Em 2018, no fortalecimento das datas, vislumbramos a ocorrência dos 30 anos de vigência da Constituição Federal de 1988, dos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU) (MARTINEZ, 2017), de 130 anos da abolição formal da escravatura (MARTINEZ; DEL ROIO, 2017) e dos 170 anos da produção do Manifesto do Partido Comunista (MARX & ENGELS, 1993). A coincidência é apenas aparente, porque se trata de um longo (secular) processo de luta política pelo direito; quer seja o direito de isonomia e de respeito ao trabalhador, quer seja o direito de emancipação ou fim da opressão sistêmica.
A Constituição Federal de 1988 é um legado democrático e humanista, como Constituição Cidadã, que permite vermos mais longe, porque ela própria, como Carta Política, subiu nos ombros de gigantes da história constitucional. Como Carta Política Programática, a CF/88 resguarda os direitos fundamentais individuais e sociais, como fundamento da afirmação do “animal político” plenamente socializado, em condições mínimas de fruição da Interação Social.
Pragmaticamente, nos 30 anos de sua promulgação, sofreu de ataques variados pelo realismo político (Grupos Hegemônicos de Poder) e pelo capital especulativo: nacional e internacional. Analisando separadamente, a Constituição Programática – como programa ético-evolutivo, motor do processo civilizatório – não pode ser inviabilizada pelas críticas pragmáticas, uma vez que, se os direitos não confluem adequadamente, isto não destaca os limites de sua principiologia. Definitivamente, não é porque a CF88 não é implementada – além de ser interpretada contra seu Espírito de Lei Emancipatória – que deve ser abandonada; ao contrário, devemos travar intensa luta pelo direito constitucional: Estado de Direito, República, democracia, cidadania, Justiça Social.
1. Inicial da Carta Política
Muitas construções teóricas podem/devem ser erigidas a fim de assegurar alguns pontos essenciais no entendimento da Carta Política; porém, para este trabalho, indicaremos somente a obra germinal aristotélica (ARISTÓTELES, 1991), sobre a qual as concepções posteriores debateram a formulação da ideia de Política (como Polis), e sob a qual se constituiu a própria instância de uma Constituição Federal como Carta Política.
Aristóteles analisou a política de forma racional e histórica: tudo em que há razão é melhor. Mas, exemplificando, é claro: deve-se subordinar a guerra à paz; o trabalho ao repouso; o necessário ou útil, ao honesto. Também é claro que o necessário deve estar subordinado ao honesto, ou seja, não há Estado de Necessidade que subverta a virtude e a honestidade. É como se dissesse: de que adianta viver sem honra alguma, indignamente? Seguindo este preceito de que o Estado também deve conhecer as virtudes, Aristóteles dizia que o legislador que não ensina seu povo a viver em paz deve ser criticado. Mas ainda mais precisa o Estado desse equilíbrio: “O Estado precisa de temperança, mas ainda mais de coragem e de paciência” (ARISTÓTELES, 1991, p. 58).
A educação, por sua vez, deveria acompanhar as formas de governo, tanto quanto os costumes interferem na Política: a Polis, que eleva a Emancipação do cidadão ao marco do que, hoje, denominaríamos de Dignidade Humana. Disso também decorre que a educação deveria ser única: “a educação deve ser feita em público”. O que corrobora a ideia de que a vida deve servir ao curso natural: a natureza procura a “exatidão das ações” e a “dignidade no repouso”.
A educação é voltada às virtudes e é capaz de celebrar essas virtudes — a primazia da educação não é a ferocidade, mas sim a honestidade. Vai nos dizer em outra metáfora: “Não será nem o lobo, nem algum outro animal feroz que vai expor-se ao perigo pela glória; isto só se vê num homem educado para a virtude” (ARISTÓTELES, 1991, p. 70). Do que certamente decorre que uma lição para a guerra também serve à vida: “Raramente se tenta atacar os que estão bem preparados para resistir” (ARISTÓTELES, 1991, p. 79). Ou seja, cabe-nos reconhecer o grau de necessidades envolvidas e ao governo suprir a todos do básico. Garantir que “a ninguém falte o pão” é parte da arte de governar (as necessidades do Estado não podem subjugar a sociedade).
2. Da Política ao realismo político
Ao contrário, a política do real (sob o capital disruptivo) é que impede a visualização de que “não se faz justiça com menos direitos”. Portanto, não é um problema constitucional (Carta Política = Polis), mas sim da política de troca de favores, do coronelismo, dos donos do capital especulativo reunido em torno de cinco grandes bancos. O problema da Constituição Federal não é de utopia não realizada, mas sim da distopia imposta desde a década de 1990 – salvo pequenos lapsos temporais.
Nosso intuito, neste texto, será indicar alguns dos aspectos essenciais destacados na CF/88, iniciando por uma breve apresentação histórica (ontologia do constitucionalismo moderno) que já recobre a conotação ou “pano de fundo” filosófico e epistemológico do Texto Constitucional na condição precípua de Carta Política.
Temos na geografia cartas políticas que indicam instrumentalizações propriamente políticas, no sentido de forças políticas e do(s) poder(es) envolto(s) em determinado espaço. Trata-se de uma visualização, como se fosse uma fotografia das relações espaço-temporais das instituições políticas e do poder (“cartografia política”), e que ilustra naquele cenário capturado pela imagem de um instantâneo político. O político é o Kybernets: o timoneiro da sociedade.A Constituição seria, então, um mapa político de orientação e de prescrição do Poder Político (Estado) num determinado território. Seu povo, a fim de assegurar o controle legítimo/legal do poder, insculpe regras para si e para o poder estabelecido. Esta via de mão dupla se chama, exatamente, Direito. Tecnicamente: “regra da bilateralidade da norma jurídica”.
A mesma regra serve para cima e para baixo na estrutura do poder. Ao empregarmos a Constituição no sentido de Carta Política – não exatamente como sinônimo – temos de ter em vista a perspectiva inicial e basilar de que assim estaremos acentuando a condição teleológica e emancipatória que só se vislumbra no desenrolar do processo civilizatório. Desse modo, ainda estão em curso outros mecanismos, a exemplo do aprofundamento do processo democrático – como a inclusão de populações e de culturas relegadas à órbita externa do poder – e a perfectibilidade que repousa na República.
De modo específico, a Constituição Federal de 1988 tem herança legal – como legitimidade inerente ao reconhecimento do direito (HONNETH, 2003) – derivada da Constituição Portuguesa (1976), saída da Revolução dos Cravos, e da Constituição Espanhola (1972): quando se deu início aos “pressupostos” do chamado Estado Democrático de Direito Social. Neste curso da história, atrelava-se constitucionalmente o socialismo à democracia (Miranda, 2000).
DINÂMICA HISTÓRICA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
É sabido que o conceito de Estado Democrático de Direito (como empregado usualmente no Brasil) deriva de uma (re)interpretação do Estado de Direito Democrático, de acordo com a formação original aposta na Constituição Portuguesa (1976) e depois na Constituição Espanhola (1978). Como se vê na Constituição Portuguesa:
Artigo 2.º
(Estado de direito democrático)
“A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (ortografia original).
O Estado Democrático de Direito é resultado de longas e profundas transformações históricas e políticas, ao mesmo tempo em que deveria produzir, cotidianamente, uma cultura jurídica baseada na mediação e na conciliação dos conflitos – especialmente os conflitos sociais, quando se propõe a realização da Justiça Social.
No Brasil, historicamente falando, nunca houve momentos fortes ou significativos de ficção dos conceitos-chave deste modelo de Estado Ilustrado, cabendo ressaltar que a expressão Estado Iluminista foi empregada pejorativamente para se referir ao Estado de Polícia, antecessor direto do Estado de Direito: o Estado que literalmente colonizava a vida privada (CANOTILHO, s/d, p. 91). Nos últimos 15 anos também não inauguramos centros de imanência de políticas sociais e democráticas substantivas, como práticas inerentes à cultura e à sociedade brasileira. Tampouco fomos capazes de refazer ou remontar os necessários valores e fundamentos transcendentes ao próprio modelo do Estado: republicanismo, direitos, liberdade, garantias, justiça real.
Neste curso, o Estado Democrático de Direito (EDD) deveria estar fortemente marcado pelo sentido e pelo emprego do que se chama de ethos público: isto é óbvio, em regimes de governo realmente democráticos e republicanos, tanto na observância real do Estado de Direito quanto na prática política derivada da verificação das regras mínimas do Estado Democrático. Por isso, entendemos que o ethos público cria vínculos sociais efetivos e, só assim, portanto, haverá significado material no uso da expressão “Estado Democrático de Direito Social”.
Como se vê, só haverá alguma realidade na apreciação do conceito se a finalidade em destaque for a própria sociedade e não o Estado no sentido formal e burocrático, tão presente na visão monista do direito: como um fim em si mesmo e regulador de todo o Direito. Não há Estado Democrático de Direito sem a vivência constante e natural da República, da mesma forma que o Estado Democrático de Direito Social tem uma finalidade social estampada em sua origem: a sociedade é sua marca registrada e não a Razão de Estado.
Nas bases históricas do Estado Democrático de Direito, há uma força dialética que, acredita-se, possa transformá-lo novamente – agora, de conceito de Estado, o mais bem elaborado de todos os tempos, em práxis política popular. Isto é claro, se não se faz aqui a crítica marxista de que no futuro não haverá Estado; mas, vejamos que força motriz é essa.
Realmente, a história é feita de nexos e de convergências. No sentido que adotamos no texto, podemos dar como exemplo uma confluência que veio se tecendo ao longo de todo o século XX. Porém, é bom saber que esta ampla convergência não implica na ausência de divergências, às vezes, tão grandes, que somos levados a visualizar somente o antagonismo e as rupturas – não é o caso também de irmos à frente nesta linha de abordagem.
No nosso recorte histórico e secular, partimos do início do século XX e de suas três amplas e profundas revoluções (duas de ordem política e uma de natureza jurídica), e que fundariam o posterior Estado Social. A Revolução Mexicana (1910-20) e depois a Revolução Russa (1917) alteraram todo o perfil histórico do antigo Estado Liberal – fragmentando os direitos individuais e por isso sendo capaz de cultivar uma vasta gama de direitos sociais e trabalhistas.De todo modo, novos agentes sociais e políticos puseram-se em ação, na Europa do leste e entre os países subdesenvolvidos.
Na mesma entoada construção constitucional, a Constituição de Weimar (Alemanha – 1919) fez consagrar, no âmbito do direito político-constitucional, as conquistas sociais e trabalhistas de cunho popular, ironicamente, o mesmo leque político-jurídico que alimentou o populismo em toda a América do Sul. De certa forma, as forças sociais que vinham latentes desde os marcos revolucionários de 1848 – e se Weimar não foi uma revolução proletária (no modelo marxista) –, foi sem dúvida uma revolução jurídica que afetou os proletários de todo o mundo.
Curiosamente, no entanto, esse mesmo processo histórico, político e jurídico, que forneceu bases ao Estado Social (inicialmente de base proletária e depois enviesado pelo liberalismo-paternalista do Welfare State), também consubstanciam o que foi chamado desde então por Estado Socialista (mais claramente depois de 1917, na Rússia). Assim, na mesma matriz ou período histórico, temos o empuxo para dois modelos de Estado aparentemente divergentes: o Estado Social, apropriado pela ação conservadora burguesa e o Estado Socialista que redundou em falência múltipla já nos anos 1980.
Mas, esta simbiose histórica, que não se desvencilhou da diástole ideológica, ainda nos traria mais uma surpresa para o momento presente. Pois, com a derrocada do Estado Socialista (a começar pela própria ex-URSS), insurgiram-se novas forças político-ideológicas na mesma velha Europa. A partir de 1976 em Portugal e 1978, na Espanha, o vetor socialista vinha à tona novamente mas em moldes mais populares – daí seguir-se, igualmente, a nomenclatura do Estado Popular - que não se confunde com o Estado Populista (MARTINEZ, 2013).
Essa instigante participação popular em prol da constituição de um novo cenário político foi o start para a nova Constituição desses mesmos Estados (Portugal e Espanha), e, com isso, têm-se o início da realidade jurídica do Estado Democrático de Direito (em Portugal, Estado de Direito Democrático). No entanto, mais curioso ainda é relembrar que o Estado Democrático de Direito tem como principal finalidade, justamente, as principais conquistas do socialismo e, por isso, objetiva exatamente alcançar o socialismo. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no entanto, nos adverte que o constituinte brasileiro jamais colocou na pauta de discussões esta questão fundamental de que o Estado Democrático de Direito é um caminho para o socialismo. Já na Espanha figuraria como socialismo na democracia (FERREIRA FILHO, 2000, p.18).
A positivação constitucional portuguesa, entretanto, sempre foi expressa e direta, não deixando espaço para outras interpretações constitucionais que não fossem também objetivas e claras. Essa é a tônica que observamos, por exemplo, em Jorge Miranda, ao esmiuçar o sentido objetivo dado ao socialismo pela Constituição Portuguesa. Neste sentido, devemos procurar por uma interpretação técnica-constitucional do que realmente é constituído esse socialismo proposto, especialmente em virtude dos dispositivos constitucionais portugueses. Sobre a Constituição socialista portuguesa nos dirá o autor que: A Constituição liga o socialismo à “construção duma economia socialista, através da transformação das relações de produção e de acumulação capitalistas” (como diz o art. 91º). E o socialismo não aparece apenas em termos programáticos. Aparece também em termos preceptivos, nomeadamente no que toca às nacionalizações de empresas (não de setores) efetuadas após o 25 de Abril (art, 83º) (MIRANDA, 2000, p. 358).
É evidente, portanto, que, para o constituinte português, o socialismo atrelava-se à transformação das relações de produção. Na análise seguinte, supriremos os indicativos dos artigos constitucionais porque estas teriam um valor muito específico e nos interessa mais a ideia e os conceitos em si. De qualquer forma, resta comprovada a intenção original pela via socialista, como vemos ainda na análise de Jorge Miranda: Com efeito, a Constituição: a) Distingue entre socialização dos meios de produção e apropriação coletiva, sendo certo que “socialização” surge na Constituição em dois sentidos — como sujeição ao enquadramento da Constituição, da lei e do Plano, na perspectiva do interesse coletivo e do desenvolvimento das relações de produção socialistas (...) Incumbe o Estado de assegurar a “equilibrada concorrência entre as empresas” (...) e com a possibilidade de intervenção na gestão das empresas privadas (...) por outro lado, aponta para uma economia de mercado controlado (...) Dá preferência às formas autogestionárias (...) quer sobre a gestão privada (...) quer sobre a gestão pública (MIRANDA, 2000, p. 359).
O que procuramos analisar aqui é realmente o perfil técnico-constitucional do Estado proposto pela Constituição socialista portuguesa, tendo-se em conta a consecução do socialismo que se requer para o presente-futuro, e não aquele restrito às indicações do passado, sobretudo o do modelo soviético (este um tema a ser desenvolvido em trabalho posterior e distinto). Sob este prisma, o que o constituinte português objetivava era, enfim, construir as bases jurídicas de um socialismo democrático apoiado nas conquistas históricas e populares experimentadas lá mesmo em Portugal, bem como em outros países europeus.
Dados que se reforçam, novamente, com Jorge Miranda, ao destacar que o caminho do socialismo se faria em conexão com:
a) O desenvolvimento pacífico do processo político-social previsto, dito, umas vezes, “processo revolucionário” (...) outras vezes “transição pacífica e pluralista”;
b) O gradualismo, que reflete a necessidade de tomar em conta as condições objetivas, internas e externas, de Portugal, adequando as formas de concretização dos objetivos constitucionais às “características do presente período histórico” (...);
c) O caráter não autoritário e nem sequer determinante (ou exclusivamente determinante) da intervenção do Estado no processo de transição — o Estado “abre caminho”, “assegura a transição”, e não propriamente o socialismo: “cria condições”, não impõe soluções prefixadas;
d) O apelo à participação dos sujeitos econômicos, especialmente dos trabalhadores;
e) A atribuição à Assembleia da República das principais decisões sobre matérias econômicas, através da lei (...) (MIRANDA, 2000, p. 360).
Note-se que, realmente, não há nenhum dispositivo tão expressivo na Constituição Brasileira quanto a qualquer aspiração socialista mais concreta, palpável. A não ser quando o constituinte procurou regular a Justiça Social, nenhum outro dispositivo seria limitativo do alcance do capital, e mesmo assim não se trata de limitação expressa, direta e clara – figurando muito mais como objetivo, meta, do que princípio (conforme arts. 3º, I, 5º, XXIII e 170, caput, III, 182, 184, 186 e 193 da CF). Mas, em que base jurídica assentou-se o modelo no Brasil? Sobre qual estrutura formal estão fixadas as chamadas garantias institucionais do Estado Democrático de Direito?
Nessa linha, buscando-se esse sentido mais técnico, passemos aos princípios constitucionais do modelo constitucional interposto no Brasil, a partir de 1985, isto é, vejamos esta aliança entre direito e política na própria Constituição Federal. De acordo com José Afonso da Silva, os princípios constitucionais em que se assenta o Estado Democrático de Direito, no Brasil, podem ser assim resumidos: a) princípio da constitucionalidade, que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, como a garantia de atuação livre de regras da jurisdição constitucional; b) princípio democrático que, nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º); c) sistema de direitos fundamentais que compreende os individuais, coletivos, sociais e culturais (títs. II, VII e VIII); d) princípio da justiça social referido no art. 170, caput, e no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social (...); e) princípio da igualdade (art 5º, caput, e I); f) princípio da divisão de poderes (art. 2º) e da independência do juiz (art. 95); g) princípio da legalidade (art. 5º, II); h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII) (SILVA, 1991, p. 108).
É importante ressaltar que a Constituição, enquanto um documento rígido, busca a estabilidade na unidade, e não a petrificação do direito posto; visa a proteger a consciência da Carta Política de ataques antidemocráticos e totalitários, pois, como alerta José Afonso da Silva, diferentemente da Constituição portuguesa, a nossa não contemplou diretamente o caminho para o socialismo (2003, p. 108), mantendo-se como um diploma mais “aberto” e que necessidade de ampla participação social.
Teremos a oportunidade de analisar daqui para frente o fato de que o modelo nunca enfrentou uma crise conceitual, teórica, nem no Brasil, nem em Portugal – até 2016, sob o Golpe Institucional que protagonizou uma Ditadura Inconstitucional (Martinez, 2017). Pois, de maneira global, trata-se isto sim de uma profunda crise econômica, social e política que assola principalmente os países pobres ou em desenvolvimento.
Então, para concluir esse desfecho, e retomando o elo com o socialismo do passado (não presente em Portugal), podemos dizer que o Estado Democrático de Direito nasceu do fracasso do Socialismo Realmente Existente-SOREX (que vigia à época), que se aprofundou como conceito político-constitucional, mas que foi de inegável ineficácia e incapacidade na esfera econômica e social. E mais, é dessa desorganização social (relativização das conquistas trabalhistas) e instabilidade econômica (miséria crônica que detonou qualquer chance de Justiça Social) que renasceram (outra vez, como Fênix) as ideologias promissoras do Estado Socialista do porvir. E outra vez o processo socialista se principia no México, em Chiapas (nos anos 1990), para só depois alcançar a Europa: na feição de protesto de cada militante e na organização de cada movimento popular e social pela antiglobalização.
Enfim, se a lógica não traiu a análise, essa é a força dialética que levou à ação e também redimensionou o Estado Socialista, a partir da aurora do século XX. Portanto, uma conclusão possível é de que o movimento socialista do futuro, mas iniciado ontem, é o resultado da concreção do Estado Democrático de Direito Social atual: a realidade do amanhã não abdica da utopia de hoje. O Estado Socialista precedeu o Estado Democrático de Direito Social e o seguirá, como desdobramento possível – ao menos, esta é a intenção original do modelo de Estado português.
Para outros autores, a dinâmica ou os marcos históricos que conformam o Estado Democrático de Direito no pós-guerra, no entanto, podem ser outras, como salienta Jorge Miranda (1997, p. 90-91):
— As transformações do Estado num sentido democrático, intervencionista, social, bem contraposto ao laissez faire liberal;
— O aparecimento e, depois, o desaparecimento de regimes autoritários e totalitários de diversas inspirações;
— A emancipação dos povos coloniais, com a distribuição agora de toda a Humanidade por Estados – por Estados moldados pelo tipo europeu, embora com sistemas político-constitucionais bem diferentes;
— A organização da comunidade internacional e a proteção internacional dos direitos do homem (grifo nosso).
No entanto, mesmo que Jorge Miranda ressalte outros aspectos dessa profunda transformação porque passou o Estado ao longo do século XX – como a luta pela emancipação dos povos coloniais – na essência, não há grandes divergências. Pois, Miranda também ressalta a distância em relação ao Estado Liberal, do vale tudo, além da resposta dada aos regimes autoritários e a prevalência dos direitos humanos.