O Código de Trânsito Brasileiro em vigor (Lei 9503/97 – artigo 301), mantendo tradicional norma que já era prevista no antigo Código Nacional de Trânsito (Lei 5.108/66 – artigo 123), veda a prisão em flagrante do motorista envolvido em acidente de que resulte vítima, desde que preste “pronto e integral” socorro.
O regramento legal é claro e objetivo. Simplesmente não se impõe a prisão em flagrante a quem preste socorro em acidente de trânsito viário. Trata-se de uma medida de Política Criminal que visa incentivar as pessoas, ainda que tenham agido com negligência, imprudência ou imperícia evidentes, a prestar socorro e ao menos tentar minimizar as consequências de seus atos, sem temer a possibilidade de sofrer uma restrição de liberdade porque permaneceram no local, prestando a devida assistência a feridos. Não prever tal norma, seria incentivar a fuga do local, mesmo de indivíduos que tivessem convicção de não haver agido em infração à lei, pelo simples temor de uma prisão, ainda que injusta. Note-se que, por outro lado, quem omite o socorro devido sofre um aumento de pena de um terço até a metade, nos estritos termos do artigo 302, § 1º., III e artigo 303, § 1º., CTB. O sistema, sob a ótica da Política Criminal, é perfeito: incentivo à prestação de socorro (uma manifestação do chamado “Direito Premial”) e inibição, com aumento de pena, para a omissão do socorro.
Conforme destacam Capez e Gonçalves:
“Acontece que, visando estimular o socorro às vítimas, o legislador veda a efetivação da prisão em flagrante (lavratura do respectivo auto de prisão), bem como dispensa fiança àquele condutor de veículo envolvido em acidente que venha a prestar imediato e completo socorro à vítima. Em contrapartida, aquele que não o fizer responderá pelo crime de homicídio ou lesões corporais culposas, com o acréscimo de um terço até a metade da pena”. [1]
É bom lembrar, nesse ponto, que o artigo 301, CTB, veda não somente a prisão em flagrante como também a exigência de fiança, quando há a devida prestação de socorro. Nesse sentido, é preciso ter em mente que, com o advento das alterações promovidas nas medidas cautelares processuais penais pela Lei 12.403/11, também não caberá pretender substituir a liberdade provisória sem restrições pela imposição da condição de pagamento de fiança prevista no artigo 319, VIII, CPP. A norma especial do artigo 301, CTB há que prevalecer sobre a geral do artigo 319, VIII, CPP.
Sabe-se que o Código de Trânsito Brasileiro não somente prevê os crimes de Embriaguez ao Volante (artigo 306, CTB) e de Racha (artigo 308, CTB), como tais circunstâncias podem exasperar a penalidades dos crimes de homicídio culposo no trânsito (artigo 302, CTB) e de Lesão Corporal Culposa no Trânsito (artigo 303, CTB). Isso sem falar na possibilidade de concurso de delitos em certas circunstâncias. [2]
Por obviedade, a vedação da prisão em flagrante não se aplica aos crimes dos artigos 306 e 308, CTB, eis que são culposos e neles (isoladamente falando) não existe vítima direta (trata-se de crimes vagos). [3] Em suma, não haverá a quem socorrer.
Quanto ao homicídio e à lesão, somente há aplicação da vedação do artigo 301, CTB, acaso o crime seja culposo. O dispositivo enfocado trata de “acidentes de trânsito” com vítimas e, portanto, não alcança as atuações dolosas, seja por dolo direto ou eventual. Também é fato, como bem observa Lopes, que o artigo 301 integra o Código de Trânsito Brasileiro e nesse diploma legal não existe previsão de homicídio ou lesão corporal dolosos, aos quais se aplicam as regras normais do Código Penal e do Código de Processo Penal. [4]
Ocorre que tanto no homicídio culposo como na lesão corporal culposa no trânsito, pode haver ligação com a circunstância da ebriedade ou da prática do racha. No homicídio culposo há previsão, no artigo 302, § 3º., CTB, de uma qualificadora que eleva a pena para “reclusão, de 5 a 8 anos” se o agente estiver embriagado na condução de veículo automotor por ocasião do sinistro. Já na lesão culposa, há também qualificadora ligada à ebriedade, desta feita prevista no artigo 303, § 2º., CTB. A pena então se eleva para “reclusão, de 2 a 5 anos” se o agente conduz o veículo embriagado e do acidente resulta na vítima lesão grave ou gravíssima.
No crime de racha (artigo 308, CTB), há também uma qualificadora, elevando a pena para “reclusão, de 3 a 6 anos”, quando ocorrer, nessas circunstâncias (racha) lesão grave ou gravíssima. [5] Também há outra qualificadora quando no racha ocorrer morte, quando a pena sobre para “reclusão, de 5 a 10 anos”.
Ocorrendo homicídio culposo no trânsito com o agente embriagado, não há se falar em concurso com o crime de embriaguez (artigo 306, CTB), eis que tal circunstância já qualifica o delito, nos termos do artigo 302, § 3º., CTB. O mesmo se diga quando houver morte em circunstância de racha, pois aí é a morte que qualifica o crime do artigo 308, CTB, de acordo com o § 2º., deste último dispositivo. Também inviável o concurso de crimes nos casos de racha com lesões graves ou gravíssimas, eis que as lesões são qualificadoras do racha (inteligência do artigo 308, §1º., CTB).
Observe-se que em todos os casos tratam-se de mortes ou lesões que derivam de culpa. Inclusive o artigo 308, CTB é bem claro ao afastar explicitamente até mesmo o dolo eventual desses resultados. Assim sendo, em havendo, em qualquer desses casos até o momento tratados, o “pronto e integral” socorro à vítima por parte do autor do crime, inviável será a sua prisão em flagrante, de acordo com o artigo 301, CTB.
No caso das lesões culposas no trânsito com o agente embriagado (artigo 303, § 2º., CTB), é, porém, preciso observar que nem sempre a ebriedade irá qualificar o delito. Isso somente ocorrerá se, além de o agente estar embriagado na ocasião do sinistro, resultarem lesões graves ou gravíssimas na vítima. Nesse caso, a embriaguez é absorvida, pois que já qualifica o crime e não pode haver concurso com o artigo 306, CTB, o que configuraria “bis in idem”. Portanto, também não será viável a prisão em flagrante se houver “pronto e integral” socorro à vítima por parte do agente, de acordo com o artigo 301, CTB, independentemente de estar ele embriagado no momento do acidente.
Porém, nas lesões culposas, se o agente estiver embriagado, mas a vítima sofrer lesões leves no acidente, não haverá a qualificadora do artigo 303, § 2º., CTB, a qual, como visto, exige (até pela conjunção aditiva “e”) a presença da ebriedade e dos resultados graves ou gravíssimos. Nesse caso, pode haver a discussão sobre o concurso do artigo 303 com o artigo 306, CTB. Em se posicionando pela absorção do artigo 306, CTB, não surge dúvida maior quanto à aplicabilidade da vedação da prisão em flagrante. Mas, se a opção é pelo concurso entre os crimes do artigo 303 e 306, CTB, pode surgir a dúvida se seria viável a prisão pelo crime do artigo 306, CTB, eis que ele não comporta vítima determinada.
A existência de uma vítima de lesão é ocasional e configuraria delito autônomo. Então, a prisão não seria lavrada com relação ao crime de lesão culposa no trânsito, mas sim com relação ao crime residual de embriaguez ao volante, mesmo porque o artigo 301, CTB se refere a “acidentes de trânsito de que resulte vítima” e na embriaguez, isoladamente, não se trata nem de acidente e muito menos de vítima de lesão.
Acontece que, na verdade, com ou sem concurso delitual, a solução não deve se alterar, ou seja, ao condutor, em acidente de trânsito com vítima, que prestar “pronto e integral” socorro, não se imporá prisão em flagrante. Mudar isso, seria uma medida político criminalmente equivocada, correndo-se o risco de jogar por terra todo o incentivo ao socorro em alguns casos.
Observe-se que tal dúvida também poderia surgir em casos nos quais houvesse racha, com o agente ébrio e resultado de lesão corporal ou ainda racha com o agente ébrio e morte. Na primeira situação, poderia haver entendimento de concurso entre o racha qualificado (artigo 308, § 1º., CTB) e o crime de embriaguez ao volante (artigo 306, CTB) ou mesmo, se as lesões fossem leves, entre os artigos 303, 306 e 308, CTB.
No segundo caso, poderia haver concurso entre o racha qualificado pela morte (artigo 308, §2º., CTB) e o crime de embriaguez ao volante (artigo 306, CTB). Também em nenhuma dessas situações existe motivo para abrir mão do dispositivo altamente recomendável de política criminal que constitui o artigo 301, CTB, vedando a prisão em flagrante do agente que pronta e integralmente socorre à vítima. Em suma, as circunstâncias do acidente não devem ter o condão de afastar o intento de política criminal que visa ao incentivo ao socorro.
Pensar que o aceno da prisão em flagrante como possibilidade nesses casos iria inibir as atuações imprudentes é uma enorme ilusão. A única consequência seria realmente o maior incentivo à fuga e o desincentivo ao socorro, o qual, muitas vezes, pode ser decisivo para atenuar as lesões da vítima ou, até mesmo, para o salvamento de sua vida.
Rizzardo aponta para o fato de que se o agente quer prestar o socorro e não o consegue por motivos alheios, isso também não lhe pode tolher o benefício da vedação da prisão em flagrante. Em suas palavras:
“Primeiramente, preponderam a disposição e os atos tendentes a prestar socorro. Se o veículo do causador não comporta o atendimento no local, ou as condições físicas e psíquicas do mesmo impedem o socorro, não é de se afastar a aplicabilidade da norma, porquanto, do contrário, se privilegiaria aqueles que tiveram maior sorte no evento, ou manobravam veículos mais resistentes. Decorreria uma quebra do princípio da igualdade e da própria justiça. Valerá, pois, para decidir quanto à incidência da regra, o ato de vontade evidenciador de prestar socorro”. [6]
Neste ponto entende-se caber uma ressalva. Quando Rizzardo se refere à impossibilidade de prestação de socorro por motivos alheios à vontade do agente e resultantes do próprio acidente em si, ainda que ligados à culpa do infrator, mesmo na situação de racha (v.g. danos no veículo do autor, lesões sofridas pelo próprio autor etc.), é até possível concordar se não se leva a efeito maior reflexão.
Mas, como se está a tratar neste texto também da situação de embriaguez, entende-se que se o impedimento ao socorro resulta da condição entorpecida do autor, isso não pode ser alegado em seu favor para que se reconheça o beneplácito do artigo 301, CTB, ainda que sem o devido socorro.
Acontece que eventuais lesões ou danos decorrem do próprio fato, enquanto que a embriaguez do agente se dá num momento anterior em que este agia totalmente livre de qualquer circunstância, o que é conhecido dogmaticamente como “actio libera in causa”.
Mesmo ciente das críticas à “actio libera in causa”, afirmando-se tratar-se de uma espécie de responsabilidade objetiva a responsabilização do indivíduo com base em sua conduta e elemento subjetivo anterior ao fato criminoso, [7] é de se aplicar a teoria a situações como a estudada.
Acontece que aqui não se trata de responsabilização objetiva, mas do fato de que a embriaguez constitui, em si, um crime no trânsito ou fator de exasperação penal, bem como de impedir que o autor possa se beneficiar da própria torpeza, o que é princípio geral do Direito (“turpitudinem suam allegans non auditur”).
Permitir que a alegação de ebriedade justifique a falta de socorro, seria o mesmo que atenuar a pena do parricida – matricida por ser um órfão! Quanto às demais circunstâncias que rodeiam o ato, há que também discordar do autor após a devida reflexão. Afinal, elas são obviamente de responsabilidade do infrator, integram um quadro que decorreu de sua conduta imprudente e também não podem atuar a seu favor pelos mesmos motivos antes expostos em relação à embriaguez (“turpitudinem suam allegans non auditur”).
A única situação em que se pode concordar com Rizzardo, seria o caso em que o agente seja impedido por terceiros de prestar socorro (v.g. casos de iminente linchamento etc.), pois que então serão motivos totalmente alheios à sua conduta que bloquearam sua vontade de socorrer.
Agora, presente o devido socorro exigido na forma do artigo 301, CTB, não serão quaisquer circunstâncias do sinistro que afastarão a vedação do flagrante, eis que deve prevalecer sempre o intento de Política Criminal que inspira a norma em questão.
Aliás, os pressupostos para o afastamento da prisão em flagrante não incluem a inexistência de embriaguez do autor ou reduzem a aplicação do dispositivo a determinadas circunstâncias. Segundo a doutrina tais pressupostos se resumem ao seguinte: “a) que o condutor do veículo seja o causador do acidente; b) que haja vítima no acidente; c) que preste pronto e integral socorro”. [8] Sobre o tema Damásio é ainda mais enfático, arrolando os mesmos requisitos legais para a aplicação do artigo 301, CTB e afirmando expressamente que, em caso de motorista embriagado que presta assistência à vítima, “aplica-se o art. 301: não se impõe prisão em flagrante”. [9]
Finalmente, para colocar uma pá de cal sobre a discussão, é preciso lembrar que por ocasião do trâmite da Lei 11.705/08 (primeira “Lei Seca”) se pretendeu, em projeto, estabelecer o afastamento do artigo 301, CTB, quando houvesse embriaguez do autor ou este estivesse na disputa de racha, bem como se estivesse dirigindo pelo acostamento, na contramão ou em velocidade superior à máxima permitida em 50 Km/h. Era o projetado Parágrafo Único, I a III do artigo 301, CTB. Tal Parágrafo Único e seus incisos nunca vigoraram, pois que foram objeto de veto presidencial, exatamente porque tais limitações iriam prejudicar os fins de Política Criminal que sustentam o disposto no artigo 301, CTB. E tal intento jamais se repetiu em outros projetos, dada sua evidente inconveniência. Eis o texto conclusivo das “razões do veto”:
“Embora objetivando aumentar o rigor do tratamento dispensado àqueles que atuam de forma irresponsável no trânsito, a proposta pode ensejar efeito colateral contrário ao interesse público. Uma vez produzido o resultado danoso pelo crime de trânsito, o melhor a se fazer é tentar minorar suas conseqüências e preservar o bem jurídico maior, a vida. Nesse sentido, tendo em vista o pronto atendimento à vítima, a legislação estabelece que não será preso em flagrante aquele que socorrer a vítima. Entende-se que não há razão para se excepcionar tal regra, porquanto que direcionada para a preservação da vida.
Observe-se que já se trata de exceção à regra do flagrante: somente se o socorro for imediato e se o agente fizer tudo que seja possível diante das circunstâncias é que haverá o afastamento do flagrante. Cabe, por fim, ressaltar que tal exceção não se confunde com impunidade: o autor do crime deverá responder por seus atos perante a Justiça e poderá, inclusive, ter a sua prisão decretada futuramente.”. [10]
Não parece possível maior e mais evidente demonstração da “mens legis” e da opção político criminal que deve inspirar a interpretação e aplicação do artigo 301, CTB.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos Criminais do Código de Trânsito Brasileiro. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
JEUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Tânsito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Crimes de Trânsito. São Paulo: RT, 1998.
MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume II. Campinas: Millenium, 2002.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2003.
Notas
[1] CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos Criminais do Código de Trânsito Brasileiro. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 25.
[2] Doutrina e jurisprudência se dividem em casos nos quais seja possível cogitar do concurso entre os crimes de embriaguez ao volante e/ou racha e os crimes de homicídio e lesões culposas no trânsito. Há o entendimento de que os crimes de dano absorvem os crimes de perigo, não sendo possível o concurso, bem como o pensamento de que é viável o concurso de crimes. Vem prevalecendo a tese, atualmente, de que o concurso é viável, desde que a embriaguez ou o racha não sejam previstos como circunstâncias exasperadoras da pena do homicídio ou lesão culposos (neste caso haveria “bis in idem”). Para ilustração, observe-se jurisprudência em ambos os sentidos colacionada por Renato Marcão: MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 31 – 32 e p. 132 – 133.
[3] Crimes vagos “são aqueles que não possuem sujeito passivo determinado, sendo este a coletividade, sem personalidade jurídica”. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 141.
[4] LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Crimes de Trânsito. São Paulo: RT, 1998, p. 176.
[5] O texto legal se refere apenas à “lesão grave”, mas é de trivial conhecimento o fato de que a expressão “lesão gravíssima” não é um “nomen juris”, mas sim criação doutrinária e da prática forense, sendo fato que ao referir-se à “lesão grave”, invariavelmente, está o legislador a se referir a ambos os resultados mais gravosos.
[6] RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. 4ª. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 630.
[7] Neste sentido lecionam, por exemplo, José Frederico Marques e Aníbal Bruno. O primeiro se sustenta na doutrina do segundo. Cf. MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume II. Campinas: Millenium, 2002, p. 212.
[8] LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro, Op. Cit., p. 176.
[9] JEUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Tânsito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 70.
[10] MENSAGEM de Veto. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/Msg/VEP-404-08.htm , acesso em 20.05.2108.