Capa da publicação Proteção aos animais X liberdade religiosa: a questão das religiões de matriz africana
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Direitos constitucionais de proteção aos animais e de liberdade religiosa: qual deve prevalecer quando se trata do abate de animais nos cultos de matriz africana?

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20/05/2018 às 11:14
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IV. Posições jurisprudenciais

Pesquisou-se no sitio eletrônico do STJ pelas expressões "abate de animais em rituais religiosos", "sacrifício de animais em rituais religiosos", "abate de animais para fins religiosos" e "sacrifício de animais para fins religiosos", mas o sistema não recuperou nenhum julgado. Já no sítio eletrônico do STF houve melhor sorte, porque o sistema recuperou o Recurso Extraordinário - RE nº 494.601, que foi interposto contra a decisão do TJ/RS mencionada logo acima, da qual se passa a tratar, respeitando a ordem cronológica dos fatos. Conforme apresentado no título anterior, os inconformados com a legislação farroupilha que autorizou o abate de animais nos rituais de matriz africana ajuizaram a ação declaratória de inconstitucionalidade nº 70010129690 no TJ/RS.

Não lograram êxito, porque por ampla maioria os desembargadores sulistas declararam constitucional a Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao art. 2° da Lei 11.915/03-RS, explicitando que não infringe ao  “Código Estadual de Proteção aos Animais” o sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade. Em arremete, os desembargadores concluíram que não há norma que proíba a morte de animais, e, de toda sorte, no caso a liberdade de culto permitiria a prática. No entanto, este Acórdão foi alvejado pelo citado RE 494.601 no STF, distribuído ao ministro Marco Aurélio para relatoria, e sua última movimentação foi em 16/10/2017, encontrando-se na situação "Conclusos ao relator" [30], ou seja, aguardando julgamento.

O Tribunal de Justiça de São Paulo também enfrentou recentemente o tema: em 17/4/2017 se debruçou sobre a Lei nº 1.960, de 21/9/2016 [31], usinada pela Câmara de Vereadores do Município de Cotia/SP, cujo § 1º tinha o seguinte teor: "Fica proibida a utilização, mutilação e/ou sacrifício de animais em rituais ou cultos, realizados em estabelecimentos fechados e/ou logradouros públicos, tenham aqueles finalidade: mística, iniciática, esotérica ou religiosa, assim como em práticas de seitas, religiões ou de congregações de qualquer natureza, no Município de Cotia".

Descontente com a Lei, o diretório estadual do Partido Socialismo e Liberdade - PSOL ajuizou a ADI nº ADI 22324701320168260000 SP 2232470-13.2016.8.26.0000 no TJ/SP [32], em desfavor do prefeito municipal e do presidente da Câmara de Vereadores de Cotia/SP. O resultado lhes foi favorável, pois os desembargadores paulistas reconheceram a inconstitucionalidade da referida Lei, ao argumento de que na tensão entre os direitos de liberdade religiosa e o de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, deve prevalecer o primeiro, porque a utilização de animais nessas circunstâncias não teria proporção suficiente para colocar em risco a existência equilibrada do meio ambiente, já que o Município de Cotia não provou que estaria havendo a prática acentuada de cultos que impusessem a utilização e morte de um número significativo de animais, de forma desproporcional, que justificasse a atuação do Poder Público para inibir a conduta. À derradeira, os desembargadores confirmaram a inconstitucionalidade da Lei por ofender o art. 144 da Constituição Estadual, em reflexo do art. 5º, VI, da CF/88.

Como se vê, os Tribunais de Justiça gaúcho e paulista estão alinhados na compreensão de que o abate de animais em rituais religiosos de matriz africana não ferem a Constituição e as Leis, desde que praticados sem crueldade. Enquanto se aguarda a decisão definitiva do STF, esses posicionamentos de duas fontes consagradas de bom Direito são suficientes para indicar por qual partitura tocam os demais desembargadores e Tribunais estaduais brasileiros.


V. Posições doutrinárias

Em debate de tema que fomenta discussões acaloradas como o aqui em escrutínio, não se pode apoucar o valor da doutrina, que sempre ilumina os cantos escuros das controvérsias acirradas. Mas antes da abordagem doutrinária específica sobre o assunto em estudo, bom lembrar que o Brasil é um país laico, ou seja, não têm religião oficial, por isso o Estado deve se envolver o mínimo possível nesse tema, conforme vedação talhada em caracteres irrecusáveis no art. 19, I, da CF/88:  é vedado à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

A definição do professor e juiz Aloísio Cristóvam  dos Santos Júnior [33] sobre laicidade é bastante simples: "laicidade seria simplesmente a qualidade de laico, o caráter de neutralidade religiosa do Estado". Daniel Sarmento [34] vai um pouco além, mas também foca na neutralidade ao ponderar que a laicidade adotada pela CF/88 "não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à religiosidade ... Pelo contrário, a laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade.

Já que se está tratando de sacrifício de animais em liturgias de matriz africana, bom trazer à baila a lição do professor Yannick Yves Andrade Robert [35] sobre quais religiões estão nessa linha: "por religiões de matriz africana devemos compreender o Candomblé, o Batuque, o Omolokô, a Santeria e a Umbanda. A prática de sacrifício de animais é encontrada em todas essas religiões com exceção da Umbanda, na qual raramente se pratica". Aproveitando a lição do professor e agora ingressando na dialética doutrinária especificamente sobre a tensão de direitos aqui estudada, ele leciona que não pode ser típico nem perante a lei de crimes ambientais nem perante a lei de contravenções penais o sacrifício ritual de animais nas religiões de matriz africana, pois ao realizá-lo o sacerdote não tem o dolo especifico dos tipos penais: submeter os animais a maus tratos ou matá-los. A lei visa a proteger o animal da morte cruel, a morte que decorre de práticas levianas. Como não há nenhuma lei que proíba o sacrifício de animais para alimentação humana ou o simples sacrifício de animais domésticos (sem meios cruéis) pode-se, com base no princípio da legalidade assegurado no art 5º, II, da CF/88, defender o sacrifício ritual de animais domésticos ou domesticados criados para este fim, finaliza o professor. 

Pelo mesmo norte guiam-se os professores Ilzver de Matos Oliveira, Tagore Trajano de Almeida Silva e Kellen Josephine Muniz de Lima [36] ao concluírem que, diante do conflito de normas protetivas do tema em análise, não pode o Estado, sob pena de ferir o preceito constitucional que assegura a liberdade de culto, querer extinguir essas práticas. Isso porque, vários animais são abatidos diariamente para o consumo humano, em nada diferindo o sofrimento do animal objeto do sacrifício religioso daquele suportado pelo animal abatido para consumo. Portanto, segundo os professores, no sistema jurídico brasileiro não há objeção ao sacrifício religioso de animais, cabendo ao Judiciário, ao enfrentar o caso concreto, definir os limites entre a proteção aos animais e a liberdade de crença, usando os mecanismos previstos no nosso ordenamento jurídico e resolvendo a colisão sem que se configure o abuso de direito.

Na mesma linha, o professor André Ramos Tavares [37] leciona que a proteção constitucional à liberdade religiosa abrange vários aspectos, quais sejam: i) de opção em valores transcendentais (ou não); ii) de crença nesse sistema de valores; iii) de seguir dogmas baseados na fé e não na racionalidade estrita; iv) da liturgia (cerimonial), o que pressupõe a dimensão coletiva da liberdade; v) do culto propriamente dito, o que inclui um aspecto individual; vi) dos locais de prática do culto; vii) de não ser o indivíduo inquirido pelo Estado sobre suas convicções; viii) de não ser o indivíduo prejudicado, de qualquer forma, nas suas relações com o Estado, em virtude de sua crença declarada. A partir dessa lição do professor, percebe-se que ele não enfrentou diretamente a questão do abate de animais em rituais religiosos, mas pela amplitude que deu à liberdade de crença é de se inferir que ele pugna pela sua prevalência.

Em idêntica ordem seguem Sérgio Tibiriçá Amaral e Thiago Oliveira Catana [38], ao ponderarem que um exemplo de conflito de interesses é o direito dos animais e a liberdade religiosa: embora os animais tenham seus direitos, existem religiões onde o sacrifício é um sacramento essencial e não pode ser substituído ou mesmo extinto pelo Estado. Alem disso, de acordo com os autores, vários animais morrem para o consumo diário e esses animais sacrificados são mortos com a preocupação de que eles não sofram, como ocorre na maioria das religiões que adotam essa prática. Portanto, para esses autores, prevalece o direito de livre culto.

O professor e juiz de Direito Ingo Wolfgang Sarlet [39] também adere a essa corrente ao ensinar que no caso do sacrifício de animais para rituais religiosos no Brasil, não somente a ordem constitucional não veda o abate de animais, mas também assegura uma posição especial, em termos de proteção autônoma às manifestações culturais afro-brasileiras (artigo 215, § 1º), o que por si só encaminha a ponderação, neste particular, a pender para o lado da liberdade religiosa, até mesmo pelo fato de que os cultos e rituais religiosos são também elementos essenciais de uma determinada cultura, cujo limite é precisamente o da proibição, mediante uma regra constitucional, da proibição da crueldade com os animais.

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No mesmo rumo vai o professor e desembargador Jayme Weingartner Neto [40], ao entender que a Lei nº 9.605/98 não possui aplicação em relação aos sacrifícios litúrgicos de animais: "não faz parte do programa das normas ambientais vedá-lo, nem se encontra no âmbito normativo a proibição das situações decorrentes do exercício religioso. Em concordância está o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo [41], quando disserta que "havendo aparente conflito entre meio ambiente cultural e meio ambiente natural, merecerá guarida o meio ambiente cultural, que implique identificação de valores de uma região ou população.” 

Em sentido contrário vai o professor Fábio Corrêa Souza de Oliveira [42], da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ao sustentar que é inconstitucional o sacrifício de animais em ritos "religiosos", sendo imperioso, conforme a Constituição, reconhecer que a liberdade religiosa não inclui, no seu âmbito normativo (limite imanente), a lesão ou a matança de animais. Essa compreensão é compartilhada pelo professor Daniel Braga Lourenço [43], para quem o livre exercício dos cultos religiosos esbarra nos limites da ordem pública e dos bons costumes, bem como nos limites traçados pelo ordenamento jurídico, sendo absurdo permitir que o exercício da liberdade religiosa contravenha às leis. Assim, de acordo com o professor, é imperativo concluir que a prática de rituais religiosos, consistentes na matança de animais não-humanos, é condenável filosófica, ética e juridicamente, constituindo tais condutas atos ilícitos que acarretam responsabilidade civil e criminal, devendo ser enquadradas nos tipos legais pertinentes, especialmente no previsto no art. 32 da Lei 9.605/98.

Danielle Mariel Heil [44] segue essa trilha, argumentando que para atingir sua realização plena, o direito e a justiça não devem se ater apenas ao direito positivo, mas considerar igualmente os valores morais e éticos da sociedade e os princípios do direito natural. Conforme Danielle, o artigo 225, § 1º, VII, da CRFB/88, ao vedar as práticas que submetam os animais à crueldade, traz em si um imperativo ético que reconhece o animal como ser vivente, e não como objeto. Para ela, o debate é intenso e contrapõe tradição cultural, liberdade de culto e o direito animal. Contudo, importa ressalvar que não se trata de estigmatizar nenhuma religião ou grupo, mas de avançar na tentativa de livrar os animais de destinos tão indignos e cruéis. 

De acordo com a Agência de Notícias de Direitos Animais - ANDA,  o presidente da Comissão de Proteção aos Direitos dos Animais da OAB/RJ defendeu na XXII Conferência Nacional dos Advogados, realizada em 2014 no Rio de Janeiro, que o uso de animais em rituais está chegando ao fim. Segundo a ANDA, o advogado Reynaldo Velloso [45] explicou que não propõe a extinção ou proibição de crenças ou tradições, mas a observância da legislação vigente e seu devido cumprimento. Lembrou que o respeito pelos diversos sistemas religiosos não deve ser tão forte que nos impeça de avaliar a sua legalidade e legitimidade. 

Para o advogado, o embate é estritamente jurídico, pois a liberdade de crença é um direito individual, mesmo sendo de um grupo, e o direito dos animais não serem submetidos a atos de crueldades, constitui um direito difuso, coletivo. Fica evidente a prevalência do direito maior. As restrições à liberdade religiosa, não se limitam às normas de proteção do animal, mas a limites impostos a toda e qualquer atividade. Disse que o argumento da tradição, em pleno século XXI, não se sustenta, pois não estamos numa tribo africana há 3 mil anos. Hoje não se executam criminosos por enforcamento ou em fogueiras, nem se põem homens para lutar com leões, como no império Romano. 

Prossegue o advogado alegando que os astecas ofereciam crianças aos deuses, prática bárbara abolida há tempos. Segundo ele, a questão não é apenas moral, mas também legal, como determina a lei nº 9.605/98, quando proíbe que os animais sejam submetidos a maus-tratos, além de a CF/88 proibir a crueldade contra animais. Finalizou ponderando que sacrificar animais, sob o argumento de “pacificar deuses”, ou a título de “agradar entidades”, ou “pagar favores”, não os livra da dor e da morte. Ademais, afirma que uma entidade superior, um ser divino, não necessita da matança de um ser indefeso para maior elevação e aumento de grandeza. 

Após apresentar os conceitos de laicidade esposado por dois professores, catalogou-se a compreensão de outros treze. É certo que em alguma medida os posicionamentos jurídicos são produto das predileções pessoais, das experiências vividas, das dores e alegrias, sucessos e fracassos, traumas e conquistas que constroem a história de cada um, e na questão aqui agitada não é diferente. Todavia, ao analisar cada posicionamento dos oito estudiosos que são pela valorização da liberdade religiosa e dos quatro inclinados ao respeito à vida dos animais sacrificados, restou claro que nenhum desborda das balizas da razoabilidade, pois todos declinam sólidos argumentos sociológicos e jurídicos para escorar suas posições, dando valorosa colaboração para o aclaramento do tema.

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Sobre o autor
Luciano Rosa Vicente

Professor de Direito na Faculdade Anhanguera de Brasília - FAB; mestrando em Direito; especialista em Direito Público, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Disciplinar; bacharel em Direito; e bacharel em Ciências Contábeis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTE, Luciano Rosa. Direitos constitucionais de proteção aos animais e de liberdade religiosa: qual deve prevalecer quando se trata do abate de animais nos cultos de matriz africana?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5436, 20 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66080. Acesso em: 22 nov. 2024.

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