Capa da publicação Totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
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Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

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24/03/2018 às 15:40
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4- Da nova forma de totalitarismo

 Como foi dito anteriormente, a construção teórico-ideológica dos Direitos Humanos na modernidade recente revela com clareza seu conteúdo mais profundo, de ordem filosófica e metafísica individualista e materialista, politicamente democrático e economicamente liberal. O fenômeno do surgimento deste rol de direitos compreende a universalização de um dogma que materialmente pode-se dizer nascido no seio da civilização ocidental tardia, ao passo que, se compreendido em concordância com seu próprio embasamento, trata-se de uma substância jurídica natural a todos os homens nascidos em todo o planeta, mas que, por questões de refinamento filosófico, desenvolvimento escolástico-acadêmico e usufruto dos atributos racionais, em larga escala explorados na Europa secular, só foram percebidos e positivados pela parte oeste mundo, devendo esta descoberta, de toda forma, ser levada a todos os povos, tal qual a outrora dogmática católico-romana (BENOIST, 2013).

Quando se fala em uma nova forma de totalitarismo, que estaria presente e em plena atuação nos tempos correntes, impondo dogmas a povos estrangeiros e descontruindo e reconstruindo culturas de acordo com o grau de proximidade com a construção teórica por trás deste autoritarismo moderno, não se pode pensar em outro instrumento de vontade ao dispor do ente totalitário senão todo aquele aparato legitimador das ações imperialistas ocidentais. É com base nisso que cada vez mais se mostra simétrica com a realidade a tese de existência de uma instrumentalização dos Direitos Humanos pelas potências ocidentais como forma de imperialismo, de modo análogo ao cristianismo ocidental que no passado serviu de base para a expansão do mercantilismo europeu.

Porém, este neototalitarismo, como evidenciam estudos mais aprofundados, não é exatamente tão recente quanto faz parecer. Para adentrar a este mérito, é necessário traçar uma nova genealogia, que determine os pontos da evolução moderna do totalitarismo ocidental, percorrendo os principais fenômenos da história recente.

4.1 - Genealogia do totalitarismo moderno

 4.1.1 - O darwinismo social e o estágio inicial do imperialismo ocidental

Com o advento do darwinismo social e suas implicâncias no imperialismo europeu na África e na Ásia, em decorrência de sua suposta missão civilizatória, surge uma nova forma de expansionismo, que, ao contrário dos Impérios de outrora, não visava à anexação imperial territorial, sendo esta o objeto exclusivo da Vontade, condicional de existência do Império, mas prezava, por outro lado, por aquilo que pode ser chamado, em Spengler, de último estágio de uma civilização decadente.

Para Spengler, em Der Untergang des Abendlandes (SPENGLER, 1922), o imperialismo é como o último suspiro de uma civilização moribunda, o que evidenciava o estágio final da Europa de seu tempo. A concepção spengleriana de civilização pode ser entendida, nas palavras do próprio, da seguinte forma:

"A civilização é o destino inevitável de cada cultura. Com (a civilização), alcançamos o cume onde se tornam solúveis os derradeiros, os mais difíceis problemas da morfologia histórica. Civilizações são estados extremos, mais artificiosos, que uma espécie superior de homens é capaz de atingir. São um término. Seguem ao processo criador como o produto criado, à vida como a morte, à evolução como a rigidez, ao campo e à infância das almas como a decrepitude espiritual e a metrópole petrificada e petrificante. Representam um fim irrevogável, ao qual sempre se chega com absoluta necessidade" (SPENGLER, 1922).

Esta civilização, ente orgânico nascido da cultura, se vê em seus últimos dias quando produz progressos que lhe fogem ao próprio controle, com petrificações extensivas que se voltam contra o próprio ente imperialista. Sendo o Ocidente a única civilização conhecida a completar o ciclo orgânico de nascimento à – futura – morte traçado por Spengler, foi também a única a produzir os efeitos devastadores do imperialismo, que não podem ser confundidos com o fenômeno clássico imperial.

Se é parte orgânica do Império a busca pela expansão e a anexação, sendo esta a expressão máxima da vontade de potência nietzschiana, o imperialismo é, por contrário, um fenômeno surgido da era capitalista e da necessidade de expansão dos mercados do Ocidente. Em suma, o imperialismo é a chamada fase superior do capitalismo (LENIN, 1917), onde a corrida por mercado consumidor, matéria-prima, mão-de-obra e, em linhas gerais, zonas de domínio político e econômico, levou à corrida das potências pela partilha das terras africanas e asiáticas, dando início também a uma sucessão de conflitos imperialistas, dos quais a Primeira Grande Guerra foi o principal desfecho, bem como tudo o que dela se sucedeu.

Como bem se sabe, foi fator justificador da agressão imperialista neocolonial a teoria darwinista social, que, como nominalmente evidente, se propõe a aplicar a ideia d’A Origem das Espécies (DARWIN, 1859) nas sociedades humanas, concluindo a existência de sociedades superiores historicamente afirmadas em seu processo evolutivo, e que se arrogariam do direito de dominação sobre as nações inferiores, levando-lhes a civilização.

O que aqui cumpre salientar é a analogia entre as agressões imperialistas em seu estágio inicial na Europa pré-1914 e as de agora, com o mundo sob jugo americano, desde 1945, e os fatores justificadores das mesmas. Pois, se antes uma teoria social-natural pseudocientífica alicerçada no darwinismo era o legitimador do neocolonialismo, agora uma formulação jurídica prematura abre margens para toda uma série de ações análogas e partidas dos mesmos atores históricos, com único destaque para o protagonismo norte-americano em detrimento da porção ocidental europeia.

Se se traçar uma genealogia do darwinismo social e que seja abrangente a ponto de englobar as noções evolutivas pré-Darwin, pode-se chegar a um ponto comum de partida para ambos, o darwinismo social e o individualismo universalista moderno. Mesmo em Tomás de Aquino, com a noção de Imago Dei, e a escada de seres semelhantes a Deus, muitos autores enxergam a matéria-prima para a ideia do evolucionismo em algumas de suas dimensões. Porém, este estudo não é cabível no presente trabalho, uma vez que versa sobre questões que adentram a temas que fogem à tese desenvolvida. Desta forma, ignorando a afirmação histórica do pensamento evolucionista em dimensões extra-biológicas e tomando por base a ideia da civilização ocidental como a única “evoluída”, com a missão civilizatória de levar seus adventos a todos os povos, podemos enxergar como sendo fatores de mesma função tanto o darwinismo social quanto a Teoria dos Direitos Humanos.

4.1.2 – Versalhes e Nuremberg: o gênesis do novo totalitarismo

As convulsões imperialistas do começo do Século XX culminaram nas Grandes Guerras Mundiais, após breves décadas de crises, revoluções e mudanças na configuração geopolítica global, passando o eixo mundial para as mãos de americanos e soviéticos, após um legado de séculos na Europa Ocidental. O fenômeno do nazismo, ocorrido na Alemanha entre 1933 e 1945, caracterizou aquele que por certo é o regime lembrado como maior símbolo do horror, protagonista de algumas das práticas mais desumanas já registradas na história. Contudo, a categorização dos eventos ocorridos na Alemanha como fatos isolados na história humana ou até no contexto europeu do Século XX constitui uma problemática não apenas jurídica quanto histórica.

Factualmente, o Tratado de Versalhes, celebrado em 1919 após longas negociações e ratificado posteriormente, que puniu a Alemanha pelos efeitos da Primeira Guerra foi para o povo alemão um fardo tão grande que nada poderia despertar senão o ódio e o revanchismo, segundo simples dialética histórica. As imposições forçadas contra a Alemanha culminaram numa crise nacional de ordem política e econômica sem precedentes. O fraco governo social-democrata não fora capaz de conter o sentimento revanchista tão bem trabalhado pelo emergente Partido Nacional-Socialista, onde um ódio potencialmente assassino, revestido de um nacionalismo ultrarradical, se convertia em ideologia política e posteriormente em política de Estado. E o nazismo, por sua vez, no poder perpetrara a barbárie contra tudo o que julgava inimigo. Os massacres, expurgos e o protagonismo na Segunda Guerra Mundial renderam aos alemães uma nova punição após a tomada de Berlim pelos soviéticos.

Mas cabe salientar, além das consequências de Versalhes em solo alemão, outro fato de suma importância para o presente estudo, a criação da famigerada Liga das Nações. Uma organização internacional criada com o intuito de evitar a reincidência de um conflito armado de dimensões análogas à Primeira Guerra Mundial. Como se percebe, se se leva em consideração o objetivo central da Liga das Nações, constata-se que o projeto foi um fracasso completo. O então presidente americano, Woodrow Wilson havia proposto Quatorze Pontos para a paz na Europa, que, ao fim de tudo, advogavam pelo livre-mercado e pela democracia liberal, tentando apaziguar as ambições nacionalistas e visando a ascensão econômica americana. Poucos dos pontos foram positivados no Tratado, devido às divergentes negociações entre as potências, mas, de toda forma, a entrada americana triunfante na Guerra, da qual saíram os EUA vitoriosos, dominantes e milhares de vezes mais ricos, foi o resultado principal de todo o conflito.

Woodrow não obteve êxito em suas ambições ao negociar os pontos necessários para a paz na Europa com as potências europeias, abstendo-se de aderir à Liga, a exemplo da Rússia Soviética e das nações derrotadas na Guerra. O resultado foi um organismo completamente desestruturado e incapaz de lidar com as mesmas problemáticas que levaram ao confronto ao qual se propunha evitar repetição. Não à toa, a organização ficou conhecida como “Liga dos Vitoriosos”, se mostrando nada mais que um coletivo das nações vencedoras de determinado conflito, que se propuseram juntas a impor punições e restrições às nações derrotadas e a projetar um idealismo de paz mundial, do qual estavam excluídos justamente os principais potenciais ameaçadores desta paz, os EUA, agora principal potência mundial, a Rússia Soviética, uma então completa incógnita que em tudo se contrapunha aos interesses ocidentais, e a vencida Alemanha, lançada em um estado de crise e miséria, germinando o sentimento revanchista que viria a ocasionar graves consequências.

Sumariamente, o projeto fracassado da Liga das Nações foi um equívoco do início ao fim de sua experiência, não sendo nada mais do que uma sociedade de vencedores impondo punições a uma nação derrotada e descuidando dos pontos principais para a uma potencial reincidência de guerra. A Europa devastada pela Guerra dera lugar aos EUA como principal potência política, econômica e militar do planeta, que, por sua vez, manteve-se de fora da Liga, garantindo em integralidade a manutenção de seus interesses. Nasce a URSS no começo dos Anos 20 e a agrária e feudal Rússia se converte em uma potencial ameaça de contraponto aos interesses ocidentais. Vem a Grande Depressão em 1929 e eclode uma crise mundial sem precedentes, na qual os soviéticos não incorrem em razão de seu modelo econômico diverso. Os EUA e as potências europeias se empenham em medidas econômicas que sanem as consequências da crise sem incorrer em antiliberalismo, senão que apenas aumentando em alguma medida o grau de regulação estatal. A Itália Fascista não adentra ao quadro caótico da crise do capitalismo. E como desfecho de um longo processo, a crise mundial termina, na Alemanha, por aniquilar a já frágil República de Weimar, dando lugar ao regime nazista e à guinada nacionalista que se alastraria novamente pela Europa.

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Sem adentrar ao mérito dos fatos que ocasionaram o estopim da Segunda Grande Guerra, bem como ignorando a atribuição da responsabilidade pelos mesmos, avançamos nosso estudo para o ano de 1945, quando a Alemanha, outra vez derrotada, é novamente punida por seus atos no plano jurídico internacional. Instaura-se em Nuremberg um Tribunal militar onde são levados a julgamento os supostos principais líderes da barbárie nazista. O que se viu, na verdade, cabe destacar, foi uma violação completa de tudo o que hoje se tem por noção de Direitos Humanos. Uma lista arbitrária, aleatória, parcial e incompleta de prisioneiros levados a julgamento; um rito judiciário sem direito à ampla defesa; condenações e execuções de réus levianamente acusados, sem disposição de contraditório, alguns dos quais que pouco ou nenhum envolvimento direto possuíam nos massacres, tais como Alfred Rosenberg, ideólogo racista, porém sem qualquer envolvimento militar, e Rudolf Ress, importante político alemão que tentou negociar a paz com os britânicos, sendo preso sem ter consideradas suas propostas – que poderiam vir a evitar o prosseguimento da Guerra e o prolongamento das matanças.

Sobre o tema, o Procurador Legislativo Municipal em Natal (RN), Professor da UERN e Mestre em Direito pela UFRN, Dijosete Veríssimo Da Costa Júnior enuncia com mérito:

“Alguns argumentam que o Tribunal Militar Internacional foi uma justiça dos vitoriosos, e que o julgamento deve ser criticado por uma variedade de razões. A lista dos acusados foi algo muito arbitrário. Houve também dúvidas básicas. Os acusados foram atacados com violação as leis internacionais, mas a lei foi construída pelas nações e não pelos indivíduos. Os Indivíduos poderiam trazer para a justiça apenas sobre as leis dos seus próprios países, não na base de uma nova ordem estabelecida após uma guerra.” (JÚNIOR, 1999).

Não houve qualquer trabalho investigativo de maior sofisticação – cabe salientar que um número incontável de criminosos nazistas, todos de envolvimento direto nos massacres muito maior do que o dos julgados, refugiou-se na América Latina ou foi perdoado pelos Aliados, não passando pelos tribunais, em razão de prestarem serviços aos governos aliados - ou qualquer empenho em se estabelecer um julgamento justo, com direito à defesa, e muito menos uma apuração eficiente e concreta dos fatos, senão que uma série de tribunais de exceção impostos pelos Aliados com dois únicos intuitos, a função retrospectiva das penas, num ato de vingança contra um determinado número de alemães arbitrariamente nomeados para julgamento; e a função prospectiva, onde os vencedores do conflito afirmavam agora sua posição de “reis do mundo”, trazendo às claras as possíveis consequências aplicáveis a qualquer um que desviasse os rumos nacionais de seus interesses globais. É por estes fatos que os Julgamentos de Nuremberg são neste estudo considerados o  ponto inicial da fase hodierna do totalitarismo ocidental.

4.1.3 – A Declaração de 1948 e a positivação universal dos valores ocidentais

Em 1948, finalmente, após longos debates acerca dos alicerces para a construção de um novo mundo, pautado na paz universal, vem a público, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um documento que em si não possui força legal, mas que serve de base para tratados internacionais de força jurídica efetiva, para os ordenamentos jurídicos de todas as nações comprometidas com o bem-estar dos povos e para uma renovada Academia, comprometida com a reordenação jurídica internacional, pautada no respeito aos direitos fundamentais ali elencados.

Se há um marco na história recente da humanidade que determina o começo de uma nova era, pode-se dizer tratar da Declaração de 10 de Dezembro de 1948. Ao menos em suas pretensões teórico-ideológicas, este documento anuncia a recriação do universo, num mundo onde todos os homens nascem livres e portadores de direitos naturais e irrenunciáveis. Mas o que se viu na prática, como já exposto desde o início deste trabalho, não foi exatamente a paz mundial, senão que, de forma análoga aos eventos do entre-guerras, um fator legitimador do imperialismo e de toda sorte de agressões estrangeiras em nome dos Direitos Universais.

Em 1945, com o fim da Segunda Grande Guerra, a fracassada Liga das Nações é oficialmente substituída pela Organização das Nações Unidas, organismo até hoje vigente no topo da hierarquia das relações internacionais, ao qual integram uma série de órgãos comprometidos com seu funcionamento efetivo, todos pautados nos valores ocidentais-universais, da democracia, do livre-mercado e dos Direitos Humanos. A problemática em torno da ONU surge justamente em torno de seu funcionamento. Ao contrário de sua precursora, a ONU atua mundialmente de forma efetiva, como se pode verificar nos episódios mais diversos dos tempos passados e correntes. A pergunta a ser feita é se esta atuação internacional estaria sendo de fato no sentido de coibir possibilidades de eclosões de conflitos internacionais ou na de universalizar os valores ocidentais para, com isto, consolidar os interesses do mesmo hemisfério, submetendo todo o universo ao jugo globalista, sob domínio americano, alienando até mesmo da categoria civilizacional toda e qualquer manifestação em sentido contrário aos desígnios ocidentais.

Uma série de guerras, golpes, intervenções, conflitos armados, revoluções armadas e diversos incidentes similares ainda são de incidência corrente no mundo inteiro.  Alguns destes eventos são aplaudidos pelo “quarto poder” spengleriano, a mass media, se tornando ícones comportamentais propagandeados em todos os cantos do planeta, Por outro lado, alguns dos mesmos acontecimentos são descritos como fortes violações dos Direitos Universais, experimentando involuntariamente a mão punitiva da “justiça” global, com julgamentos de exceção, embargos, sanções e intervenções.

Para adentrar a este mérito, abre-se outro tópico.

4.2 – Da práxis totalitária do universalismo

A práxis jurídica para a garantia dos Direitos Humanos é um dos principais objetos a serem estudados em um projeto de pesquisa dissidente ao convencionalismo acadêmico. Tome-se como exemplo, para ilustrar a presente tese, o caso da Corte Internacional de Justiça, órgão de criação adjunta às Nações Unidas, com competência para julgar litígios submetidos por Estados, sendo um dos pilares para o desenvolvimento do Direito Internacional e para a garantia dos Direitos Humanos.

Dentre as mais efervescentes discussões acadêmicas em torno da temática jurídica internacional, está a questão das fontes do Direito Internacional. A CIJ, principal Tribunal internacional, com indescritível legitimidade para tratar da questão, enuncia no Art. 38 de seu Estatuto um rol de fontes que consensualmente são referidas como as fontes do DI, porém, ignorando o tema das fontes, cabe atentar para apenas um único detalhe, contido na alínea c do mesmo artigo. É ele: “c) os princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas;”. O polêmico termo “nações civilizadas” tem sido alvo de determinadas polêmicas e acusações, cujas respostas da doutrina majoritária têm sido convencionalmente a vagueza do clamor à desconsideração do termo. Um exemplo de elucidação doutrinária para o emprego do termo está contido na obra do ilustríssimo Rezek:

“O uso do termo nações civilizadas não teve substrato discriminatório ou preconceituoso, tal como ficou desde logo esclarecido. A ideia é a de que onde existe ordem jurídica-da qual se possam depreender princípios -, existe civilização. Dessarte, quedem excluídas a penas as sociedades primitivas –que, de todo modo, porque não organizadas sob a forma estatal, não teriam como oferecer qualquer subsídio.” (REZEK, 1996)

 Nada, porém, poderia ser menos satisfatório do que uma resposta que clama para que se ignore o vocábulo constante em documento de tamanha relevância jurídica. Quando se indefere a explicação rasa dos doutrinadores, de que o termo nada tem de conteúdo discriminatório ou excludente, tem-se apenas uma conclusão cabível à problemática, a qual vem sendo trabalhada ao longo de todo este estudo: há no seio da doutrina jurídica universalista um teor profundamente discriminatório – em outros termos, racista -, que impõe coercitivamente valores advindos do processo civilizatório ocidental a todos os povos, para os quais esta axiologia é absolutamente alienígena, sendo estas nações não ocidentais categorizadas como não civilizadas, bárbaras e menos evoluídas, tais quais foram outro classificadas por razões religiosas pelo Ocidente católico e tecnicistas pelas potências imperialistas.

O ordenamento jurídico internacional, em suma, é pautado sob a cosmovisão ocidental, nos limites da axiologia construída por Europa e EUA ao longo dos últimos séculos, com suas respectivas revoluções acadêmicas e políticas, excluindo por completo algo análogo ao que Boaventura de Sousa Santos denomina de Epistemologias do Sul (SANTOS, 2009), ou seja, não trazendo de nenhuma maneira ao debate internacional acerca da realidade humana as concepções de conhecimentos do Sul do mundo, das nações precocemente julgadas bárbaras, cujas culturas divergem das axiologias sistematizadas advindas do Ocidente e cujas noções de direitos, liberdade, valor da vida humana e demais questões são valoradas desde distintas perspectivas.

Para o islã, por exemplo, a noção de Direitos Humanos é de todo assimétrica com o que há de mais básico na doutrina maometana, a começar pelo fato de, como entre os cristãos do Oriente e a grande maioria dos povos cujas tradições divergem dos adventos seculares do Ocidente pós-escolástico, na sociedade islâmica não haver uma limitação pré-determinada entre o Sagrado e o secular, onde se distingue a política e o Direito institucionalizados da dogmática teológica em diferentes foros, público e privado, de modo a ser possivelmente assegurada a liberdade individual plena e indistinta de crença e pensamento, o que é completamente alheio ao islã. Não à toa, no Oriente próximo podem ser vistas até hoje as maiores incongruências da práxis dos Direitos Humanos com aquilo que está elencado em sua própria Declaração.

A “Guerra ao Terror” travada pelos EUA contra um rol de nações e organizações no Oriente Médio mostra como isto tem ocorrido ao longo dos anos. A derrubada injustificada do regime de Saddam Hussein e sua execução análoga aos julgamentos de exceção das cortes militares de Nuremberg, bem como o verdadeiro massacre de palestinos pelas mãos do Exército Israelense, em sua política expansionista ao longo das décadas, são exemplos de como, para o Ocidente, povos que, pela fé que professam e pela cultura em que vivem, adotam políticas e costumes divergentes dos padrões ocidentais, são impelidos ao alinhamento por meio de guerras, embargos e massacres. Por outro lado, quando tais costumes não implicam em um desalinhamento político com o eixo ocidental, nada há a ser feito, senão que respeitado e incentivado, tais quais as práticas desumanas comuns à vida civil na Arábia Saudita wahabbista, ademais de uma série de contradições que mostram como esta guerra tem se tornado uma guerra “de terrores”, onde lados opostos praticam atos análogos, visando o prevalecimento de seus distintos interesses, ao contrário da imagem de cruzada internacional contra o terrorismo islâmico, que tenta passar o quarto poder global.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Lucas Leiroz. Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5379, 24 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64898. Acesso em: 19 abr. 2024.

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