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A polícia judiciária como instrumento do garantismo penal

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14/03/2019 às 16:10
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3 GARANTISMO PENAL

3.1 Conceito e origens

O Garantismo Penal caracteriza-se como movimento penal, também denominado movimento de política criminal, dentre os quais se pode elencar também o chamado movimento lei e ordem, o minimalismo penal e o abolicionismo, conforme aponta Alice Bianchini (2008).

A princípio, é oportuno trazer à colação o entendimento de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli acerca do conceito de política criminal:

Se por política se entende a ciência ou arte de governo, por política criminal pode-se entender a política relativa ao fenômeno criminal, o que não seria mais que um capítulo da política geral. Política criminal seria a arte ou a ciência de governo, com respeito ao fenômeno criminal.

A política criminal guia as decisões tomadas pelo poder político ou proporciona os argumentos para criticar estas decisões. Cumpre, portanto, uma função de guia e de crítica.

Podemos afirmar que a política criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos. (2011, p. 122).

Ainda acerca do tema, acrescenta Nilo Batista:

A política criminal será, como diz Szabó, a prima pobre da política social, mas está indissoluvelmente ligada a ela. Por isso mesmo, muito mais do que a histórica tensão entre a política criminal (concebida como aquela “conselheira”, que procura aprimorar a funcionalidade repressiva do sistema penal) e o direito penal (concebido pela perspectiva garantístico-liberal), tão lapidarmente expressa por von Liszt (“o direito penal e a barreira infranqueável da política criminal”), os grandes debates se travam entre finalidades politicas diversas que pretendam modelar o instrumento jurídico, ou seja, entre politicas criminais diversas. (2007, p. 35-36)

Dentre os citados movimentos, o Garantismo Penal conta com grande aceitação doutrinária e prega um modelo de Direito Penal voltado ao respeito intransigível aos direitos fundamentais e à Constituição. Tem por maior expoente Luigi Ferrajoli[5]. (ESTEFAM, 2012, p. 60).

André Esfefam (2012, p. 60) ainda assevera que “o garantismo penal resulta num Direito Penal Mínimo, em que a Constituição figura como limite intransponível à atuação punitiva do Estado”.

Diante do entendimento estabelecido por André Estefam, é oportuno salientar a ressalva de Alice Bianchini (2008), pois embora se baseiem nos mesmos ideais e pressupostos, o Garantismo Penal não se confunde com o Minimalismo, sendo mais abrangente que este.

Ainda acerca de um breve cotejamento entre o Garantismo Penal e os demais movimentos de política criminal, é oportuno citar o entendimento de Guilherme de Souza Nucci:

Trata-se de um modelo normativo de direito, que obedece a estrita legalidade, típico do Estado Democrático de Direito, voltado a minimizar a violência e maximizar a liberdade, impondo limites à função punitiva do Estado. Busca representar o equilíbrio entre os modelos do abolicionismo e do direito penal máximo. (2011, p. 394) (grifamos)

O entendimento de Salo de Carvalho é de grande pertinência à questão, além de delinear os contornos do modelo garantista:

O modelo garantista pretende instrumentalizar um paradigma de racionalidade do sistema jurídico, criando esquemas tipológicos baseados no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, com intuito de limitar o poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada. Por se tratar de modelo ideal (e ideológico), apresenta inúmeros pressupostos e consequências lógicas e teóricas, negadas ou desqualificadas por modelos opostos de produção de saber/poder. (2008, p.82).

Acerca da dicotomia que se estabelece naturalmente entre um Direito Penal exacerbado e teorias abolicionistas, Ferrajoli faz relevante reflexão:

[...] um sistema penal somente se justifica se a soma das violências - delitos, vinganças e punições arbitrárias - que este é capaz de prevenir for superior àquela das violências constituídas pelos delitos não prevenidos e pelas penas a estes cominadas. Naturalmente, um cálculo deste gênero é impossível. Entretanto, pode-se dizer que a pena é justificada como mal menor ─ ou seja, somente se menor, menos aflitiva e menos arbitrária - se comparada com outras reações não jurídicas, que, é lícito supor, se produziriam na sua ausência; e que, de forma mais geral, o monopólio estatal do poder punitivo é tanto mais justificado quanto mais baixos forem os custos do direito penal em relação aos custos da anarquia punitiva. (2002, p. 271) (grifo do autor)

Partindo-se para a conceituação da teoria do Garantismo Penal, Rogério Grecco (2012, p. 8) esclarece que Ferrajoli fundamenta seu modelo na hierarquia de normas existentes no chamado Estado Constitucional de Direito.

Grecco (2012, p. 8) explica que, conforme a visão piramidal proposta por Kelsen, a Constituição é espécie de “mãe” de todas as normas, as quais nela vão legitimar-se, buscar sua validade, sob pena de, caso a contrariem, serem expurgadas de nosso ordenamento jurídico, em face do vício de inconstitucionalidade.

Referida hierarquia de normas é também estabelecida por Norberto Bobbio, de modo esclarecedor, sendo relevante expor seu posicionamento:

Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento possui uma norma fundamental, que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado de “ordenamento”. (1999, p. 49) (grifamos)

Ao ensejo da validação constitucional das normas, Salo de Carvalho aponta relevante fato histórico[6], o qual propiciou a positivação dos princípios garantistas nas constituições dos Estados Democráticos, por consequência, seus ordenamentos jurídicos:

Com os processos de incorporação constitucional dos direitos e garantias, principalmente a partir da Carta da ONU em 1948, ocorre a positivação de grande parte da cadeia principiológica garantista. Os instrumentos de avaliação da legitimidade das normas, anteriormente situados fora dos sistemas constitucionais, são relocados ao plano jurídico interno, mais especificamente à teoria da validade das leis. Os valores e princípios informadores das normas constitucionais passam a atuar como mecanismos de avaliação da substância das demais regras. (2008, p. 85)

Ainda acerca do processo de incorporação constitucional de princípios garantistas, Antonio Scarance Fernandes afirma:

Na evolução do relacionamento indivíduo-Estado, houve necessidade de normas que garantissem os direitos fundamentais do ser humano contra o forte poder estatal intervencionista. Para isso, os países inseriram em suas constituições regras de cunho garantista, que impõem ao Estado e à própria sociedade o respeito aos direitos individuais.

[...]

Além disso, principalmente após as guerras mundiais, os países firmaram declarações conjuntas, plenas de normas garantidoras, visando justamente a que seus signatários assumissem o compromisso de, em seus territórios, respeitarem os direitos básicos do indivíduo. (1999, p.11).

O autor ressalta, neste contexto, a importância da Declaração dos Direitos Universais do Homem, produzida na Assembleia da ONU em 10 de dezembro de 1948, entre outros tratados de Direitos Humanos. (Fernandes, 1999, p. 11-12).

Acerca da incorporação de normas de direitos humanos nos textos constitucionais brasileiros, José Afonso da Silva faz relevante observação:

As constituições brasileiras sempre inscreveram uma declaração dos direitos do homem brasileiro e estrangeiro residente no país. Já observamos, antes, até, que a primeira constituição, no mundo a subjetivar e positivar os direitos do homem, dando-lhes concreção jurídica efetiva, foi a do Império do Brasil, de 1824, anterior, portanto, à da Bélgica de 1831, a quem se tem dado tal primazia. (2003, p. 170)

Rogério Grecco (2012, p. 8) aduz ainda que a Constituição Federal estabelece um rol de direitos fundamentais – cabe salientar que podem ser ampliados, nunca suprimidos[7] – os quais não podem ser atingidos pelas normas hierarquicamente inferiores, sendo defeso ao legislador infraconstitucional impor determinados comportamentos, além de sanções ao seu descumprimento, se o fundamento de validade de todas as leis, a Constituição, não vedou tal comportamento. A Constituição Federal nos protege, portanto, da arrogância e da prepotência do Estado, representando garantia contra qualquer ameaça a direitos fundamentais do indivíduo.

A partir da ótica que consagra a Constituição como validadora das demais normas, a qual também lhe confere a teoria garantista, Rogério Grecco faz ainda relevante análise do papel exercido pelo Magistrado:

A magistratura, segundo a concepção garantista de Ferrajoli, exerce papel fundamental, principalmente no que diz respeito ao critério de interpretação da lei conforme a Constituição. O juiz não é mero aplicador da lei, mero executor da vontade do legislador ordinário. Antes de tudo, é o guardião de nossos direitos fundamentais. Ante a contrariedade da norma com a Constituição, deverá o magistrado, sempre, optar por esta última, fonte verdadeira de validade da primeira. (2012, p. 9) (grifamos)

No entender do próprio Ferrajoli:

De fato, a sujeição do juiz à lei já não é, como o velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que fosse seu significado, senão sujeição à letra da lei enquanto válida, é dizer, coerente com a Constituição. E no modelo constitucional garantista a validade já não é um dogma associado à mera existência formal da lei, senão uma qualidade contingente da mesma ligada à coerência de seus significados com a Constituição, coerência mais ou menos discutível e sempre se refere ao critério do juiz. Disto decorre que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, que corresponde ao juiz junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos. (2004, p. 26) (traduzimos)

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Na mesma obra e ainda tratando da interpretação da lei pelo magistrado, bem como de sua independência e imparcialidade como forma de tutelar os direitos e garantias individuais, Ferrajoli acrescenta:

Sobre esta sujeição do juiz à Constituição, e, portanto, em seu papel de garantidor dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, é a base principal atual de legitimação a competência e independência do Poder Judiciário em relação a outros poderes, legislativo e executivo, quer sejam – ou precisamente porque são – poderes de maioria. Precisamente porque os direitos fundamentais em que a democracia se baseia substancialmente estão garantidos para todos e cada um de forma incondicional, mesmo contra a maioria e serve para estabelecer, melhor do que o velho dogma positivista da sujeição à lei, a independência do Poder  Judiciário, que é projetado especificamente para garantir a aplicação destes direitos. (2004, p.26-27) (traduzimos)

Acerca da independência e imparcialidade do órgão jurisdicional face aos demais poderes – típicos da tripartição de poderes estabelecida por Montesquieu – os quais Ferrajoli define, conforme transcrito, como poderes de maioria, o autor conclui:

Uma vez que os direitos fundamentais são de todos e de cada um, a sua garantia requer um julgamento justo e independente, isento de qualquer vínculo com os poderes de maioria e em condições de censurar, se for o caso, declarando como inválidos ou como ilícitos os atos praticados por aqueles que exercem os demais poderes. (tradução nossa). (2004, p. 27).

Por fim, com o intuito de estabelecer uma delimitação do modelo de direito penal garantista, nada melhor que valer-se dos conceitos insertos na citada obra Direito e Razão, na qual Ferrajoli (2002, p. 684), ao abordar o tema “o que é Garantismo”, afirma que do termo Garantismo é possível distinguir três significados diversos, entretanto, conexos entre si

Dentre estes significados, o autor aponta, como o primeiro deles, que Garantismo significa:

[...] modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano politico se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos a função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. E, consequentemente, “garantista” todo sistema penal que se conforma normativamente com tal modelo e que o satisfaz efetivamente. (2002, p. 684)

Convém salientar que o modelo de estrita legalidade “SG” mencionada pelo autor, será tratado a seguir.

No que tange ao segundo significado de Garantismo, este tem abordagem sob o prisma da teoria do direito e crítica do direito e a seu respeito, Ferrajoli afirma que:

Em um segundo significado, “garantismo” designa uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade” como categorias distintas não só entre si mas, também, pela “existência” ou “vigor” das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantem separados o “ser” e o “dever ser” do direito; e, aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente antigarantistas), interpretando-a com a antinomia ─ dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica ─ que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas. (2002, p. 684)

Por fim, sob o prisma da filosofia do direito e crítica política, Ferrajoli estabelece o que chama de terceiro significado de Garantismo:

[...] designa uma filosofia politica que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste ultimo sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. E equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-politica do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. (2002, p. 685)

Tais conceitos delineiam, segundo Ferrajoli (2002, p. 686), os elementos de uma teoria geral do Garantismo e se aplicam não apenas ao Direito Penal, mas a todo ordenamento jurídico. Aos demais ramos do Direito, é possível elaborar, com referência a diferentes direitos fundamentais e a outras técnicas e critérios de legitimação, modelos de justiça e modelos garantistas de legalidade estruturalmente análogos àqueles estabelecidos em relação à seara penal.

Ferrajoli elenca referidos elementos:

[...] o caráter vinculado do poder público no Estado de direito; a divergência entre validade e vigor produzida pelos desníveis das normas e um certo grau irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de nível inferior; a distinção entre ponto de vista externo (ou ético-politico) e ponto de vista interno (ou jurídico) e a conexa divergência entre justiça e validade; a autonomia e a prevalência do primeiro e em certo grau irredutível de ilegitimidade politica com relação a ele das instituições vigentes. (2002, p. 686)

Apresentamos, assim, um breve apanhado da extensa e complexa teoria alinhavada por Luigi Ferrajoli. O tema certamente é digno de estudos e grande aprofundamento, haja vista que, conforme aponta Norberto Bobbio no prefácio à edição italiana, contempla estudos de Filosofia, Epistemologia, Ética, Lógica, teoria e ciência do Direito, além de historia das doutrinas e instituições jurídicas, todos estes enriquecidos pela visão e experiência do autor em sua carreira como Magistrado (apud Ferrajoli, 2002, p. 7).

Portanto, cientes da profundidade e importância do tema, partiremos dos conceitos aqui trazidos para nortearmos nossa pesquisa, tendo em conta, ainda, o entendimento de Norberto Bobbio:

O garantismo é um modelo ideal, do qual nos podemos mais ou menos aproximar. Como modelo, representa uma meta que permanece como tal, ainda que não seja alcançada e não possa jamais ser alcançada inteiramente. Mas, para constituir uma meta, o modelo deve ser definido em todos os aspectos. Somente se estiver bem definido poderá servir de critério de valoração e de correção do direito existente. (apud Ferrajoli, 2002, p. 9)

3. 2 O sistema garantista SG e seus axiomas.

Ferrajoli (2002, p. 29) estabelece, inicialmente, que os princípios sobre os quais se funda o modelo garantista clássico são a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o contraditório entre as partes e a presunção de inocência.

Segundo o autor, todos os princípios garantistas são passíveis de formulação, em forma de proposições de implicação ou condicionais, e estão  ligados entre si. (FERRAJOLI, 2002, p. 73).

Assim, Ferrajoli (2002, p. 73) emprega na formulação de tais proposições onze termos: pena, delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa.  Cada termo, excluído o primeiro deles, designa uma condição necessária para atribuição de pena.

Os axiomas garantistas formulam-se, portanto, pelas implicações entre cada termo da citada série e os termos posteriores, não se tratando de proposições assertivas, mas sim prescritivas; não descrevem o que ocorre, mas prescrevem o que deveria ocorrer; não enunciam as condições que um sistema penal efetivamente satisfaz, mas as que deveria satisfazer em adesão aos seus princípios normativos internos, bem como em relação a parâmetros de justificação externa (FERRAJOLI, 2002, p.74).

Ferrajoli ainda esclarece que:

Cada uma das implicações deônticas - ou princípios - de que se compõe todo modelo de direito penal enuncia, portanto, uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da pena. Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária, na ausência da qual não está permitido ou este proibido punir. (2002, p. 74)

Finalmente, acerca dos axiomas garantistas e do sistema penal garantista (SG), Ferrajoli (2002, p.74-75) estabelece:

Denomino garantista, cognitivo ou de legalidade estrita o sistema penal SG, que inclui todos os termos de nossa série, Trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível. Sua axiomatização resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, que expressarei, seguindo uma tradição escolástica, com outras tantas máximas latinas:

A1 Nulla poena sine crimine

A2 Nullum crimen sine lege

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate

A4 Nulla necessitas sine injuria

A5 Nulla injuria sine actione

A6 Nulla actio sine culpa

A7 Nulla culpa sine judicio

A8 Nullum judicium sine accusatione

A9 Nulla accusatio sine probatione

A10 Nulla probatio sine defensione

André Estefam (2012, p. 60-61) elabora tradução dos citados axiomas para a língua portuguesa e, ao ensejo, traça uma breve interpretação, relacionando-os a princípios processuais penais vigentes no ordenamento jurídico pátrio, quando possível:

  1. Não há pena sem crime (a pena não pode ser “gratuita”);
  2. Não há crime sem lei (princípio da legalidade penal);
  3. Não há lei penal sem necessidade (ou seja, a legislação penal deve conter racionalidade);
  4. Não há necessidade de punir sem que haja efetiva lesão ou perigo a bens jurídicos (deste axioma decorre a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato ou presumido);
  5. Não há lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos se não houve conduta (direito penal do fato);
  6. Não se pune conduta sem que haja culpabilidade (princípio da culpabilidade);
  7. Não se reconhece a culpabilidade sem o devido processo legal;
  8. Não há devido processo legal sem acusação formal (sistema processual acusatório);
  9. Não há acusação válida se não acompanhada de provas;
  10. Não se admitem provas sem que tenha havido defesa (contraditório e ampla defesa).

Salo de Carvalho também dedica-se a analisar o sistema garantista elaborado por Ferrajoli, do mesmo modo relacionando-os a princípios modernamente consagrados:

A cadeia elaborada pelo autor serve como instrumento avaliativo de toda incidência do sistema penal, da elaboração da norma pelo legislativo à aplicação/execução da pena. Viabiliza ao intérprete uma principiologia adequada para (des)legitimação de toda atuação penal: teoria da norma (princípio da legalidade, princípio da necessidade e princípio da lesividade); teoria do delito (princípio da materialidade e princípio da culpabilidade); teoria da pena (princípio da prevenção dos delitos e castigos); e teoria processual penal (princípio da jurisdicionalidade, princípio da presunção de inocência, princípio acusatório, princípio da verificabilidade probatória, princípio do contraditório e princípio da ampla defesa). (2008, p. 83).

Rogério Greco, no mesmo sentido, elabora concisa e relevante análise acerca dos axiomas garantistas:

Por intermédio do primeiro brocardo ─ nulla poena sine crimine ─, entende-se que somente será possível a aplicação de pena quando houver, efetivamente, a prática de determinada infração penal, que, a seu turno, também deverá estar expressamente prevista na lei penal ─ nullum crimen sine lege. A lei penal somente poderá proibir ou impor comportamentos, sob a ameaça de sanção, se houver absoluta necessidade de proteger determinados bens, tidos como fundamentais ao nosso convívio em sociedade, em atenção ao chamado direito penal mínimo ─ nulla lex (poenalis) sine necessitate. As condutas tipificadas pela lei penal devem, obrigatoriamente,ultrapassar a pessoa do agente isto é, não poderão se restringir à sua esfera pessoal, à sua intimidade, ou ao seu particular modo de ser, somente havendo possibilidade de proibição de comportamentos quando estes vierem a atingir bens de terceiros ─ nulla necessitas sine injuria-,exteriorizados mediante uma ação- nulla injuria sine actione ─,sendo que, ainda, somente as ações culpáveis poderão ser reprovadas ─ nulla actio sine culpa. (2012, p. 10)

Ainda, no que tange aos demais axiomas erigidos por Ferrajoli, Greco acrescenta que apontam para a necessária adoção de um sistema nitidamente acusatório, com a presença de um juiz imparcial e com competência para o julgamento da causa (nulla culpa sine judicio) e que não se confunda de modo algum com o órgão responsável pela acusação (nullum judicium sine accusatione). Fica, ainda, a cargo do órgão acusatório, o ônus probatório, o qual de modo algum pode ser transferido ao acusado de determinado ilícito penal (nula accusatio sine probatione), devendo ser assegurada a ampla defesa com todos os recursos a ela inerentes (nulla probatio sine defensione) (2012, p. 10).

Nesta seara, torna-se imprescindível trazer à colação a classificação principiológica estabelecida pelo próprio Luigi Ferrajoli:

Denomino estes princípios, ademais das garantias, penais e processuais por eles expressas, respectivamente: 1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade. (2002, p. 75)

Ferrajoli (2002, p. 75) afirma ainda que estes dez princípios, com certa força de expressão linguística, definem o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal, ou seja, as regras do jogo fundamental do Direito Penal. Esclarecendo que sua elaboração se lastreia no pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, época em que foram concebidos como princípios políticos, morais ou naturais de limitação do poder absoluto.

Acerca da relação dos referidos princípios com os Estados modernos, Ferrajoli (2002, p. 75), conforme também tratamos no subitem anterior, entende que “já foram posteriormente incorporados, mais ou menos íntegra e rigorosamente, às constituições e codificações dos ordenamentos desenvolvidos, convertendo-se, assim, em princípios jurídicos do moderno Estado de Direito”.

O pensamento de Ferrajoli ecoa na obra de Salo de Carvalho (2008, p. 83), o qual observa que citados princípios garantistas corresponderiam às “regras do jogo” do sistema penal nos Estados democráticos de Direito e, diante de sua gradativa incorporação constitucional, representariam ainda vínculos formais e materiais de validação das normas e decisões proferidas.

Ferrajoli (2002, p. 75) estabelece ainda, a partir dos dez axiomas que compõem o sistema garantista SG, e mediante os chamados “silogismos triviais”, outros quarenta e cinco teoremas[8].

Cabe ressaltar ainda a relevância que Ferrajoli (2002, p. 77) confere ao princípio da legalidade estrita, afirmando que dele decorrem todas as demais garantias: da materialidade da ação ao juízo contraditório, outras tantas condições de verificabilidade e de verificação e, também por isso, constitui o pressuposto da estrita jurisdicionariedade do sistema.

Por fim, conclui que legalidade estrita e jurisdicionalidade estrita resultam na conclusão de que o juiz comprova como verdadeiro um eventual delito, apenas se o fato provado ou comprovado estiver taxativamente tipificado na lei como delito. (FERRAJOLI, 2002, p. 77).

Assim, apresentamos de maneira sucinta o sistema garantista, composto por  dez axiomas, os quais interligam-se entre si e, de forma geral, definem o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal, como o denomina Ferrajoli.

A obtenção dos citados axiomas decorre de complexo sistema lógico elaborado por Ferrajoli, resultando em princípios que, gradativamente, foram absorvidos pelas constituições dos Estados de Direito e, por consequência da hierarquia das normas jurídicas estabelecida por Hans Kelsen, refletiram-se em todo o ordenamento jurídico destes países.

Por fim, observamos que o Garantismo Penal, embora conte com grande aceitação doutrinária, é um modelo ideal, cuja total concretização não nos parece viável, entretanto, como já vimos no pensamento de Norberto Bobbio, dele podemos mais ou menos nos aproximar, à medida que o ordenamento jurídico absorva seus princípios e, fatalmente, os transmita à persecução penal. Mas, para tanto, foi necessário que se desenvolvesse e se estabelecesse como modelo sólido e bem delimitado, para que possa nortear a construção dos sistemas e ordenamentos que almejam consagrá-lo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANCO, Lucas Sanches. A polícia judiciária como instrumento do garantismo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5734, 14 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65966. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Trabalho de conclusão de curso apresentado à Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra” – Secretaria de Cursos Complementares, de Pesquisa e Apoio à Produção Científica, como um dos requisitos para conclusão do VI Curso de Especialização em Polícia Judiciária e Sistema de Justiça Criminal. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Augusto Paglione

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