5 O DIREITO À IGUALDADE EM PROCESSOS ONDE SE DISCUTE O CUSTEIO DE MEDICAMENTOS E O DIREITO À SAUDE
Importante lembrar que, os direitos fundamentais exigem da jurisdição uma tutela protetiva, é cada vez comum se levar ao judiciário pretensões à tutela de previsões constitucionais, a exemplo dos processos em que se discutem o custeio de medicamento e o acesso as técnicas e avanços tecnológicos relativos aos avanços científicos no campo da saúde.
O Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais mediante normas de direito, e tal dever se aplica ao direito do cidadão ao custeio de medicamentos e aos meios avançados para preservação da vida. Dessa forma, para além de editar normas sobre a igualdade no acesso a saúde, o Estado tem o dever de impor sua observância, promover o acesso aos necessitados a mais avançada tecnologia na área da saúde, além da obrigação de custeio.[21]
No caso de omissão por parte do Estado, em uma possível demanda judicial, o juiz deve supri-la, admitindo a observância do direito fundamental à vida, à igualdade de condições e à jurisdição tem o dever de proteger ou tutelar os direitos, sejam fundamentais ou não.
5.1 DIREITO À SAÚDE
Pois bem, o direito à proteção da saúde foi abraçado pela CRFB de 1988 que prescreve ao Estado o dever de promovê-lo através de medidas políticas e econômicas, bem como a obrigação de acesso universal e igualitário aos serviços de saúde (arts.196 e 197). O direito a saúde é um direito social, de caráter prestacional, posto que exige uma atuação estatal (União, Estados, Distrito Federal e Municípios solidariamente) com o objetivo elevar das condições de vida dos seus titulares e concretizar a igualdade em seu aspecto material[22].
Trata-se de um direito que comporta ao menos duas vertentes: negativa e positiva. Sob o prisma negativo consiste no direito de exigir do Estado e, também de terceiros que se abstenham de qualquer ato que prejudique a saúde de seu titular[23]. Positivamente reclama-se do sujeito passivo (o Estado) no desempenho de determinadas tarefas indispensáveis para a prevenção e o tratamento de doenças[24].
A Constituição Federal de 1988 não estabelece a definição de saúde. Essa indeterminação contribuiu para que a norma garantidora do direito à saúde fosse considerada como um comando de concretização gradual pelo Estado, um programa cuja análise de conveniência ou oportunidade acerca de sua implementação não caberia ao Poder Judiciário.
Recorrendo-se à Constituição da Organização Mundial da Saúde (1946), pode-se definir saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social”[25], não significando apenas a ausência enfermidades. A associação da ideia de saúde como bem-estar dos indivíduos deu origem a uma série de críticas. Em primeiro lugar não se pode falar de uma sensação perene de bem-estar, o que implicaria asseverar que não existe um único indivíduo saudável em todo planeta[26]. Outra crítica que deve ser feita refere-se à subjetividade na determinação do que seria bem-estar.
Em 1986 a Organização Mundial da Saúde decidiu expandir a abrangência do termo saúde. Dessa forma, a saúde seria resultado da conjunção de vários elementos, devendo necessariamente incluir as condições de alimentação, moradia, educação, lazer, transporte e emprego, bem como as formas de organização social de produção[27]. Assim, segundo mencionada orientação, a avaliação da saúde requer a análise de fatores socioeconômicos.
Atualmente a ideia de saúde deve ser analisada a partir de três planos ou dimensões: física, mental e social[28], mas admitindo-se tratar-se de um estado dinâmico, suscetível à mudanças. Verifica-se, portanto, o problema enfrentado pelo Direito ao estabelecer uma garantia correspondente a um objeto com um conteúdo tão amplo. Considera-se, no presente trabalho, o direito a saúde como um conjunto de direitos e deveres, definidos pelo Legislador em um determinado momento histórico, tidos como essenciais para promover o ideal de bem estar convencionado socialmente[29].
Tendo em vista a imprecisão do próprio conceito de saúde, a garantia de um direito fundamental dessa natureza pela CRFB/88, consequentemente, criou um problema para o Poder Judiciário. Diante do complexo feixe de elementos integrantes do direito à saúde e das numerosas atividades imprescindíveis a sua realização, assim como de demandas propostas em face do Estado com o referido conteúdo, os magistrados entendiam tratar-se norma programática sujeita à iniciativa dos demais poderes[30]. Apenas posteriormente, o Judiciário, alterando sua posição anterior, definiu-se competente para a concretização do direito à saúde, o que efetivamente passou a impactar na política orçamentária dos entes federativos[31].
5.2 O DIREITO À GRATUIDADE NA PERCEPÇÃO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO COMO MEIO DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE
O direito à saúde, como já examinado, demanda a observância de um variado rol ações direcionadas a todos os atores sociais e, em especial, ao Estado. A assistência farmacêutica se inclui nessa lista. A dispensação e garantia de medicamentos pelo poder público à população carente iniciou-se na década de 70 do século passado com a criação da Central de Medicamentos (CME)[32], a qual garantia o fornecimento de medicamentos a preços acessíveis.
Compete ao Ministério da Saúde a definição da Política de Assistência Farmacêutica, bem como os Programas de Assistência Farmacêutica e as regras de seu cofinanciamento, mantidos com os recursos das entidades federativas. Cabe ao Sistema Único de Saúde a execução dos programas através de três eixos programáticos: atenção básica em saúde (medicamentos essenciais); programas estratégicos de saúde (para controle de doenças específicas a exemplo da tuberculose) e medicamentos especializados ou de alto custo, ou, ainda, excepcionais[33].
Pode-se inferir, portanto, que ao direito de percepção de medicamentos para a manutenção ou recuperação da saúde de maneira gratuita, corresponde o respectivo dever de prestação imposto constitucionalmente ao Estado para todos que dele necessitarem.
No que diz respeito especificamente às ações judiciais individuais propostas a fim de compelir o Estado ao fornecimento de gratuito de medicamentos, ainda há controvérsias sobre a legitimidade das decisões judiciais concessivas. Argumenta-se que ao decidir as demandas individuais, o magistrado muitas vezes desconsidera a globalidade das políticas públicas existentes, mormente no que tange à política orçamentária[34]. Desconsiderando, igualmente, a finitude dos recursos disponíveis obstando a implementação das demais políticas públicas (teoria da reserva do possível).
Além disso, aduz-se que as decisões judiciais nesse sentido maculariam a harmonia entre os três poderes[35], pois infringiriam a distribuição de competências constitucionais. Nesta hipótese, convém lembrar a advertência de Alexy no sentido de que os direitos fundamentais (inclusive os direitos sociais como a proteção à saúde) são tão importantes que a decisão de garanti-los ou não, não pode ser relegada exclusivamente ao Poder Legislativo[36].
Quanto aos demais argumentos contrários, deve-se ressaltar a necessidade de preservação do mínimo existencial, assim entendido como o conteúdo mínimo sem o qual a garantia fundamental torna-se irreconhecível. Haverá a necessidade de realizar-se em cada caso concreto uma ponderação dos interesses individuais e coletivos protegidos pelos princípios em colisão.
Resta ainda buscar um método que permita uma maior clareza para a resolução de tais questões com alguma uniformidade pelos diversos órgãos do Poder Judiciário. Neste particular, na decisão do Agravo Regimental na STE 175-CE, o Supremo Tribunal Federal, em 2010, estabeleceu critérios fundamentais para compatibilização dos interesses envolvidos com a promoção da igualdade substância na tutela do direito ao acesso de medicamentos de alto custo para a população carente.
6. CRITÉRIOS PARA A SOLUÇÃO DE DEMANDAS INDIVIDUAIS DE MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS
O Supremo Tribunal Federal, através de sua jurisprudência, construiu diretrizes orientadoras para a criação de norma judicial que compele o custeio de medicamentos excepcionais pelo Estado. Nesse sentido, coube ao Ministro Celso de Mello, reconhecendo a razão proporcionalmente inversa observada entre as necessidades da população e os recursos da Administração Pública, de o argumento pela aplicação do binômio: razoabilidade X disponibilidade financeira do Estado[37].Destaca-se a aplicação dos postulados da razoabilidade de proporcionalidade como balizas necessárias para a proteção do direito à saúde individual em face do interesse coletivo de custeio dos demais programas de promoção à saúde[38].
Num segundo momento, faz-se necessário o exame da situação de fato do requerente, contrapondo-a com os correlatos deveres estatais à prestação pretendida. Os motivos da negativa de sua concessão também devem ser analisados. No julgamento do SS 3.073-RN, por exemplo, a Ministra Ellen Gracie negou o pedido de concessão de fármaco em fase de testes, frisando que o Estado não havia violado o seu dever de prestação de medicamento excepcional, pois havia um programa oficial específico para atendimento das necessidades do beneficiário, no qual o mesmo já se encontrava inscrito[39].
Caso a pretensão do autor já esteja prevista em alguma das políticas públicas estatais de saúde. Nesse caso, se fará necessário um exame a respeito do tratamento para diferencia os tratamentos puramente experimentais daqueles inovadores ainda não testados pelo SUS[40], apenas na última hipótese caberá ao Judiciário determinar o seu cumprimento.
O Ministro Marco Aurélio na ADI 5501 MC / DF em que se discutia pedido no sentido de suspender a eficácia de lei que autoriza o fornecimento de certa substância sem o registro no órgão competente argumentou que “hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem”[41]
Acaso de inexistentes os programas específicos a Corte deve avaliar se há uma omissão legislativa ou administrativa a ser preenchida pela decisão judicial, ou se existe uma vedação legal para a entrega da prestação.
A análise realizada permite concluir-se que a regra geral é o adequado exame da pretensão, devidamente fundamentada na petição e arrazoados constantes no processo, em cotejo com os argumentos de defesa apresentados pelo SUS, de maneira a assegurar, sob o viés da proporcionalidade, a melhor solução para o caso concreto. Prioriza-se, supondo-se existir algum procedimento, a fruição dos programas do SUS[42], admitindo-se a sua exceção quando a situação fática assim o exigir.
7. CONCLUSÃO
Em síntese conclusiva, pode-se afirmar que ter direito a ser tratado de forma igualitária, a receber do Estado a prestação necessária à manutenção da saúde e por via reflexa da vida e dos meios necessários aàsua efetivação, é antes de tudo, ter direito a uma forma de tutela que seja capaz de impedir ou inibir a violação desses direitos e tantos outros com previsão constitucional.
A atuação do Poder Judiciário, a despeito das críticas suscitadas por parte da doutrina, não tem por escopo a criação de políticas públicas de promoção à saúde, mas sim a realização de um direito fundamental protegido pela CRFB/88.
Por fim, é preciso dizer quer não basta apenas a promessa de tutela constitucional que aponte para o reconhecimento de igualdade no tocante ao direito à saúde, sendo necessário e imprescindível que seja plenamente respeitado e garantido, principalmente quanto à saúde, e em especial no tocante a medicamentos, tratamentos avançados de patologias, e, se qualifique como uma prerrogativa de todo cidadão de exigir do Poder Público a efetivação de direitos sociais, como à saúde, imposta pela Carta Magna.