No dia 03 de abril de 2018 foi publicada a Lei 13.641, que altera a Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha, para incluir o artigo 24-A, tipificando a conduta de “descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência”. O novo dispositivo possui a seguinte redação:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§1° A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§2° Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§3° O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
O elemento nuclear da ação criminosa vem caracterizado no verbo “descumprir”, que significa desatender, desobedecer, não cumprir. E, na sequência, o verbo indicador da ação criminosa é completado pela expressão “decisão judicial”, que, naturalmente, é aquela emanada de um magistrado, seja ele cível ou criminal, conforme orientação interpretativa referida no próprio §1°.
O dispositivo em comento trata-se de uma norma penal em branco homogênea homovitelínea, pois o sentido do elemento normativo do tipo “decisão judicial” vem completado pela própria normal penal que criou o delito.
O verbo descumprir traz em si duas “circunstâncias condicionantes implícitas” para a caracterização do delito, a saber: ciência da decisão judicial, i.e., que o agente tenha sido intimado, e que a decisão judicial possua validade.
O sujeito ativo do delito, em regra, é o agressor ou agressora. Entretanto, não se trata de crime próprio, pois pode ser praticado por terceiro (ex. após ter conhecimento da decisão judicial que determinou o afastamento de corpos, o irmão do agressor promove um encontro entre o casal, sem que ambos tenham conhecimento) ou mesmo, conforme nosso entendimento, pela própria mulher vítima do crime primário (ex. após solicitar as medidas protetivas e tê-las deferida, a ofendida descumpre a ordem judicial de afastamento, procurando o agressor).
As medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha, somente podem ser decretadas quando houver a prática de um crime antecedente. Nesse passo, entendemos que o novo crime se constitui de um crime acessório ou parasitário.
O sujeito passivo é o Estado.
O objeto material da ação criminosa é a decisão judicial.
O objeto jurídico é a administração da justiça, no seu viés moral.
O elemento subjetivo é o dolo. O delito não exige especial fim de agir, que, para a escola tradicional, seria o dolo específico. Não há forma culposa.
É crime formal que se consuma com o descumprimento da ordem judicial, independentemente de qualquer resultado naturalístico.
É crime de forma livre, uma vez que o sujeito passivo pode praticá-lo por qualquer meio. Aliás, observe-se que o verbo indicador da conduta criminosa, o “descumprir”, pode ser executado tanto na forma comissiva quanto na omissiva, a depender da medida protetiva a que esteja obrigado o sujeito ativo. Se, intimado a se afastar do lar ou a pagar pensão alimentícia, não o fizer, responderá pelo crime na modalidade omissiva. Se estiver impedido de se aproximar da vítima ou tiver restringido o direito de visita aos filhos o fizer, responderá pelo crime na modalidade comissiva.
Atente-se para o fato de que, excepcionalmente, poder-se-á cogitar a possibilidade da prática do crime na modalidade comissiva por omissão, quando o comportamento criminoso se revestir de crime omissivo impróprio, nos termos do artigo 13, §2°, do Código Penal.
É crime instantâneo que se consuma de imediato.
Em regra, é um crime unissubsistente que se consuma com um só ato, porém, eventualmente, poderá ser um crime plurissubsistente, quando vários atos integrarem o comportamento do agente. A título de exemplificação, imaginem a hipótese de o agente estar (a) obrigado a se afastar do lar, (b) não manter contato com a vítima e seus familiares, e (c) não frequentar determinados lugares. Nesse caso, o agente poderá, concomitantemente, descumprir todas as medidas protetivas de urgência impostas, relativamente à mesma ordem judicial. Nesta hipótese, tratar-se-á de um crime plurissubsistente.
Registre-se que, nos casos em que ocorrer a situação acima posta, i.e., quando houver o descumprimento concomitante ou subsequencial de várias medidas protetivas impostas na mesma decisão judicial, o agente deverá responder por crime único. Em outras palavras, o agente não responderá por tantos crimes quantas forem as medidas violadas. Trata-se de observação do princípio do ne bis in idem.
Neste caso, não haverá concurso de crimes, nem crime continuado. Afinal, o objeto material do crime é a decisão judicial como um todo, enquanto ato oficial que externa mais do que simplesmente cada uma das medidas de proteção adotadas, mas a fundamentação do magistrado ao conceder tais medidas, a “ordem em si”. O crime em estudo não tem como escopo tutelar a vítima, nem cada uma das medidas isoladamente descritas, mas sim a “decisão judicial”.
Situação diferente poderá surgir quando o agente descumprir várias vezes a mesma decisão judicial, em situações fáticas diversas. Acreditamos que, neste caso, poderá existir divergência doutrinária ou jurisprudencial. Imaginem que o agente “descumpra a decisão judicial que deferiu as medidas protetivas de urgência” no dia 05 de maio de 2018, sendo autuado em flagrante delito com instauração de inquérito policial contra si e posterior processo. Posteriormente, em liberdade, com a ordem judicial ainda válida, um dia após sair da prisão, na data de 15 de junho de 2018, o agente torna a descumprir a “mesma decisão judicial”. Neste caso, haverá a consumação de novo crime?
Entendemos, ainda ancorados no princípio do ne bis in idem, que a resposta deve ser negativa, pois o agente já responde a inquérito policial e processo criminal por este fato. Ou seja, este crime já se consumou. Lembre-se que se trata de um crime instantâneo. O agente não pode responder novamente por este crime.
Neste caso, o agente estará passível de ter a sua prisão preventiva (novamente) decretada, mas não estará passível de nova prisão em flagrante. Para evitar situações desta natureza, convém que os magistrados emitam “nova decisão judicial” a cada evento consumativo do crime.
Em regra, trata-se de um crime unissubjetivo, uma vez que pode ser praticado por um único agente. Entretanto, é possível imaginar-se o concurso de pessoas quando: (a) houver mais de um agente que tenha o dever jurídico de cumprir a ordem judicial ou (b) terceiro agir em concurso com o agressor, desde que tenha conhecimento da decisão judicial.
Nesse ponto, frisamos, ainda, a possibilidade de a vítima do crime antecedente (de regra, a mulher) figurar como sujeito ativo do crime. É que, sendo o objeto material do delito a “decisão judicial”, caso a vítima (que provocou decisão judicial ao requerer as medidas protetivas de urgência) procure o agressor impedido ou, simplesmente, concorde com o seu regresso ao lar, por exemplo, estará, da mesma forma, “descumprindo a ordem judicial” de afastamento[1].
Registramos, por pertinente, que este novo crime se caracteriza como um tipo penal especial em relação aos artigos 330 e 359 do Código Penal[2], pois se refere especificamente às decisões judiciais que deferem medidas protetivas da Lei Maria da Penha.
Derradeiramente, asseveramos que, muito embora a pena cominada pelo legislador seja de 03 (três) meses a 02 (dois) anos de detenção, nos parece que, diante das disposições constitucionais e legais vigentes, este crime não poderá ser considerado “uma infração de menor potencial ofensivo”.
Esse tema será abordado no nosso próximo artigo!
Notas
[1] Neste caso, entendemos que a conivência da vítima do crime antecedente importará em participação no crime de “descumprimento a decisão judicial” imposta ao seu agressor.
[2] Trata-se de uma forma especial de desobediência e, neste ponto, o tipo penal surge na contramão da jurisprudência do STJ (REsp 1492757-DF, j. 12.02.2015.), onde há orientação no sentido de que o descumprimento de medida protetiva da Lei 11.340/06 não configura o crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal, pois, nestes casos, é possível a aplicação de multa ou a decretação prisão preventiva. Esse entendimento sustenta-se na intervenção mínima do Direito Penal.