Resumo: O presente estudo tem o objetivo de demonstrar que o instituto da revelia, tal como pensado para o processo civil, não tem aplicação no processo penal brasileiro, não sendo, portanto, como apregoado por determinados setores da doutrina e da jurisprudência, aplicável ao réu que estiver ausente ou não comparecer à audiência criminal ou sessão do júri para a qual for intimado. É que os efeitos da revelia são impróprios para o processo penal, especialmente após a reforma procedida pela Lei n.º 11.719/2008. Aliás, a ideia da revelia, como sanção de ordem processual, não encontra respaldo no processo penal, nem pode sobrepor-se a princípios de categoria constitucional como o da presunção de inocência, na medida em que, não estando o réu preso ou sujeito a condições impostas pela liberdade provisória, nem a medidas cautelares diversas da prisão ou à fiança previstas nos arts. 319 e 350 do CPP, não está obrigado a comparecer.
Palavras chaves: Revelia – Processo Penal – Princípio – Partes – Júri - Juiz.
Sumário: 1. Introdução. – 2. Conceito de Revelia. – 3. Da Revelia no Processo Penal. – 4. Conclusão.
1.Introdução
Muito tem sido discutido, em processo penal, sobre a aplicação do instituto da revelia ao acusado ou réu que inatende à citação ou intimação para se defender ou para comparecer em juízo, a fim de participar de audiência criminal ou sessão do júri, para ser interrogado, ou simplesmente para acompanhar diligência de seu interesse.
A questão a ser examinada aqui não pretende fincar raízes nos motivos que levam o réu a proceder dessa maneira, muito menos quanto à ausência da apresentação da resposta ou defesa escrita a que alude o art. 396 do CPP, mas unicamente sobre as implicações de sua ausência ou não comparecimento se intimado ou citado para esse fim.
O objetivo é investigar se o entendimento que, na esfera doutrinária ou judicial, professa a aplicação da revelia do acusado (ou réu) nos casos aqui apontados estão limitados apenas à simples redação literal do Código de Processo Penal e resultam de interpretação equivocada que não guarda correspondência com os princípios adotados pela Constituição Federal Brasileira.
2.Conceito de Revelia
Todo conceito em direito é perigoso. Essa regra comezinha é do conhecimento de qualquer profissional ou estudante de Direito, de modo que não nos alongaremos em apontar as minúcias do que a doutrina e a jurisprudência entendem sobre o instituto da revelia.
Não obstante isso, para que não pairem dúvidas sobre o que significa, na prática, esse instituto diz-se que revel é aquele que não contesta a ação no prazo legal; vale dizer, que não se defende no momento oportuno; que age como um rebelde, contumaz, teimoso, recalcitrante ou equivalente. Por isso mesmo, vigora na doutrina o entendimento de que a contumácia é um dos graves efeitos da revelia.
Tecnicamente, pode incorrer em contumácia qualquer das partes que deixa de exercer atividade no processo no momento em que deveria agir. Por isso, tanto o autor, quanto o réu podem incorrer em contumácia, independentemente do momento processual em que deveriam manifestar-se em juízo.
Incorre, por exemplo, em contumácia o autor ou o réu que, no prazo para se manifestar sobre o laudo pericial, permanece inerte; o autor ou o réu que, no prazo para arrolar testemunhas, nada faz; o autor que, no prazo assinado pelo juiz, não corrige um defeito da peça acusatória; e o réu que, intimado para se manifestar sobre um incidente processual (mutatio libelli), silencia.
A concepção mais evidente da revelia, entre nós, se encontra corporificada no processo civil, considerando a hipótese de inércia do réu no momento em que ele deve apresentar a contestação, e não o faz. Trata-se de uma contumácia que pode produzir efeitos bem mais graves, porque a ela é também acrescentada a figura da confissão ficta quanto a matéria fática alegada pelo autor, conferindo presunção de veracidade aos fatos, censura que é incompatível com o processo penal. Por isto, há quem diga que a revelia é a contumácia total do réu.
Mas à evidência, tais fenômenos não podem ser encarados no campo do processo penal como hipóteses de revelia, haja vista a faculdade do réu de comparecer em juízo para se defender, ou se autodefender, no momento em que é compelido, conforme veremos adiante.
3.Da Revelia no Processo Penal
O instituto da revelia, como professa o processo civil, é estranho ao processo penal. Basta ver que, em nenhum dispositivo legal do CPP, essa expressão é utilizada como sinônimo de pertinácia ou de rebeldia, porque embora ausente o réu, ele tem direito a defender-se, quer por meio de advogado constituído, quer por meio de defensor público ou dativo.
O Estado, como titular do jus persequendi in juditio, tem a obrigação de assegurar defesa técnica de qualidade ao acusado, a fim de que o sistema de pesos e contrapesos equilibre a relação processual instaurada.
Da pesquisa realizada, só conseguimos encontrar a palavra revelia três vezes no CPP. A primeira está no art. 79, § 2.º; a segunda no art. 564, III, alínea “g”; e a terceira no art. 610. Em nenhuma delas a expressão revelia tem o caráter de sancionar (com os efeitos danosos dessa figura processual) o réu que não comparece em juízo para se defender ou para os demais atos do processo.
Sempre que o CPP se refere ao acusado que não atende a citação ou a intimação para prática de algum ato processual, o menciona como ausente. Veja-se, inclusive, que, mesmo quando o acusado não apresenta defesa escrita (resposta – art. 396-A, § 2.º, CPP), não é tratado como revel, visto que não há no dispositivo legal o emprego dessa expressão. E quando é indispensável a presença do mesmo em juízo, o código arma o Juiz dos poderes previstos no art. 260, do referido diploma legal.
A revelia, por isso mesmo, não pode ser vista, no processo penal, com os mesmos olhos do processo civil, visto que fere inúmeros princípios de ordem constitucional e processual, que protegem direitos indisponíveis do réu, dentre os quais sobrelevam o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência e o jus libertatis, como consectários do devido processo legal.
Com efeito, a matéria não é pacífica, existindo certa controvérsia na doutrina e na jurisprudência. Ainda que seja majoritário o posicionamento em reconhecer a aplicação do instituto da revelia, para certos casos, no processo penal, existem entendimentos contrários, que tem como marco teórico, repita-se, os paradigmas dogmáticos consolidados na nossa Carta de Princípios e no Pacto de São José da Costa Rica.
Guilherme de Souza Nucci[1], por exemplo, obtempera que:
“O réu citado, que não comparece para ser interrogado, desinteressando-se por sua defesa, uma vez que os direitos são sempre indisponíveis, nesse caso, terá defensor nomeado pelo juiz, nos termos do art. 261 do CPP...
Enfim, o que ocorre na esfera penal é a simples ausência do processo, consequência natural do direito de audiência. O réu pode acompanhar a instrução pessoalmente, mas não é obrigado a tal. Estando presente seu defensor, o que é absolutamente indispensável, ainda que ad hoc, não pode ser considerado revel... é preciso, pois, terminar com o hábito judicial de se decretar a revelia do réu ausente à instrução, como se fosse um ato constitutivo de algo.”
Nesse mesmo sentido, apostila Aury Lopes Júnior[2], in verbis:
“Não existe, no processo penal, revelia em sentido próprio. A inatividade processual (incluindo a omissão e a ausência) não encontra qualquer tipo de reprovação jurídica. Não conduz a nenhuma presunção, exceto a de inocência, que continua inabalável”.
Como visto, a inatividade do réu, no processo penal, deve gerar a noção de ausência ou de não comparecimento (e não de revelia), tanto quando for citado pessoalmente para se defender (ou por edital), tanto quando for intimado para comparecer, sendo inapropriado aplicar-lhe qualquer tipo de reprimenda por comportar-se de tal modo.
O réu tem o direito constitucional de ser tratado como inocente. Se não é permitida a confissão ficta no processo penal, quando ele não se defende, não comparece ou quando se cala, não deve também permitir-se ser tratado como revel, quando está ausente, quando deixa de comparecer ou de se defender, porque o princípio da inocência é um estado jurídico que imuniza o réu contra o status de culpado, considerando que ninguém pode sofrer qualquer tipo de sanção penal, a não ser por uma sentença condenatória inatacável.
Pode-se dizer que no sistema de provas adotado pelo processo penal brasileiro, jamais se poderá decretar a revelia do acusado porque deixou de comparecer para a audiência de interrogatório, pois essa regra se encontra mitigada pela redação cristalina dos arts. 196 e 616 do CPP.
Convém destacar, por oportuno, que as garantias do processo penal não são produto de um capricho legislativo, mas resultado do sacrifício, experiência e conquista da humanidade ao longo de vários séculos com o intuito de garantir o jus libertatis do cidadão contra o arbítrio do poder estatal. Não pode haver paridade de armas no processo penal se não forem observados os postulados que colocam acusação e defesa no mesmo plano de tratamento.
A ideia de efetiva prestação jurisdicional impõe que o direito da sociedade defender-se contra o delito seja conjugado com o da presunção de inocência do indivíduo submetido ao devido processo penal, de forma que nenhum deles seja sacrificado no altar da justiça pela interpretação equivocada da lei.
Sendo assim, quando o réu deixa de comparecer à audiência ou à sessão em que será julgado, no processo da competência do Juiz singular ou do Júri, esse comportamento não pode ser interpretado como rebeldia, mas como o exercício de uma faculdade ou direito que a lei lhe assegura. Observe-se que, mesmo quando for citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato do processo, e deixar de comparecer sem motivo justificado, o legislador não utilizou a expressão revelia (art. 367, CPP). E ainda que a tivesse utilizado, tal circunstância não retiraria do réu o direito de ser intimado para conhecer o conteúdo da sentença[3] que o condenou.
Deixar o réu de comparecer ou estar ausente à audiência ou à sessão do júri em que foi condenado não lhe suprime a condição de sujeito passivo, de parte sucumbente que precisa ser legalmente informada sobre os fundamentos jurídicos da sanção penal que lhe foi imposta. Descumprir essa regra comezinha é, no mínimo, cercear o direito ao duplo grau de jurisdição e, ao mesmo tempo, obstruir a possibilidade de o próprio réu (única parte legitimada) avaliar se deve ou não reagir contra a reprimenda imposta.
A coercitividade, como elemento da jurisdição, não existe para a violação de regras jurídicas de proteção, muito menos para incutir medo ou um estado de terror ao réu.
O bom julgador não deve incutir medo ao réu; deve, ao contrário, tratá-lo com justiça. A motivação decisória é o elo de ligação entre a segurança jurídica e o princípio da confiança na jurisdição em face do estado de inocência que garante a liberdade do réu contra o arbítrio do Estado. A esse respeito, esclarecedor é o lecionamento de Ferrajoli[4], in exthensis:
“O medo que a justiça inspira nos cidadãos é o signo inconfudível da perda de legitimidade política da jurisdição e da sua involução irracional e autoritária. Toda vez que um imputado inocente tem razão para temer um juiz, quer dizer que isto está fora da lógica do Estado de Direito: o medo e mesmo só a desconfiança ou a não segurança do inocente assinalam a falência da função mesma da jurisdição penal e a ruptura dos valores políticos que a legitimam.”
Destarte, tem o réu ausente, ou que não compareceu ao ato de seu julgamento o direito de ser intimado pessoalmente da decisão judicial, principalmente quando o não comparecimento se verificou especificamente na sessão em que fora proferida sentença penal condenatória, pois o fato de não ter comparecido não autoriza sofrer abusos, nem lhe retira o direito de ser informado pessoalmente sobre o resultado do julgamento, acaso conste ou seja conhecido seu endereço nos autos.
Aqui não se está privilegiando o direito do réu em sentido stricto ou lato sensu, mas valorizando o homem em sua dignidade de ser humano e de sujeito passivo da relação processual posta em evidência de acordo com o modelo acusatório republicano adotado na Constituição Federal Brasileira.
Nesse particular, é interessante frisar que os códigos não pensam por nós, nem foram elaborados com esse intuito. Na verdade, eles representam a estagnação do Direito, levando o intérprete a preencher os interstícios existentes e a perceber que mais importante são os princípios que podem ser extraídos da codificação pela leitura da gramática da Constituição Nacional. Nessa intelecção percebemos, muitas vezes, que existe um grande abismo entre o que é pregado pela Constituição Federal e o que é estatuído nos códigos.
4.Conclusão
A tradição legislativa brasileira, influenciada por diplomas legais de outros países, sempre tratou o instituto da revelia como rigorosa sanção imposta ao réu que não se defende ou não comparece à audiência ou sessão para a qual foi intimado.
Essa velha prática não pode mais ser utilizada, em nossos dias, no âmbito do processo penal, porque nossa legislação avançou no sentido de privilegiar o direito ao contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência sem impor ao réu o dever de estar presente em juízo, salvo se estiver respondendo ao processo preso.
Veja-se que o réu não está obrigado a comparecer[5] ao interrogatório para depor ou se autodefender. E, se comparecer voluntariamente, ou em razão de intimação, não está obrigado a responder a qualquer pergunta que lhe for feita. O princípio aqui prevalecente é o do direito ao silêncio ou de permanecer calado – Nemo tenetur se detegere.
No processo da competência do tribunal do júri em que a sessão plenária conjuga, não raras vezes, atos de teatralização, ofensas, abusos generalizados e achincalhes contra o réu, promovidos pela acusação ou pela assistência da acusação, senão pela própria imprensa, é muito comum notar-se a ausência do mesmo para não ser submetido a humilhações e a linchamento moral de toda ordem, ainda que tenha sido intimado.
Essa postura não pode ser interpretada como sendo ele revel e, por consequência, que será julgado à revelia, posto que haverá na sessão um profissional do direito que se encarregará de exercer sua defesa plena. Não comparecer ou estar ausente à sessão do júri em que será julgado, não pode ser interpretado como sinônimo de rebeldia ou de desdém, mas de estratégia de defesa e extrema cautela em favor do réu, pois no plenário do júri devem ser evitadas exposições desnecessárias.
A intimação do acusado para comparecimento à audiência criminal ou sessão do tribunal júri não pode ser equiparada à citação para efeitos de revelia, notadamente porque a ausência aos atos processuais retromencionados deve, no máximo, demonstrar o desinteresse do réu em fornecer material probatório ao processo em andamento ou por algum incidente que a ele – e somente a ele - não interessa protagonizar. Destarte, caso haja intenção do Juiz na aplicação de revelia ao acusado, no processo penal, essa advertência deve constar do mandado de citação ou intimação do mesmo, no qual devem constar as consequências que advirão de sua eventual ausência ou não comparecimento à audiência.
Sendo assim, não deve preponderar a decisão do juiz togado[6] que, isolada e unilateralmente, impõe sanção de caráter vindicativo ao réu (no caso a revelia) somente porque esteve ausente ou deixou de comparecer à sessão do júri, mas o veredicto soberano dos jurados, este sim derivado de órgão popular dotado de competência constitucional, como juízo natural da causa, que sequer é perguntado sobre essa circunstância (ausência do réu) na quesitação elaborada para resposta. Daí porque o réu ausente à sessão do júri, ainda que apontado como revel, tem o direito de ser intimado da decisão do conselho de jurados, materializada na sentença penal assinada pelo Juiz togado, mormente se a mesma for condenatória.
Finalmente, há de se concluir também que a mesma razão fundamental deve ser aplicada aos demais procedimentos criminais, em que o acusado ou sua defesa técnica entender prudente estar ele ausente ou não comparecer à audiência, ainda que intimado, porque a tendência da legislação moderna é cada vez mais facilitar a colheita dos elementos probatórios através de ferramentas e técnicas que auxiliam a atividade forense e judicante, sem o emprego de medidas prisionais ou coercitivas que fomentem temor ao réu e propiciem a obtenção de delações premiadas ou confissões extorsivas nem sempre voltadas para sua proteção, mas unicamente para a solução, a qualquer custo, do processo.
Notas
[1] Código de Processo Penal Comentado. 15.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 826.
[2] Direito Processual Penal. 13.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.580.
[3] Analisando essa questão Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, apesar de firmados em ponto de vista que reputamos equivocado, entendem que, embora revel, o réu tem direito a ser intimado da sentença, conforme apostilam que “uma vez declarada a revelia, o acusado sofrerá seus efeitos, não sendo mais intimado dos atos processuais subsequentes, ressalvada a sentença.” (Curso de Direito Processual Penal. 9.ª ed. Salvador: Jus Podium, p. 850).
[4] Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 441, 2002.
[5] Os arts. 185 e 474, caput, do CPP, estabelecem a facultatividade da presença do réu para ser interrogado. Por isso, o termo revelia deve ser evitado no âmbito do processo penal quando o réu não comparecer ou estiver ausente à audiência ou à sessão do tribunal do júri.
[6] O juiz não dita a lei. Ao contrário, aplica a lei existente. Nisto reside os limites ao exercício da jurisdição.