I – O FATO
Segundo notícia divulgada pelo jornal O Estado de São Paulo, edição de 21 de maio de 2018, sob o título “De olho no cofre”, o Tribunal de Contas da União decidiu reabrir um antigo debate sobre a necessidade de a Ordem dos Advogados do Brasil prestar contas dos recursos bilionários que recolhe da categoria. No dia 16 de maio, o TCU determinou que seus auditores elaborem um estudo técnico para subsidiar a discussão. A ideia é submeter a OAB às mesmas normas aplicadas a órgãos federais, estatais e outros conselhos de profissionais liberais fiscalizados pelo tribunal, já neste ano.
Os integrantes do TCU aprovaram por unanimidade a proposta que prevê o monitoramento das finanças da OAB e resolveram que a entidade será ouvida antes de qualquer decisão do tribunal. O relator do caso é o ministro Bruno Dantas.
Um grupo de advogados de quatro Estados estimou recentemente que a Ordem tenha arrecadado R$ 1,3 bilhão no ano passado. Em São Paulo, cada advogado paga uma taxa anual de R$ 997,30. No Rio, a contribuição obrigatória é de R$ 994,45.
II – A NATUREZA JURÍDICA DOS CONSELHOS PROFISSIONAIS
Sabe-se que as Ordens e Conselhos Profissionais são organismos destinados, em princípio, a administrar o exercício de profissões regulamentadas por lei federal.
São geridos por profissionais da área, que são eleitos por seus pares. De regra, possuem natureza federativa, com um órgão de nível federal e outro de nível estadual.
É certo que nítido se afigura o caráter de fiscalização e de policia das profissões por ele exercidos. É a chamada policia das profissões, atividade típica de entidade de direito público.
Na doutrina, foram denominadas de autarquias para-administrativas, corporações autárquicas, corporações profissionais, instituições corporativas. Sempre entendi, como estarrecedor, o que foi editado na Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, onde se atribuiu personalidade jurídica de direito privado a tais conselhos, ficando vedado o vínculo funcional ou hierárquico com a Administração Pública. Tal norma jurídica é de inconstitucionalidade material patente.
O artigo 58 daquela norma jurídica, e ainda seus parágrafos, fixou os seguintes moldes para os Conselhos, com exceção dos conselhos da OAB: os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa; a organização, a estrutura e o funcionamento dos conselhos devem ser disciplinados mediante decisão do plenário do conselho federal da respectiva profissão, garantindo-se que, na composição deste, estejam representados todos os conselhos regionais; seus empregados regem-se pela legislação trabalhista, sendo vedada qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta; os conselhos podem fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas, bem como preços de serviços e multas, que formarão receita própria, constituindo título executivo extrajudicial a certidão relativa aos créditos decorrentes; o controle das suas atividades financeiras e administrativas cabe exclusivamente aos seus órgãos internos, ou conselhos de fiscalização das profissões regulamentadas, por constituírem serviço público, gozam de imunidade tributária total em relação aos seus bens, rendas ou serviços; compete à Justiça Federal a apreciação das controvérsias que envolvam os conselhos, quando no exercício dos serviços a ele delegados.
Tal perfil surrealista, data vênia, dado pelo artigo 58 e parágrafos da Lei nº 9.649 era, sem dúvida, inconstitucional. Destoa do articulado no Decreto nº 64.704, de 17.06.69, de natureza regulamentar, que dispunha sobre a personalidade jurídica de direito público dessas entidades.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o mérito da ADI 1.717, declarou a inconstitucionalidade do caput e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do artigo 58 da Lei 9.649/98, restando consignado que a fiscalização das profissões, por se tratar de uma atividade típica do Estado, que abrange o poder de polícia, de tributar e de punir, não pode ser delegada.
Daí a natureza autárquica dos conselhos profissionais pelo caráter público da atividade desenvolvida por eles. Para isso, necessário lembrar-se do voto do Ministro Moreira Alves, no julgamento do Mandado de Segurança nº 22.643–9 SC, DJ de 04.12.98, onde se diz que esses Conselhos – o Federal e os Regionais – foram, portanto, criados por lei, tendo cada um deles personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira. Exercem eles a atividade de fiscalização de exercício profissional que, como decorre do disposto nos artigos 5º, XIII, 21, XXIV, é atividade tipicamente pública. Estão eles sujeitos à prestação de contas ao Tribunal de Contas da União por força do artigo 71, II, da Constituição Federal, sem esquecer que, à época da edição da Lei nº 9.649, de 27.05.98, estava em vigor a redação originária do artigo 70 da norma paratípica, que previa fiscalização financeira, contábil, orçamentária, operacional e patrimonial da União Federal e entidades da administração direta e indireta pelo Tribunal de Contas da União.
Esse dever dos Conselhos de Fiscalização de prestar contas ao Tribunal de Contas da União indica essa natureza autárquica, que se soma a outros deveres, como a submissão a regime jurídico próprio do servidor público federal, Lei nº 8.112, naquilo em que se exige o concurso público tal como foi entendido no julgamento do MS 21797–9, Pleno, 9.3.00, DJ de 18.05.01. Absurda se afigura a tese da delegação de poderes a entidade privada de atividade típica do estado, abrangendo atividade de poder de polícia, tributação, punição no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas. Esse o entendimento retirado da leitura da Ação Direta de Inconstitucionalidade, Relator Ministro Sydney Sanches, onde se julgou inconstitucionais o caput e os parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º, do artigo 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.98.
Destaque-se, nessa parte do pronunciamento emitido, a finalidade compulsória, já delineada por Ruy Barbosa Nogueira, em Parecer sobre Contribuições Sociais e Empresas Urbanas e Rurais, das contribuições sociais cobradas por essas autarquias corporativas, cujo objetivo é cobrir ou custear os encargos dos benefícios e serviços a serem efetivamente prestados aos respectivos filiados, e não a terceiros ou estranhos e não filiados. Isso porque as contribuições parafiscais pressupõem necessariamente uma contraprestação devida aos jurisdicionados ou usuários do organismo ou serviço particular beneficiário. Impõe-se, pois, o concurso público de provas, para preenchimento de cargos públicos nessas autarquias, na medida em que se vê atividade de poder de polícia, tributação, punição no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas.
Estão os servidores dessas autarquias, sujeitos ao regime da Lei nº 8.112/90, seguindo-se os ditames expostos no artigo 37, II, da Constituição Federal, que dita que a investidura nos respectivos cargos e empregos públicos, ressalvados os de direção e de confiança, estão condicionados à realização de concurso público.
É certo que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIN 3.026/DF, Relator Ministro Eros Grau[1] entendeu, por maioria, que em razão da Ordem dos Advogados do Brasil não integrar a Administração Pública, não se haveria de exigir a regra do concurso público. Há, por certo, um evidente tratamento distinto que foi dado aquela Corporação em relação aos demais conselhos federais, do que se entendeu naquele julgamento que se fez em ordem de cognição constitucional concentrada.
Registro, porém, na linha do decidido no MS 22.643-9 – SC, Relator Ministro Moreira Alves, que deve ser destacado que os Conselhos – Federal e os Regionais – foram criados por lei, tendo personalidade jurídica de direito público com autonomia administrativa e financeira. Submetem-se, pois, ao regime republicano do concurso público e da prestação de contas como todos os entes públicos.
III - POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA MATÉRIA ANALISADA
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 539.224 – CE, Relator Ministro Luiz Fux, considerando o caráter jurídico de autarquia dos conselhos de fiscalização profissional, que são criadas por lei e possuem personalidade jurídica de direito público, exercendo uma atividade tipicamente pública, qual seja, a fiscalização do exercício profissional, concluiu pela obrigatoriedade da aplicação a eles da regra prevista no artigo 37, II, da Constituição de 1988, quando da contratação de servidores.
O Supremo Tribunal Federal tem ainda o registro de decisões monocráticas que aqui cito: RE 611.947, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 6 de setembro de 2011; AI 791.759, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe de 2 de agosto de 2011, quando disse que, tendo em vista o disposto no artigo 37, II, da Constituição Federal, tem-se pela obrigatoriedade do respeito à regra do concurso público para a investidura em cargo ou emprego público.
A conclusão que se tem é de que, aos conselhos de fiscalização profissional em autarquias federais, estaria o ingresso de seus servidores obrigatoriamente adstrito ao disposto no artigo 37, I e II, da Constituição Federal, devendo a contratação ser precedida de aprovação em concurso público de provas e títulos.
Foi assim dado provimento ao recurso extraordinário ajuizado pelo Ministério Publico na ação civil pública historiada.
É certo que o Ministro Marco Aurélio, lembrou que não poderia ser dado um tratamento linear na matéria, uma vez que quanto à Ordem dos Advogados do Brasil, há uma autarquia corporativista
IV – A SITUAÇÃO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL PARA O CASO
No julgamento da ADI 3026, o Supremo Tribunal Federal deixou consignado:
- A Lei 8.906, artigo 79, § 1º, possibilitou aos ¨servidores¨ da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista, sendo a compensação para a escolha a indenização paga à época da aposentadoria;
- Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta;
- A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União, pois é serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro;
- A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como ¨autarquias especiais¨ para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ¨agências¨;
- Por não se consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada;
- A OAB possui finalidade institucional;
- É incabível a exigência de concurso público para a admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB.
Data vênia do entendimento firmado, em sede de controle constitucional concentrado, em cognição vinculante, lanço a posição lúcida do Ministro Joaquim Barbosa.
A Ordem dos Advogados do Brasil tem um regime de direito público, o que caracteriza a natureza de uma autarquia, pois ela assume ou exerce atividades, missões típicas de serviço público.
A Ordem dos Advogados do Brasil não é apenas uma entidade corporativa, mas não é só isso. Tem a instituição, à luz do artigo 44 da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994, a missão de defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.
O artigo 44 da Lei 8.906 prescreve que a Ordem dos Advogados do Brasil(OAB) é serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa.
Bem acentuou o Ministro Moreira Alves, no julgamento da ADI 1707-MC/MT, DJ de 16 de outubro de 1998, que a Ordem dos Advogados do Brasil, em face do disposto na Lei 8.906/94 é expressamente declarada como serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tendo por finalidade, dentre outros, defender a Constituição, a ordem jurídica, o Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida aplicação da Justiça. Por conclusão, da leitura da própria Lei, tem-se que a OAB é uma federação de pessoas jurídicas de direito público(autarquias) que têm atribuições que estão intimamente ligadas à prestação jurisdicional por parte do Estado.
Trago as conclusões do Ministro Gilmar Mendes, naquele julgamento, no sentido de que a Ordem dos Advogados do Brasil constitui um serviço público stricto sensu (Lei 8.906/1994, artigos 44, 45, § 5º), com atividades inegavelmente públicas, como já salientado.
A Ordem dos Advogados do Brasil exerce serviço público independente, envolvendo: a habilitação, o controle, a fiscalização e a aplicação de penalidades na área profissional da advocacia. Tal é um múnus público permanente, a que lhe foi determinado por Lei, do que se lê do artigo 2º, § 2º, da Lei 8.906/1994.
Assim exerce a OAB um serviço público que tem um caráter de autonomia com relação à estrutura hierárquica do Estado, como se lê do artigo 44, § 1º, da Lei 8.906/94.
A OAB, portanto, repita-se, exerce funções típicas dos poderes públicos, ou paraestatais.
Em sendo assim, o fato de estar tal pessoa submetida à prestação de serviço público, determina que deva adotar um regime próximo do direito público.
Daí, a necessidade de respeito pela OAB, a meu ver, às regras de acesso a empregos públicos, como se vê do artigo 37, I, e II, da Constituição. Ora, sabe-se que, em regra, o acesso a tais empregos se opera mediante concurso público, que deve ser público, pleonasticamente falando.
Bem disse o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento da ADI 3.026/DF, que o poder de policia delegado à OAB, corresponde a um serviço público de sede constitucional e legal, e que poderia ter sido, até mesmo, se entendesse a Constituição, diretamente atribuído a algum dos poderes constituídos.
Isso porque estamos diante de um serviço público delegado, que deve ser exercido sob nítido caráter que se imbui dentro dos princípios da isonomia(artigo 5, da CF), da impessoalidade, da publicidade, da eficiência, no caso da aplicação da regra constitucional do concurso público, que, a meu ver, repito, deveria se impor à OAB, como se lê do artigo 37, caput, e inciso II.
Lembro que as empresas públicas e as sociedades de economia mista, uma vez que exercem atividades públicas, devem respeitar a regra do concurso público para ingresso de pessoal em seus quadros. Isso porque estamos diante de um serviço público delegado que apresenta uma dimensão de ordem estatal.
Penso, data venia, que a matéria julgada na ADI citada ainda não está de todo composta. A uma, porque não se desconhece tese de que tais entendimentos de controle concentrado não estão sujeitos necessariamente ao instituto da coisa julgada[2]; a duas, porque entendo poder-se ajuizar um mandado de injunção, onde o Supremo Tribunal Federal venha a reconhecer omissão legislativa na matéria, ditando a necessidade de imposição de concurso público para acesso a cargos na OAB; a três, porque o Congresso Nacional pode editar Lei, dentro das linhas traçadas na Constituição, reconhecendo a necessidade de aplicação do princípio do concurso público, a teor do artigo 37, II, da Constituição, aos quadros funcionais da instituição para futuras contratações de empregados, cujas atividades não envolvam chefia, direção ou assessoramento, do que se vê do artigo 37, V, da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998.
Firmo, portanto, a convicção, aqui trazida, de que a Ordem dos Advogados do Brasil tem a necessidade de aplicar o princípio do concurso público, previsto no artigo 37, II, da Constituição Federal, para preenchimento de seus quadros funcionais, cujas atividades não envolvam chefia, direção ou assessoramento e, ainda, a necessidade de submeter suas contas ao Tribunal de Contas da União.
Notas
[1] Informativo STF n. 430.
[2] Observo que Michel Temer(Elementos de Direito Constitucional, 9ª edição, São Paulo, Malheiros, pág. 44, afirma que as ações de inconstitucionalidade não fazem coisa julgada. Aliás, o Ministro Gilmar Mendes(Controle da Constitucionalidade, aspectos jurídicos e políticos, São Paulo, Ed. Saraiva, 1990, pág.299), ao estudar as chamadas sentenças de rejeição da inconstitucionalidade, é claro ao concluir que a decisão confirmatória da validade não parece obstar à reapreciação da matéria do juízo de constitucionalidade, desde que se configurem significativas alterações quanto ao parâmetro de controle. É a linha adotada pelo Professor Jorge Miranda(Manual de direito constitucional, 2ª edição, Coimbra Editora, 1981, 2º volume, pág. 384), que recusa, de forma enfática, qualquer relevância as sentenças de rejeição de inconstitucionalidade.