4. INFLUÊNCIA E A PRESSÃO MIDIÁTICA SOBRE O JUÍZO DE PENALIDADE E DIREITO SIMBÓLICO
Como supramencionado, a Constituição Federal de 1988 consagrou, entre o arcabouço de direitos fundamentais lá previstos, a liberdade de pensamento da imprensa a fim de que não persistisse restrições políticas ou quaisquer outras que obstaculizassem a mensagem a ser remetida pelos meios de comunicação.
Em uma sociedade democrática por excelência, o direito à informação é considerado imprescindível e intangível. Preceituado no art. 5º, inciso XIV, afirma ser “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. (BRASIL, 1988, Constituição da República Federativa do Brasil). Sob o mesmo prisma, o art. 220 reitera que “a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. (BRASIL, 1988, Constituição da República Federativa do Brasil).
Resta objetivo, portanto, que a noção de liberdade de expressão está atrelada a concepção da mídia, e como intimamente relacionada aos meios de comunicação, é por meio dela que se exterioriza a opinião, seja criticando, informando ou até mesmo investigando. Todavia, como já ventilado, tal liberdade, pelo menos em tese, fica esteada até os limites do regime democrático.
Sob essa ótica, é bem verdade que dentro do processo penal, a mídia exerce um duplo papel. Ao mesmo tempo em que auxilia a atividade de polícia do Estado por meio da divulgação de informações importantes acerca de criminosos e eventos de natureza criminal, acaba por julgar antecipadamente acusado por meio da pressão pela opinião pública. Sendo assim, se mostra mais do que necessário um juízo de ponderação quanto a liberdade de informação, especificamente, em até que ponto essa prerrogativa seria benéfica a sociedade.
Não se trata aqui de se questionar a transmissão da informação por si só, pois resta por óbvio que a mídia não apenas instrumentaliza a democracia, de forma que o que não pode tolerar é que essa liberdade possa pautar definitivamente a atividade exercida pelos três poderes, cada um à sua maneira.
Em relação a dimensionamento do impacto que esse fenômeno, assevera brilhantemente Judson Pereira de Almeida (2018, p. 33-34):
A mídia, como instância informal de controle social, acaba por se tornar uma caixa de ressonância da instância formal, ou seja, do Direito Penal. Esta ressonância se apresenta, na maioria dos casos, distorcida [...]. Aí cria-se um ciclo, que podemos assim estabelecer: Direito Penal (instância formal onde as regras são estabelecidas) ” crime (burla da regra penal) ” meios de comunicação (instância informal que interpreta e, não poucas vezes, deturpa o funcionamento do sistema formal de controle e a desobediência às suas regras) ” sociedade (onde os efeitos das duas instâncias de controles são sentidos, e onde nasce o sentimento de medo e insegurança) ” legislador (recebe a influência da sociedade que clama por modificações no ordenamento jurídico)” Direito Penal (modificado com base no clamor popular provocado pelo crime e suscitado pela mídia).
Cumpre-se lembrar que desde a década de 90, no período em que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 procurava sedimentar-se, a sociedade já buscava interferir de forma definitiva nos processos legislativos penais. Com a revolução inerente aos meios de comunicação, a onipresença dessa influência se fez ainda presente e o Poder Legislativo, por sua vez, deixa-se levar pelo clamor público e constantemente acaba por ceder aos apelos da mídia. (TOMASI; LINHARES, 2015).
Evidencia-se aqui uma verdadeira crise no sistema penal, haja vista que a produção legislativa penal brasileira caminha simultaneamente às pressões exercidas pelos veículos de comunicação em massa. Entretanto, denota-se que essa “produção” não vem sendo acompanhada de avanços positivos, tendo em vista o não exercício reflexivo que determinadas matérias imperam ao legislador, faz com que esse trabalho seja limítrofe e inócuo, com mudanças limitadas e desarrazoadas, apenas com o propósito de atender aos apelos da mídia. Fica claro, assim, que a lei não pode ir a ser o produto da massificação dos meios de comunicação e do espetáculo midiático, sendo o legislador tratado como um verdadeiro “peão” da mídia versus a sociedade. (TOMASI; LINHARES, 2015). Deste modo:
[...]. A guerra comunicacional prejudica sobremaneira os profissionais do direito que se veem diante de leis espalhafatosas, produzidas diante do clamor popular ensejado por casos criminais célebres. (MASCARENHAS, 2010, p. 52).
São diversos os exemplos de leis produzidas e modificadas de acordo com a pressão da opinião pública e, justamente para que se possa verificar e quantificar o tamanho desse fenômeno passa-se agora a análise pormenorizada de casos com grande repercussão social e legislativo.
Na década de 90, com absoluta certeza, o caso que se fez mais sentir a influência da mídia fora quanto à criação e modificações posteriores da famosa “Lei dos Crimes Hediondos”. Inerente a episódios de grande clamor midiático, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 é resultado da intensa pressão midiática diante da criminalidade exacerbada e descomunal dos grandes centros urbanos.
Ela é resultado direito do episódio de sequestro do publicitário Roberto Medida, que permaneceu dezesseis dias sob o poder de um grupo de sequestradores no Rio de Janeiro, bem como, um ano antes, do empresário paulistano Abílio Diniz que sofreu da mesma violência.
A notoriedade dos indivíduos que vinham sendo sequestrados, tal como o clamor social e da mídia, fez com o que governo se movimentasse para dar uma resposta à altura do problema, movimentando o legislativo para fazer a regulação do dispositivo constitucional (art. 5º, XLIII) pertinente aos crimes de natureza hedionda, excluindo das pessoas processadas ou condenadas por sua prática de diversos benefícios da progressão de regime. Desse modo:
O legislador brasileiro, ao cumprir o mandamento constitucional, talvez pela pressa diante de fortes pressões – encontrava-se o Congresso Nacional sobre forte pressão da Mídia eletrônica, na ânsia de atender aos reclamos da camada mais rica da população, que assistia ao sequestro para fins de extorsão, de alguns de seus mais importantes representantes, preferiu selecionar alguns tipos já definidos em lei vigente e rotula-los como hediondos, em vez de apresentar uma noção explícita do que seria a hediondez que caracteriza tais crimes. (TELES, 2004, p. 223).
Sendo assim, é pertinente que se diga que o traço histórico posterior a vigência da lei vergastada não indica uma redução dos índices de criminalidade, mas sim serviu apenas para se aumentar a população prisional que já se encontrava em constante crescimento.
Em dezembro de 1992 ocorreu a morte da atriz Daniella Perez, e fora mais um caso criminal que deu azo a mudanças significativas da lei penal. A imprensa da época, tratou de espetacularizar o episódio, tanto que em 1997, depois de ocorrida a pronúncia do acusado, os noticiários já informavam que o réu era um condenado antes mesmo de sentar no Tribunal do Júri. (MASCARENHAS, 2010).
Episódios subsequentes como a “Chacina da Candelária” e de “Vigário Geral”, no ano de 1993, trataram de reavivar mais uma vez os debates no Congresso Nacional, que mais uma vez cedeu aos apelos midiáticos e, por meio da Lei nº 8.930/1994, alterou o artigo primeiro da Lei de Crime Hediondos para incluir à relação de crimes o delito de homicídio (art. 121 do Código Penal) quando praticado em atividade típica de grupos de extermínio, ainda que cometido por um só agente junto do homicídio qualificado (§ 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII). ( BRASIL. Lei nº 13.104; 13.142, 2015).
Esse movimento de “hediondização” dos crimes seguiu acompanhando os movimentos da mídia. Em meados de 1998, diante de um famoso caso de falsificação de remédios, conhecido pela “pílula de farinha”, mais uma vez exigiu uma atuação extensiva e abrupta do governo, que por força da Lei 9.695 promulgada em 20 de agosto, incluiu no rol de crimes hediondos o crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos e medicinais (inciso VII-B, art. 1º da Lei 8.072). (MASCARENHAS, 2010).
Sobressai o fato de que esse delito se encontra tipificado no art. 273 do vigente Código Penal, e justamente por isso, o acréscimo desse delito ao rol de crimes tidos como hediondos se apresenta como uma irresponsabilidade do legislador, pois banaliza e equivale um homicida a um falsificador. Como se não bastasse o absurdo, o delito de homicídio, regularmente tipificado no art. 121 do vigente Código Penal, tem pena mínima de 06 (seis) anos, enquanto que no caso do crime de falsificação, o lapso temporal mínimo é de 10 (dez) anos.
É latente nesse caso, o exagero punitivo do legislador, que desrespeita o princípio da proporcionalidade e, por consequência, o princípio da ofensividade, haja vista que a pena de reclusão, no regime inicial fechado, considerado ainda crime hediondo, para uma conduta em que nem mesmo exige o resultado concreto do dano trata-se de algo inviável para se acolher como razoável frente a realidade criminal absurda do Brasil, constituindo-se de uma verdadeira ofensa à dignidade humana. A opinião pública foi decisiva em casos como este, pois o ato de se vender um remédio falsificado ou sem registro no órgão de vigilância sanitária não dispõe, minimamente, do padrão necessário para que possa vir a ser comparado com delitos tão graves como os de alcunha do crime de homicídio. (MONTEIRO, 2015). Outra alteração que também merece destaque fora a inclusão, em 07 de agosto de 2009, que promovida pela Lei nº 12.015, passou a albergar os crimes de estupro e de estupro de vulnerável como hediondos. Portanto:
Esses anseios – muitas vezes, não pautados pela racionalidade, mas pelas paixões do momento – têm poder de mobilização fortíssimo. A violência e a ameaça de ser vítima dela são motivos muito fortes, ainda mais com a dramatização proposta pelos meios de comunicação social. O medo da morte violenta e da ação dos delinquentes, que não respeitam as Leis e as convenções sociais, exige uma resposta, mesmo que seja simbólica e ilusória para subsidiar os populares de alguma sensação de segurança. Ainda que esse anseio por uma sensação de segurança tenha como resposta uma legislação rígida e mal formulada, passível de manipulação político-eleitoral. O resultado é a fomentação de uma política criminal de recrudescimento do Direito Penal e do Direito Processual Penal, como se pode observar. (YABIKU, 2006, p. 80).
O movimento encabeçado pela mídia na composição da Lei de Crimes Hediondos não se apresentou como uma resposta à altura do problema da criminalidade, a julgar pelo fato de que os crimes ali tipificados não deixaram de ser praticados e, muito menos, houve uma redução da criminalidade envolvendo os mesmos delitos. Persiste aqui mais um atropelo do legislador ante a necessidade de se punir e também de se dar uma resposta a uma sociedade fomentada pela influência midiática da criminalização e da institucionalização do medo.
Em 04 de maio de 2012, a mídia e a internet brasileira depararam-se com um episódio que causou vasto clamor social e levantou várias discussões sobre a temática de delitos cibernéticos. A famosa atriz Carolina Dieckmann fora vítima da divulgação indevida de 36 imagens de cunho íntimo, obtidas por meio da violação indevida de um dispositivo eletrônico de sua propriedade que, rapidamente, tomaram conta do cenário virtual brasileiro a época dos fatos. (GRANATO, 2015).
Por meio da influência da opinião pública acerca da complexidade que envolve o caso, a investigação fora concluída em menos de dez dias pelo corpo policial responsável pela operação que, felizmente, encontrou os autores do crime. A crítica fica por conta do fato de que a divulgação de imagens de cunho íntimo, sem a autorização da pessoa, não se trata de um crime inédito no Brasil e, nesse diapasão, apenas quando a pessoa lesada fora alguém da grande mídia é que o tema “saltou” aos olhos do legislador.
Não é de hoje que a popularização da internet trouxe diversos benefícios e, consequentemente, fomentou à prática dos mais variados crimes, sendo mais do que costumeira a ocorrência de casos análogos ao da atriz. Todavia, até o ano de 2012, não persista no Brasil uma legislação específica e pertinente aos crimes cibernéticos, de modo que diante de casos concretos, os magistrados se utilizavam do Código Penal para a tipificação dessas condutas, que logicamente dava margem para decisões contraditórias. (GRANATO, 2015).
Com a grande comoção social envolvendo o caso em xeque, promulgou-se então, na data de 30 de novembro de 2012, a Lei 12.737, que ficara conhecida como a “Lei Carolina Dieckmann” e tratou da tipificação de delitos cibernéticos, introduzindo os artigos 154-A, 154-B e alterando os arts. 266 e 298 do vigente Código Penal.
Destaca-se que o art. 154-A evidenciou para o ordenamento jurídico o crime de “Invasão de Dispositivo Informático”, que consiste na conduta de: “invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não a rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”. Nesses casos, a pena prevista para o crime simples é detenção de três meses a um ano e multa, havendo, entretanto, a previsão de formas qualificadas e causas de aumento de pena. (SILVEIRA, 2015).
Outrossim, na época do incidente, acentuou-se um sentimento de insegurança e medo na sociedade, haja vista que o acesso cada vez mais amplo da população a internet fez com que as pessoas se sentissem fragilizadas e vulneráveis a passar por situações parecidas com a da atriz. Mais uma vez, a repercussão midiática alinhada a exteriorização quanto a falta de uma legislação sobre o tema fez nascer um movimento de clamor social pela tipificação dos crimes cibernéticos.
Por fim, é importante que se compreenda que assim como outros mecanismos midiáticos, a internet tem dado grande aporte às notícias relativas a violência e a criminalidade. São diversos os temas que chamam a atenção desse público, bem como a facilidade de acesso e o acúmulo de ferramentas que “compartilham” qualquer tipo de informação, em tempo real, sendo mais do que comum a propagação do discurso sensacionalista da mídia.
A expressão Direito Penal Simbólico fora caracterizada pela doutrina como aquele que tem “fama” de ser mais rigoroso, e justamente por isso, acaba por ser inócua na prática penal. Sendo assim:
O Direito Penal Simbólico é aquele que tem uma "fama" de ser rigoroso demais e por esse motivo acaba sendo ineficaz na prática, por trazer meros símbolos de rigor excessivo que, efetivamente, caem no vazio, diante de sua não aplicação efetiva, justamente pelo fato de ser tão rigoroso. Hoje em dia, o Brasil passa por uma fase onde leis penais de cunho simbólico são cada vez mais elaboradas pelo legislador infraconstitucional. Essas leis de cunho simbólico, de acordo com a jurista Ada Pellegrini Grinovver, trazem uma forte carga moral e emocional, revelando uma manifesta intenção pelo Governo de manipulação da opinião pública, ou seja, tem o legislador infundindo perante a sociedade uma falsa ideia de segurança. (GOMES, 2009, p. 50).
É natural que se reconheça que nos casos em que a influência do poder da mídia se faz tão presente, muito provavelmente, vá persistir uma diferença entre a real necessidade da sociedade e o interesse a ser buscado pelo clamor da opinião pública. Aqui, o direito penal se traduz na sua acepção simbólica, isto é, traz à baila um compromisso desesperado pela segurança, com prisões e mais penas severas, se valendo desta como instrumento exclusivo para se conquistar a pacificação social. Entretanto, é mais do que crível que o problema da criminalidade possa pautar-se em uma resposta exclusiva e autoritária da legislação penal, pois se assim o fosse, as inúmeras modificações supracitadas envolvendo a Lei dos Crimes Hediondos seria mais do que suficiente para “ceifar” as condutas criminosas por parte dos agentes.
Não se pode olvidar que problemas como a reincidência, aumento da população prisional, banalização de condutas, inaplicabilidade social da lei, etc. possam vir a ser resolvidos exclusivamente por meio da rigidez penal, o que não faz nenhum sentido. Desta feita, é forçoso que se reconheça que a criminalidade está incutida na sociedade brasileira de forma definitiva, apresentando-se como um tema eminentemente social e que necessita atenção de outros setores da sociedade além da atividade legiferante.
Nesse sentido, corrobora Roxim (em tradução livre):
Assim, portanto, haverá de ser entendida a expressão "direito penal simbólico", como sendo o conjunto de normas penais elaboradas no clamor da opinião pública, suscitadas geralmente na ocorrência de crimes violentos ou não, envolvendo pessoas famosas no Brasil, com grande repercussão na mídia, dada a atenção para casos determinados, específicos e escolhidos sob o critério exclusivo dos operadores da comunicação, objetivando escamotear as causas históricas, sociais e políticas da criminalidade, apresentando como única resposta para a segurança da sociedade a criação de novos e mais rigorosos comandos normativos penais. (ROXIN, 2000, p. 75).
A concepção de um direito penal simbólico se apresenta como um instrumento demagógico, onde a elaboração da lei fica pautada pela força da comoção geral ao redor do caso concreto, que na jurisdição torna-se inócua pela fragilidade que permeia o sistema penal brasileiro como um todo.