com a extinção das distintas “Alemanhas” sob o prisma da construção da identidade una alemã, sufocando a expressão de uma ampla diversidade étnica, religiosa e linguística. 

Dito o exposto, traçada uma breve genealogia do conceito de universalismo (estágio superior do individualismo) cabe adentrar ao mérito da avaliação da manifestação histórica dos Direitos Humanos.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Lucas Leiroz. Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5379, 24 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64898. Acesso em: 19 mar. 2024.

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