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A violência obstétrica como afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia

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09/08/2020 às 13:40
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É necessário reavaliar o modelo tecnocrata da medicina obstétrica, que muitas vezes trata a mulher como objeto de um procedimento e despreza sua subjetividade e a autodeterminação.

O Princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia

A dignidade da pessoa humana é um dos princípios basilares da Constituição Federal brasileira, sendo a dignidade considerada valor constitucional supremo[1] e, por isso, sendo utilizada como diretriz das normas e do sistema de direitos fundamentais. A dignidade propriamente dita não é um direito, mas sim um valor intrínseco a todo ser humano, independente de sua idade, de sexo, de condição social ou de quaisquer outros fatores. Assim sendo, não há que se pensar em pessoa com mais dignidade que outra, pois todos a possuem como uma mesma qualidade inerente. Esse valor intrínseco deve ser respeitado pela comunidade que cerca o indivíduo e o Estado tem papel decisivo em sua defesa, pois ele deve trabalhar para a sua promoção e cuidado, fazendo-o através do resguardo dos direitos e dos deveres que garantam o seu pleno exercício, como dispõe a Constituição, que, em seu art. 1, inciso III, traz:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III – a dignidade da pessoa humana;

Para Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa humana apresenta três conteúdos essenciais: o valor intrínseco da pessoa humana, a autonomia da vontade e o valor social da pessoa humana.

O valor intrínseco representa os planos filosófico e jurídico da dignidade e “Trata-se da afirmação de sua posição especial no mundo, que a distingue dos outros seres vivos e das coisas. Um valor que não tem preço.” (BARROSO, 2012, p. 21). Esse valor é objetivo, sendo uma qualidade inerente a todo ser humano, não podendo ser retirado ou perdido e nem mesmo condicionado a vontade de outrem, além disso, ele existe independente da conduta individual, da razão ou da capacidade mental de seu titular. O valor intrínseco confere o caráter inviolável da dignidade humana e resulta no surgimento de diversos direitos fundamentais, entre os quais o direito à vida, o direito à igualdade, o direito à integridade física e o direito à integridade moral ou psíquica.

O segundo conteúdo ligado à dignidade é a autonomia da vontade, sendo esta seu elemento ético e também jurídico. A autonomia da vontade está atrelada à capacidade de autodeterminação, ou seja, à capacidade de o indivíduo poder decidir livremente sobre seus valores morais e escolhas individuais (religião, ideologia, vida afetiva, trabalho, etc.) sem que haja imposições externas inconvenientes afetando sua autonomia, sendo para isso, essencial para a autodeterminação que haja acesso à informação e ao mínimo existencial[2]. A autonomia, sendo parte integrante da dignidade, possui uma dimensão privada e outra pública. A primeira, ligada ao direitos individuais, está expressa na liberdade de escolha individual e no direito a autodeterminação. A segunda dimensão trata da autonomia de caráter público, que se manifesta através da liberdade em participar de processos democráticos, de organização social e debates públicos.

Como terceiro conteúdo da dignidade, temos o valor social ou valor comunitário da pessoa humana, que representa o indivíduo em relação ao grupo social do qual é membro e com os quais compartilha valores e crenças e que, ao mesmo tempo, é limitado em sua liberdade individual por esses mesmos valores e crenças compartilhados. Assim, o valor social não está ligado à proteção das escolhas individuais e sim à limitação das mesmas em prol do grupo social no qual o indivíduo está inserido. Desta feita, o valor comunitário está relacionado à proteção de direitos de terceiros, de valores sociais e, inclusive, à proteção do indivíduo contra si próprio. Esse terceiro conteúdo da dignidade deve ser observado com um cuidado especial, pois se não devidamente balanceado, pode resultar em abusos por parte do Estado e da comunidade como um todo, podendo o Estado usá-lo para enfraquecer direitos fundamentais e justificar políticas paternalistas e a comunidade de maneira a pressionar moralmente o individuo, resultando em ações tirânicas por parte da maioria. Para que isso seja evitado, a qualquer imposição coercitiva de valores sociais em prol do valor social, deve ser agregada uma fundamentação consistente, que deverá levar em conta a existência de direitos fundamentais, a força do consenso social sobre o tema e a existência de um risco direto ao direito de outras pessoas.

Analisando-se a violência obstétrica sob a perspectiva dos conteúdos essenciais da dignidade humana apresentados por Barroso, pode-se inferir que todos são, em algum ponto, violados.

Pelos relatos anteriores, o valor intrínseco da dignidade da pessoa humana, que está relacionado a direitos fundamentais como os direitos à vida, à igualdade, às integridades físicas, moral e psíquica, é violado quando do abuso obstétrico. Como exemplo dessa violação direta, pode ser citar os procedimentos de caráter invasivo realizados sem indicação devida - caracterizadores da violência física - que podem resultar em graves problemas de saúde ou mesmo óbito, o que atinge diretamente os direitos à vida e à integridade física. Nos casos em que ocorrem as violência psicológica, sexual e institucional, os direitos fundamentais às integridades moral e psíquica e o direito à igualdade são atingidos, vide o tratamento desigual, muitas vezes valorado por questões econômicas, sexuais, de cor de pele ou educacional das gestantes.

O manual de prática obstétrica do CREMESP discorre sobre o princípio da autonomia pontuando que ele:

[...] requer que os indivíduos capacitados de deliberarem sobre suas escolhas pessoais devam ser tratados com respeito pela sua capacidade de decisão. As pessoas têm o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida. Quaisquer atos médicos devem ser autorizados pelo paciente.

A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo), por intermédio do seu Comitê para Assuntos Éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher, divulga, desde 1994, em um dos seus marcos de referência ética para os cuidados ginecológicos e obstétricos: o princípio da autonomia enfatiza o importante papel que a mulher deve adotar na tomada de decisões com respeito aos cuidados de sua saúde. Os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, solicitando expressamente sua escolha e respeitando suas opiniões. (CREMESP, 2011, p. 8).

No que concerne à autonomia, a mesma envolve a capacidade de autodeterminação, de acordo com a qual o indivíduo deve ter o direito de decidir livremente sobre suas escolhas. Para uma autodeterminação plena, devem ser observados dois pressupostos: o primeiro relacionado ao acesso à informação, para que a tomada de decisão seja consciente e o segundo, está correlacionado ao acesso do mínimo existencial. Na ocorrência de violência obstétrica, da mulher é retirado o direito a isso, já que muitas vezes lhes são negadas informações sobre os procedimentos aos quais são submetidas e, mesmo quando se negam a fazê-lo, são, direta ou indiretamente, forçadas a se submeter, resultando na tomada de sua capacidade de decidir sobre seu corpo e sua sexualidade. Como exemplo, pode-se citar a imposição de rotinas como a obrigatoriedade da posição litotômica para o parto, pois é mais conveniente para o médico, mas que é desaconselhada e desconfortável para a mulher. Pode-se ainda citar a preferência dos médicos pelas cesárias eletivas que, sem deixar às pacientes escolha, gerenciam todo o seu parto, castrando seus direitos reprodutivos e sua autonomia individual.

“Sentindo dores desde ás 6 da manhã, meu médico me diz ás 15h da tarde de sábado, que o ‘termômetro para parto normal’ dele estava quebrado e por parto normal o bebê não nasceria antes da meia noite. Quando entrei na sala de cirurgia, uma enfermeira fez o toque e viu que tinha 9 cm de dilatação. Se esperassem uma ou duas horas, eu teria condição de ter o parto normal como planejei nos 9 meses anteriores. Porém, a equipe já estava toda montada para a cirurgia e foi feita uma cesárea sem me dar outra opção.” (Luana Amorim, atendida na Maternidade Lilia Neves através de plano de saúde Campos dos Goytacazes-RJ) (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 120).

Relacionando o terceiro conteúdo da dignidade com o abuso obstétrico, pode-se dizer que o valor social da pessoa, que se traduz na relação do indivíduo com a comunidade através de valores compartilhados pelos membros desta, agride a dignidade quando esses valores são utilizados de maneira distorcida, de modo a justificar ações que vão de encontro à decisão individual da mulher, com a desculpa de que são para protegê-la ou ajudá-la, mas que na realidade relacionam-se a interesses de terceiros. Exemplos que podem ser citados são a indicação da cesárea eletiva sem que o médico informe todos os riscos que a acompanham esse tipo de parto e também o uso de medicação indutora de contrações, o “sorinho”, com oxitocina sintética.

Para Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana é entendida quando da descaracterização ou desconsideração da pessoa enquanto sujeito de direitos, pois para o autor a dignidade é uma:

[...] qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2007, p. 23).

Assim, a dignidade da pessoa humana se perfaz como base dos direitos humanos e base fundamental do nosso ordenamento jurídico, de maneira que infundiu a concepção dos direitos fundamentais obrigatórios, como o direito à saúde, o direito à vida, o direito a uma integridade física e psíquica, os quais constam no texto constitucional e aos quais o Estado deve se ater em sua promoção e proteção.

Sendo a dignidade diretamente relacionada à autonomia existencial de todo indivíduo e portanto, conferidora de proteção ao titular dos direitos a ela associados, seus valores devem ser resguardados e o Estado tem papel fundamental nisso. Desta feita, em busca de proteger o valor da dignidade da pessoa humana, ao Estado cabe alguns deveres, quais sejam: o dever de respeito, o dever de proteção e o dever de promoção da dignidade humana.

O dever de respeito prega que o ser humano deve ser tratado como um fim em si mesmo e não como mero instrumento para se atingir determinados objetivos, assim, ele é claramente contrariado pelo modelo tecnocrata utilizado hoje na medicina obstétrica, pois este encara a mulher como um elemento pelo qual se realiza um objetivo, sendo o bebê o objetivo e a mulher, um instrumento para este fim. Esse modelo abre margem para que o abuso obstétrico ocorra e a mulher tenha a sua dignidade violada através intervenções abusivas e de tratamentos humilhantes que a “reificam”, retirando da mesma sua autonomia como indivíduo e ferindo sua dignidade.

Ingo Sarlet trata, recorrendo aos discursos dos filósofos norte americano Ronald Myles Dworkin e do alemão Immanuel Kant, sobre essa temática quando discorre sobre a instrumentalização do indivíduo, que ocorre quando o mesmo é encarado como um meio para se atingir um determinado fim, para ele:

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[...] Dworkin, ao tratar do conteúdo da dignidade da pessoa humana, acaba reportando-se direta e expressamente à doutrina de Kant, ao relembrar que o ser humano não poderá jamais ser tratado como objeto, isto é, como mero instrumento para realização dos fins alheios, destacando, todavia, que tal postulado não exige que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim que as pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar a importância distintiva de suas próprias vidas. Neste contexto, vale registrar, ainda, que mesmo Kant nunca afirmou que o homem, num certo sentido, não possa ser “instrumentalizado” de tal sorte que venha a servir, espontaneamente e sem que com isto venha a ser degradado na sua condição humana, à realização de fins de terceiros, como ocorre, de certo modo, com todo aquele que presta um serviço a outro. Com efeito, Kant refere expressamente que o homem constitui um fim em si mesmo e não pode servir “simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”. Ainda nesta perspectiva, já se apontou — com razão, assim o parece —para o fato de que o desempenho das funções sociais em geral encontra-se vinculado a uma recíproca sujeição, de tal sorte que a dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro. (SARLET, 2007, p. 22).

Assim, a “instrumentalização” da mulher ocorre, nos casos de abuso obstétrico, quando ela é tratada com um meio ou objeto para um determinado fim, não se levando em conta sua autonomia e poder de decisão. Entretanto, a instrumentalização do indivíduo não é de todo vedada, pois nos casos em que a mulher opta espontaneamente por participar desse processo, sem que isso a leve a uma condição de degradação de sua dignidade, a instrumentalização, desde que não a reifique, é encarada como um serviço prestado a outrem. Portanto, entende-se que a violação da dignidade está relacionada ao objetivo da conduta que diminui ou agride a individualidade da mulher, subjugando-a de maneira intencional. A instrumentalização como caracterizadora da violência obstétrica ocorre em situações em que não acontece o consentimento ou, ele existindo, a conduta realizada pela equipe médica reifica a mulher, a encarando como um meio para alcançar determinada finalidade, finalidade essa sendo o nascimento de um outro indivíduo ou mesmo a vontade de terceiros.

Aqui, pode-se correlacionar às inúmeras cirurgias cesáreas eletivas realizadas. Apesar dos muitos estudos comprovando seus riscos, boa parcela dos obstetras insiste ainda em realizar cesáreas sem qualquer indicação para as mesmas, desconsiderando a vontade de suas pacientes de realizar um parto normal. O que se percebe é que alguns médicos utilizam o seu conhecimento para convencer a paciente, leiga, de que a cesárea é a mais benéfica e sem riscos para ela, quando, na realidade, esta opção poder estar atendendo apenas a seus interesses pessoais, o que reifica a mulher, como se observa nos seguintes relatos:

“Meu médico disse que eu poderia sofrer mais no parto normal. Como eu tinha medo de ficar sentindo dor, ele conseguiu me convencer a fazer a cesárea.” (Patrícia Reis França, em entrevista para a Folha de São Paulo do dia 20 de novembro de 2011) (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 120).

"Meu obstetra, que era meu médico há 9 anos, me disse que meu bebê não nasceria de parto normal porque meu colo de útero estava ainda grosso e ela não estava encaixada com 39 semanas de gestação. Marcou a cesárea para dali a alguns dias. Procurei outro profissional e tive meu parto normal com 41 semanas." (Eleonora Moraes, atendida através de plano de saúde em Ribeirão Preto-SP) (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 120).

Portanto, ao Estado cabe o dever de proporcionar a mulher, durante sua gestação e parto, o direito de exercer a sua autonomia e o respeito à sua dignidade, protegendo sua escolhas resultantes de sua autodeterminação como indivíduo e que elas sejam acatadas, sempre que as condições de saúde forem favoráveis, ao que ela escolheu para si.

Já o dever de proteção obriga ao Estado que, por meio de ações positivas, coíba atos que possam violar a dignidade. Essas ações positivas se manifestam por meio do estabelecimento de normas que criminalizam as condutas prejudiciais. Nos casos de violência obstétrica, que atentam diretamente contra a dignidade, o Estado não tem exercido seu papel de dever de proteção como deveria. Tome-se como exemplo se tem a Lei do acompanhante, que é constantemente desrespeitada, sendo a ausência de punição para quem não a cumpre um dos maiores motivos para isso. Além disso, o país ainda não seguiu os exemplos de outros países da América Latina, como a Argentina e a Venezuela, que conceituaram, tipificaram e preveem sanções para quem comete o abuso obstétrico. No Brasil, o tema ainda é tratado através de leis, portarias e diretrizes que trazem consigo, no máximo, medidas com sanções de caráter administrativo.

 No que tange ao respeito do dever de promoção da dignidade, este é relacionado à igualdade material, de modo que, ao Estado cabe desenvolver medidas que possibilitem o acesso a bens e serviços indispensáveis a uma vida digna, assim sendo, é de sua responsabilidade fornecer serviços de caráter material, como saúde, educação, lazer, trabalho, previdência, e jurídico, como assistência judiciária, segurança pública, etc. a fim de proporcionar o mínimo necessário para que se tenha uma vivência digna. Aqui novamente o Estado falha, pois muitos são os casos de gestantes que realizam um verdadeiro calvário em busca de maternidade que possuam vagas para acolhê-las:

A peregrinação em busca de vaga é uma das principais causas de mortalidade materna. A afixação de cartazes de “Não há vagas” estimulam a peregrinação, omitindo a instituição e os profissionais do trabalho de encaminhar a gestante para um serviço que tenha vaga disponível para atendê-la [...].” (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 188).

Em outros casos, os hospitais apresentam deficiências estruturais, aparelhos quebrados, falta de material cirúrgico, falta de medicação ou mesmo não apresenta um número de funcionários necessários à demanda, sendo essa deficiência constatada em áreas que atendem além da saúde da mulher.

A dignidade da pessoa humana como valor intrínseco a todo ser humano e a autonomia, devem ser resguardados e respeitados tanto pelo Estado, como pelos indivíduos que compõe um estado democrático, pois formam a base constitucional dos direitos fundamentais, o que fomenta uma vivência e convivência dignas em sociedade, trazendo bem-estar e satisfação aos que dele fazem parte.

Os princípios da Igualdade, da Equidade e da Legalidade

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (CF, 1988).

A Constituição Federal de 1988 diz que todos tem o direito de receberem um mesmo tratamento, devendo ser proibidas quaisquer tipos de discriminações ou diferenciações arbitrárias sem uma justificativa razoável, salvo nos casos em que a própria lei permite tal diferenciação.

No caso do tratamento entre homens e mulheres, a máxima de que “homens e mulheres são iguais perante a lei” deve ser interpretado no sentido de atenuar os desníveis sociais aos quais a mulher é submetida. O Brasil é um país no qual o machismo, bem como o patriarcalismo, ainda são muito presentes, sendo assim, mulheres estão expostas a diversos tipos de violências pelo simples fato de serem mulheres, nesse sentido, a Constituição permite que a legislação infraconstitucional atue de forma a coibir ou diminuir essas diferenças, para com isso, também resguardá-las. Como exemplo dessas tentativas podemos citar a criação da Lei nº 11.340 de 2006, mais conhecida com Lei Maria da Penha, que em seu texto, traz mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. À violência realizada contra a mulher por causa do seu sexo dá se o nome de Violência de gênero.

Desta forma, se considerarmos que o campo da maternidade é por excelência onde se exercita não só a função biológica do corpo feminino, mas uma função social do papel conferido à mulher regulado por uma construção simbólica, toda e qualquer violência neste campo é fundamentalmente uma violência de gênero. (AGUIAR, 2010, p. 24).

A violência obstétrica é uma das muitas manifestações da violência de gênero, de maneira que “Como outras formas de violência contra a mulher, a violência obstétrica é fortemente condicionada por preconceitos de gênero (sexismo).” (YUKIKO et al., 2014, p. 11). Essa violência possui um caráter institucional, no qual se evidencia pela relação hierárquica entre vítima e agressor, de modo que a mulher, vista como um ser inferior, torna-se objeto de um controle realizado através da descriminação e maus-tratos. Para Aguiar:

Estes maus tratos vividos pelas pacientes, na maioria das vezes, segundo alguns autores, encontram-se relacionados a práticas discriminatórias por parte dos profissionais, quanto a gênero, entrelaçados com discriminação de classe social e etnia, subjacentes à permanência de uma ideologia que naturaliza a condição social de reprodutora da mulher como seu destino biológico, e marca uma inferioridade física e moral da mulher que permite que seu corpo e sua sexualidade sejam objetos de controle da sociedade através da prática médica. (AGUIAR, 2010, p. 15).

O princípio da igualdade também não é respeitado no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, pois, devido à sociedade patriarcal, o exercício da sexualidade feminina é criticado, de forma que transparece na maneira como são tratadas as gestantes, inúmeras vezes sendo assediadas, subjugadas e humilhadas, em atos que chegam a transparecer até mesmo o sadismo.

“Vou dar logo no cu!” (Fala de um médico plantonista em resposta a um pedido realizado no meio da noite para prescrição de medicação para dor na cicatriz da episiotomia. Prescreveu um anti-inflamatório via retal. Maternidade Pró-Matre, Vitória-ES) (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 137).

“Na manhã seguinte do parto o médico, passou na porta da enfermaria e gritou: ‘Todo mundo tira a calcinha e deita na cama! Quem não estiver pronta quando eu passar vai ficar sem prescrição!’. A mãe da cama do lado me disse que já tinha sido examinada por ele e que ele era um grosso, que fazia toque em todo mundo e como era dolorido. Fiquei com medo e me escondi no banheiro. E fiquei sem prescrição de remédio pra dor.” (P. atendida na ala do serviço público da Maternidade Pró-Matre de Vitória-ES) (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 137).

O princípio da equidade determina que seja dado um tratamento igual aos que se encontram numa mesma situação e que seja dado um tratamento desigual aos que são desiguais, porém na medida de suas desigualdades. Entretanto, na prática o que se percebe é que fatores sociais, culturais, econômicos, políticos e étnicos são levados em conta no tratamento, porém não da forma que o principio prega, pois os mais necessitados são os que mais recebem tratamento muito aquém do mínimo de dignidade, visto que as mulheres pobres, negras e analfabetas são as que mais sofrem com o abuso obstétrico.

Esse tipo de tratamento destinado às parturientes que são vítimas de violência obstétrica vai fortemente de encontro ao que prega a equidade, já que o tratamento destinado, nesses casos, é baseado a partir de juízos de valores dos membros da equipe de atendimento e não no que seria moralmente adequado a cada situação. Nas pesquisas de campo de Hotimsky, ela constatou que existe uma

[...] classificação da clientela pelos profissionais de saúde a partir de determinados juízos de valor e há frequente intervenção desses valores na ordem de prioridade do atendimento, do diagnóstico, do tratamento e/ou da orientação final que recebem.” (HOTIMSKY, 2008, p. 229).

O tratamento justo, com igual distribuição e acesso a bens, tratamentos, instalações e cuidados é vinculado, pelos profissionais, àqueles a quem eles atendem, de sorte que essa distribuição é definida por valores e preconceitos sociais, que vão contra, inclusive, aos princípios da dignidade humana.

“Ligaram do Hospital Dório Silva pro Conselho Tutelar para denunciar a parturiente, pois ela se declarou lésbica.” (F. funcionária do hospital Dório Silva, na Serra-ES 136) (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 135).

“Muitas pacientes são migrantes, têm sotaque do Nordeste. Vêm do Nordeste ter filhos e depois voltam. São muito ignorantes!”. (HOTIMSKY, 2008, p. 214).

O princípio da legalidade é tratado no artigo 5º, inciso II, da nossa Constituição e diz:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (CF, 1988).

 O desrespeito ao princípio da legalidade, no caso da violência obstétrica, anda de mãos dadas com o desrespeito ao princípio da autonomia. O primeiro garante que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, já o segundo defende o direito de as pessoas se autogovernem, serem autônomas nas suas escolhas e nos seus atos. Assim, o médico deve reconhecer o domínio do paciente sobre a própria vida, respeitando a sua vontade ou do seu representante, bem como seus valores morais e crenças.

Contudo, a imposição de procedimentos rotineiros contra a vontade das pacientes fere profundamente esses dois princípios. Como exemplo podemos citar a episiotomia realizada mesmo contra a vontade da mulher, da mesma forma a aplicação de ocitocina, entre tantos outros. Essas práticas abusivas resultam em perda da autonomia e da decisão sobre próprio corpo, configurando numa “apropriação” dos seus processos reprodutivos e de sua individualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A violência obstétrica, sendo um subtipo de violência de gênero, é uma violência específica contra a mulher e ela pode se manifestar através de caracterizadores psicológicos, físicos, sexuais e institucionais, podendo resultar em traumas físicos e emocionais significativos para o resto da vida das mulheres que a sofrem.

Esse tipo de violência agride diretamente princípios e direitos resguardados pela ordem democrática e que são fundamentais para o desenvolvimento saudável e satisfatório do indivíduo em sociedade.

Como foi exposto, os princípios da dignidade da pessoa humana e o da autonomia, são afetados, em seus diversos elementos formadores, pelo abuso obstétrico, já que à mulher não é garantido um tratamento respeitoso, digno e humanizado na hora do parto, de modo a levar em consideração sua autonomia e poder de decisão.

Devido ao desconhecimento do tema por boa parcela da sociedade e à ausência de interesse do poder público em legislar sobre, ainda não há instrumentos próprios para identificar e notificar os casos de violência, o que colabora para que o problema continue invisibilizado tanto na esfera social quanto jurídica. A ausência de informações e legislação específica sobre o tema leva vítimas a não identificar ou caracterizar a violência sofrida ou, quando a identificam, não encontram suporte jurídico em sua busca por justiça e punição dos agressores. Em algumas situações, quando a parturiente se dá conta da violência praticada contra ela, opta pelo silêncio, muitas vezes pelo medo de ser abandonada pelo profissional em um momento onde está altamente vulnerável ou ainda por não se sentir apoiada quanto à denúncia.

Para uma experiência de parto que satisfaça os requisitos básicos dos direitos que resguardam a mulher, não basta que ela e o bebê sobrevivam, há que se observar o respeito ao valore intrínseco, a autonomia e ao valor social da pessoa humana que ela representa. Há que se mudar o conceito cultural de parto, o qual ainda é associado a momentos de dores e de desconforto. Deve-se também reavaliar o modelo tecnocrata utilizado pela medicina obstétrica no país atualmente, que trata o indivíduo como um mero procedimento a ser realizado, não levando em conta a sua subjetividade e a autodeterminação. Por fim, ao Estado compete por em prática o conceito de existência digna, que engloba um acesso pelo indivíduo, a pretensões de caráter material e jurídico.

Assim, o Estado é responsável por adotar medidas de proteção aos direitos fundamentais básicos, devendo fazer isso nas esferas material (bens, serviços), e jurídica (normas de caráter protetivo). A adoção de medidas efetivas na esfera material se faria na mudança do paradigma do modelo tecnocrata para o humanizado, com uma reeducação do profissional de saúde a fim de desenvolver uma postura mais atenciosa diante do sofrimento do paciente.

Na esfera jurídica, uma ação positiva seria a aprovação do Projeto de Lei 7.633/2014, de autoria do deputado Jean Wyllys, em parceria com ONG Artemis, que garante à gestante o direito ao parto humanizado e a escolher as circunstâncias em que seu parto deve ocorrer. Esse PL traz um caráter inédito nas disposições que tratam da violência obstétrica, pois o descumprimento a essa lei, pela primeira vez, faria com que as instituições e os profissionais respondessem também no âmbito penal por suas ações e/ou omissões, o que coibiria os abusos e funcionaria como meio coercitivo para proteger a dignidade da pessoa humana e a autonomia da mulher gestante, tão aviltados por essa violência quase que silenciosa, mas que faz tantas vítimas.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Marcélia Ferreira. A violência obstétrica como afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6248, 9 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66856. Acesso em: 3 nov. 2024.

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