A Lei nº 8.072/90: o critério do legislador em definir o crime como hediondo

16/06/2018 às 03:08
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No âmbito da Legislação Penal Especial encontra-se inserida a Lei 8.072/90, denominada “Lei dos Crimes Hediondos”. Quanto à lei, sua criação acarretou uma série de pontos divergentes e questionáveis.

INTRODUÇÃO

O legislador infraconstitucional, ao elaborar a Lei 8.072/90, chamada de “Lei dos Crimes Hediondos”, não fazia ideia da tamanha discussão e repercussão que ela causaria em tantos aspectos e, caso soubesse, talvez não a tivesse feito.

Partindo do significado da palavra lei, que nada mais é senão norma ou conjunto de normas jurídicas criadas através dos processos próprios do ato normativo e estabelecidas pelas autoridades competentes para o efeito, temos que a Lei dos Crimes Hediondos, ao ser minuciosamente investigada em sua história, apresenta defeitos desde o seu surgimento, muito por conta das influências alheias à época em que a onda de criminalidade era preocupante e espantava a sociedade que clamava por segurança e medidas do governo.

Um dos principais temas de debate que a lei causa é sobre o critério do legislador em definir o crime como hediondo, assunto a ser abordado no presente trabalho. Tem-se que a Constituição Federal é clara ao gizar, explicitamente, o pedido de definição da locução crime hediondo, o qual o legislador infraconstitucional não acatou. Notadamente, o legislador preocupou-se em equiparar outros crimes ao tratamento mais rigoroso dos crimes hediondos e acabou por esquecer da principal ideia que era a de elucidar o significado de hediondez.

Primeiramente, serão tratadas as características históricas da lei, como por exemplo, de onde vem o seu fundamento, caminhando pelos princípios do direito no que tange ao campo penal e que norteiam a fundação legal, bem como serão analisadas as inovações que a lei sofreu durante esses anos de existência, tudo isso quanto ao termo “hediondo” e, também, serão destacadas outras mudanças significativas. Tudo isso observado sob a ótica da dogmática jurídico-penal e da criminologia, esmiuçando através da investigação, do conhecimento, da interpretação e das críticas apresentadas quanto aos objetos envolvidos na temática proposta.

Após essa passada histórica, virá então a parte mais importante: o critério legal, adotado pelo legislador, intrinsecamente dotado de inconstitucionalidade muito em conta do modelo que o legislador decidiu adotar, onde serão expostos os pontos favoráveis e desfavoráveis ao método utilizado, além de outros critérios abordados e defendidos pela doutrina brasileira. Por derradeiro, vem à tona um assunto muito importante e de necessária abordagem, que é o bem jurídico penalmente tutelado, onde serão demonstradas as diferentes visões de conceituação (ou tentativa) do tema, haja vista que há uma procura por concentrar a tutela desses bens jurídico-penais em favor dos benefícios e garantias fundamentais, orientados pela Carta Magna e, dessa forma, esses bens terão a seu favor as atribuições dos princípios que dão luz ao de intervenção, sofrendo o mínimo suficiente para manter a ordem e o bom convívio social.

1 A LEI DOS CRIMES HEDIONDOS: ASPECTOS HISTÓRICOS, DOGMÁTICOS E CRIMINOLÓGICOS

Faz-se proveitoso dizer que alei, em sentido altamente amplo na concepção de Montesquieu, é a relação necessária que decorre da natureza das coisas. Desta definição, compreende-se que todos os seres possuem suas leis, sejam as divindades, seja o homem, seja o mundo material.

Cuidando da parte que aqui interessa, as normas jurídicas, cabe salientar que o legislador, antes de qualquer coisa, deve realizar uma minuciosa avaliação quanto ao fundamento, quanto à escrituração e, porque não, quanto à necessidade da criação das normas reguladoras, dentre outros critérios a serem discutidos e estudados, para que não haja o descuido na elaboração do preceito legal, uma vez que, mesmo o instituto tendo como objetivo a adequação da sociedade a um melhor convívio, o erro está inerente à pessoa, visto ser esta revestida de sensibilidade em seu interior. Ao estar tomado por esse afeto, por esse espectro, o mens legislatoris pode cair em devaneio, num abstrato capaz de fazer com que o autor se perca quanto à área que irá abranger sua lei.

Em acordo com esse trinômio de lei, ignorância e paixão, destaca Rodrigues que a lei, nesse caso, é compreendida como império da razão e deve guiar o governo e os governantes, ela deve estar acima dos interesses particulares dos cidadãos e a serviço do bem comum. Menciona ainda o autor que “a lei só é legítima na medida em que é ‘construída’ de forma democrática, sem vícios, desvios ou paixões”. Complementando a linha de raciocínio, alude Demócrito de Abdera que “a ignorância do bem é a causa do mal.”

Não pode existir lugar para sentimentalismo na lei, retrato disso é a expressão dura lex, sed lex (a lei é dura, porém é lei). Quando tomado pela ânsia da reação, pela angústia e pressão dos que o cercam, o legislador acaba falhando em sua função, legiferando de forma frustrante e esta ação acaba refletindo na origem da lei, que nasce defeituosa, sendo uma réplica meneável e aprovada de afogadilho. Uma prova configurada na prática é a Lei 8.072/90.

Toda legislação ordinária deve sempre estar de acordo com o que a Constituição Federal mensura, por ser esta a norma positiva superior, para que então possua eficácia plena. O ato normativo supracitado foi encaminhado pelo Ministro da Justiça ao Presidente da República, tendo sido elaborado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, qual tratava sobre os denominados “Crimes Hediondos”.

Sua gênese passa basicamente pelo princípio da proporcionalidade (disposto no art. 5º, inc. XLIII da CF), encontrado de forma implícita no texto constitucional, uma vez que o legislador teve por objeto abrigar a Lei Maior e o Estado Democrático (art. 1º, caput, da CF) ao atribuir regimento penal mais áspero aos crimes considerados hediondos e a seus equiparados.

Há também outros princípios que possuem correlação com a origem desta prerrogativa penal, como o princípio da legalidade, presente no art. 5º, inc. XXXIX, da CF, tendo em vista que o sistema penal, em seu embrião, é formado legitimamente por crime e pena, ambos dependentes existencialmente de regimento legal que, em sua formação, tenha seu procedimento assentado na Carta Magna. Tal princípio visa claramente impugnar o poder arbitrário do Estado e, ao ser mencionado esse arbítrio estatal, intrinsecamente coligado a este preceito legal encontra-se no mesmo art. 5º, caput, da Constituição Federal, localizado o princípio da igualdade, o qual traz redigido que todos os cidadãos são idênticos perante a lei, sem que haja distinção de qualquer cunho natural, ou seja, a interpretação do disposto nos remete em direção à proibição das decisões arbitrárias, coibindo a divergência de tratamento sem base suficiente e impedindo, dessa forma, a dessemelhança ou qualquer outra disparidade fundada em singela decisão de critério subjetivo.

Como bem leciona Alexandre de Moraes, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.

Contudo, na prática dos fatos, este mandamento constitucional sofre irreverência quando circunstâncias legitimamente idênticas são tratadas pelo responsável por legislar com perspectiva diferente e de forma arbitrária, ou o contrário, quando ocorrências devidamente assimétricas recebem também, arbitrariamente, tratamento idêntico. Dessa forma, tem-se que uma lei é considerada infratora do princípio corolário constitucional, ora pontificado, quando faltam motivos racionais para que as hipóteses fáticas tenham discrepância em seus tratamentos.

Alberto Silva Franco, Rafael Lira e Yuri Felix citam como exemplo aplicável de violação ao princípio da igualdade a Lei nº 8.072/90, ao não definir como hediondos os crimes previstos no Código Penal Militar, motivo pelo qual a prerrogativa não alcança os militares, ainda que pratiquem as mesmas infrações, atribuindo aos civis tratamentos mais severos, tanto no quesito penas cominadas, na forma e regime de cumprimento de pena, como também na disciplina processual penal.

Continuando a explanação, é oportuno pincelar que a Constituição de 1988 foi a primeira, desde que a política brasileira tornou-se autônoma, a preocupar-se com matéria que não fosse de cunho político, trazendo em seu ventre a classificação dos crimes, quais sejam: os crimes hediondos, as infrações penais de menor potencial ofensivo e os delitos que foram excluídos e sobraram numa faixa intermediária, bem dizendo, os crimes normais.

No ensinamento de Alberto Silva Franco, o protagonismo do legislador, na formação do juízo de necessidade da tutela penal, cedeu espaço nos últimos tempos a uma postura constitucional marcadamente intervencionista. A Constituição Federal de 1988 abriu um leque de obrigações de proteção penal, de forma que o legislador constituinte se fez passar por legislador ordinário, manifestando em seu lugar, e por vezes de forma desastrada ou incorreta as escolhas incriminatórias.

Essa incorporação de natureza estranha à Lei Maior se deu muito por conta da influência do chamado Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order), de inspiração americana, que possui como princípios: a pena se justifica como castigo e retribuição; os crimes atrozes devem ser punidos com penas severas e duradouras; as penas privativas de liberdade impostas a esses crimes devem ser cumpridas em estabelecimentos prisionais de segurança máxima, sendo o condenado submetido a um tratamento muito severo; a prisão provisória, ou temporária, deve ter seus prazos aumentados, de maneira a representar uma resposta imediata ao crime e; os poderes do juiz da execução da pena devem ser diminuídos, ficando o condenado sob a responsabilidade das autoridades penitenciárias.

Tinha por escopo o controle social através de leis com maior rigidez, novas tipificações criminais e encruamento das punições aos delitos já existentes, modelo para época condizente com o que a sociedade enfrentava quanto à insegurança nos ambientes, violência difundida por todos os cantos, somada ao crescimento da pobreza e à concentração de riqueza, provocando de fato uma reação arrasadora ao animus das pessoas.

Este “modelo fenomenal” baseava-se na ideologia de repressão, na qual se encarregaria de justificar a pena como forma de gratulação e castigo. Abrigavam seus seguidores que os atentados terroristas, os movimentos de gangues e a violência urbana somente seriam administrados com leis rígidas, que cominassem longas penas privativas de liberdade ou, quiçá, pena de morte.

Os ligados a este movimento escolhem uma política de aplicação máxima do Direito Penal, ao entenderem que todas as condutas afastadas, independentemente do naipe de importância que lhes é dado, fazem jus ao juízo de repreensão a ser levado a efeito pelo Direito Penal.

Na pontual fala de Rogério Greco, enfim o falacioso discurso do movimento de Lei e Ordem, que prega a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos faz fugir do alvo principal, que são, na verdade, as infrações penais de grande potencial ofensivo, que atingem os bens mais importantes e necessários ao convívio social, pois que nos fazem perder tempo, talvez propositadamente, com pequenos desvios, condutas de pouca ou nenhuma relevância, servindo, tão somente, para afirmar o caráter simbólico de um Direito Penal que procura ocupar o papel de educador da sociedade, a fim de encobrir o grave e desastroso defeito do Estado, que não consegue cumprir suas funções sociais, permitindo eu, cada dia mais, que ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, o nível de descontentamento e revolta na população mais carente, agravando, conseqüentemente (“sic”), o número de infrações penais que, a seu turno, causam desconforto à comunidade que, por sua vez, começa a aclamar por mais justiça. O círculo vicioso não tem fim.

Desse movimento, surgiu a Teoria das Janelas Quebradas, onde se procurava estabelecer uma relação de causalidade entre conturbação e criminalidade, com o discurso de que é enfrentando os pequenos alvoroços do cotidiano que se precaveriam os delitos mais gravosos. Alberto Silva Franco, Rafael Lira e Yuri Felix explanam sobre nas seguintes palavras: "se uma janela de um edifício está quebrada e se deixa sem repará-la, o resto das janelas será quebrado de imediato porque uma janela sem conserto é sinal de que ninguém se preocupa com o fato e, portanto, quebrar mais janelas não terá qualquer custo. Um edifício com todas as janelas quebradas traduz a ideia de que a ninguém importa o que se passa na rua e, logo, outros edifícios serão danificados, Isto terá efeitos negativos pois ‘somente os jovens, os criminosos e os temerários têm algum negócio numa avenida sem proteção e, portanto, mais e mais cidadãos abandonarão a rua’”(...) Para evitar essa deterioração e para que os cidadãos ocupem os lugares públicos, é imprescindível que a polícia a pé vigie esses locais, elevando o nível de ordem pública e combatendo as condutas desordenadas e antissociais, como a vagabundagem, a mendicância, a prostituição, etc. Pois elas seriam a janela quebrada que daria lugar a condutas mais graves.

Os autores referidos acima complementam essa situação com:" Sob o impacto dos meios de comunicação de massa, mobilizados em face de extorsões mediante sequestro, que tinham vitimizado figuras importantes da elite econômica e social do País (caso Martinez, caso Salles, caso Diniz, caso Medina etc.), um medo difuso e irracional, acompanhado de uma desconfiança para com os órgãos oficiais de controle social, tomou conta da população, atuando como um mecanismo de pressão ao qual o legislador não soube resistir. "

Nesse contexto, temos inseridos na criação da lei 8.072/90 os aspectos simbólico e emergencial do Direito Penal.

Sobre o simbolismo, retratam Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar o seguinte:"Para a lei penal não se reconhece outra eficácia senão a de tranqüilizar (“sic”) a opinião pública, ou seja, um efeito simbólico, com o qual se desemboca em um Direito Penal de risco simbólico, ou seja, os riscos não se neutralizariam, mas ao induzir as pessoas a acreditarem que eles não existem, abranda-se a ansiedade ou, mais claramente, mente-se, dando lugar a um Direito Penal promocional, que acaba se convertendo em um mero difusor de ideologia."

Entende-se que uma sociedade amedrontada, receosa e, porque não, boçal, tende a ser ludibriada, iludida mais facilmente, sob o impulso da mídia e opinião pública que lhes passam uma visão sofisma de tranquilidade e segurança, acalmando os sentimentos das pessoas. Cuida-se, dessa maneira, um belo modo de recurso que produz elevados benefícios políticos a um custo extremamente irrisório.

Veridicamente, trata-se de um Direito Penal unicamente simbólico, ameaçador e sem eficácia, um faz de conta, mas o bastante para acomodar os excluídos. Como arrazoa Gomes “é legislação simbólica porque não é aprovada para resolver nossos verdadeiros problemas (nossos conflitos)”.

Conforme dito por Zaffaroni e Pierangeli:" a função nitidamente instrumental do direito penal ingressa numa fase crepuscular cedendo passo à consideração de que o controle penal desempenha uma função puramente simbólica. "

No mesmo diapasão, preceitua Hassemer que “os instrumentos utilizados não são aptos para lutar efetiva e eficientemente contra a criminalidade real”, isto é, encontram-se incapazes de produzir efeitos a esse fim. Exemplo prático deste simbolismo penal é o recrudescimento das penas, como bem demonstra Miguel Reale Jr.:"A lei dos crimes hediondos, aprovada por afogadilho, foi uma resposta penal de ocasião, para dar satisfação diante do sequestro de Roberto Medina, sem que o legislador sopesasse as vantagens em matéria de execução de pena das limitações impostas, que quebram o sistema do Código Penal, com a exigência de cumprimento integral da pena no regime fechado, gerando-se uma fera no meio prisional, que não tem nada a perder. O importante, no entanto, é verificar que, editada a lei bem mais rigorosa, aumentaram vertiginosamente os sequestros, a mostrar nenhuma correspondência entre a gravidade da pena e redução da criminalidade."

Sobre o caráter emergencial, diz Choukr que a ideia de emergência está intrínseca ao plano de urgência e, de certo modo, ao de desequilíbrio no sistema. Alerta quando subitamente brota algo que faz oscilar o status quo ante, de modo a colocar em risco os parâmetros corriqueiros de comportamento e a consequente hipótese de manutenção das estruturas. Aduz ainda que “neste sentido, a ela se atrela a necessidade de uma resposta pronta, imediata e que, substancialmente, deve durar enquanto o estado emergencial perdura.”

Agora, veremos que os aspectos apontados da Lei 8.072/90 encontram-se presentes também nos momentos de alterações que a lei sofreu no transcorrer dos anos quanto ao conceito de crime hediondo.

A primeira alteração sofrida pela Lei dos Crimes Hediondos veio em 6 de setembro de 1994, com o advento da Lei 8.930. Esta norma foi produto final da pressão dirigida ao Congresso Nacional pelos meios de comunicação social, baseada na vívida repercussão que causava o crescimento dos linchamentos, chacinas, principalmente de menores de rua e outros crimes praticados contra a vida, chegando ao estopim com o homicídio cruel de Daniela Perez, artista que despontava no meio da teledramaturgia, causando grande revolta nacional e que remeteu a uma campanha forte para o aumento da repressão, sendo então acrescentado o homicídio simples, quando executado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que praticado por um só agente, e o homicídio qualificado, em todas as suas circunstâncias, também como hediondo. Ademais, fora a aligeirada alteração quanto ao estupro, as figuras que já se encontravam inseridas na hediondez foram mantidas, ressalva feita ao do tipo de envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte, que foi excluído dessa relação.

No segundo trimestre de 1998, o férvido assunto da falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos alimentícios ou de produtos para fins terapêuticos ou medicinais, exposto na mídia televisiva e jornalística, carecia de ponderação e, como de costume, o Direito Penal foi invocado para exercer seus encantadores poderes. Em teor mercadológico, muito ao desejo do processo de globalização que dominava o país, um novo produto preceptivo foi disposto no mercado: a Lei 9.677, de 2 de julho de 1998. Eufóricos, comunicavam publicamente os meios de comunicação a grande noticia. Nas fiéis palavras de Franco, Lira e Felix:"Os famosos “bustos falantes”, que ancoram os telejornais nacionais, puderam, enfim, “tranquilizar” a população brasileira. Não mais existiria a impunidade e não seria mais necessário repetir o cansativo bordão de que a ausência de comandos penais severos é uma vergonha! Com a intervenção penal, tudo entraria nos eixos: as firmas produtoras de alimentos ou de laboratórios de produtos terapêuticos ou medicinais passariam, num passe de mágica, a agir corretamente, dispensando qualquer outro mecanismo de controle ou vigilância sanitária."

Contudo, a mencionada lei foi originada com a indicação falsa de sua matéria. A “bula” do novo produto preceptivo havia uma aparente incoerência entre a ementa e o texto legal. Enquanto aquela apontava os delitos aludidos na lei como crimes hediondos, esta não trazia nenhuma palavra que confirmasse a etiqueta. Para sanar a discordância existente, foi então criada a Lei 9.695, em 20 de agosto de 1998, publicada no Diário Oficial do dia subsequente. Por ela, a assinalação crime hediondo foi anexada apenas à figura típica do art. 273 do CP, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei 9.677/98, preterida a modalidade culposa. Com isso, a relação de crimes hediondos, ao oposto do que profetizava a Lei 9.677/98, foi apensada apenas de um único tipo.

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A respeito dessa alteração legal, pontua Choukr:" Tal se deu após a descoberta pela mídia de inúmeros casos de irregularidades administrativas na mencionada fiscalização, expondo a fragilidade – e uma boa dose de desinteresse – do poder público nesta atividade. "

Outro preceito legal que tratou de aumentar o conceito de crime hediondo foi a Lei 12.015/09. Casos de pedofilia via internet eram destaques dos meios de comunicação social, chegando ao ponto de serem dirigidas acusações a padres, bispos da Igreja Católica Romana, não só aqui no Brasil, mas também em inúmeros outros países europeus e do continente americano, principalmente, nos Estados Unidos da América do Norte. O assunto ganhou uma larga proporção, causando uma preocupação internacional com a exploração sexual de crianças e adolescentes, tornando-se a pedofilia o problema do momento vivido na sociedade.

Naquele instante, muitas famílias sentiam-se vítimas do delito ou fruíam de conhecimento sobre alguém que já sofrera a ofensa em tela, muito em conta das denúncias realizadas pela mídia. Com esses elementos, chegar à exploração política da situação da pedofilia era algo inevitável. Em seguida, foi criada uma Comissão parlamentar sobre o tema e então os componentes dessa Comissão saíram país afora, ouvindo cidadãos que já haviam passado por agressões sexuais, enquanto menores. Deste modo, tornava-se previsível a criação de uma lei penal com força para pôr fim à pedofilia, como uma resposta criminal espantosamente repressiva, que causasse tranquilidade à sociedade insegura diante do objeto em debate e que buscasse extirpar tal conduta sexual tão abjeta. Foi então, através da lei citada acima, que foi criada a figura do estupro de vulnerável, inserida num projeto de lei que tratava de reformulação dos crimes sexuais no Código Penal.

Ainda, a Lei dos Crimes Hediondos sofreu outras alterações, merecendo destaque algumas destas mudanças.

Primeiramente, cabe destacar a criação da Lei nº 11.464 em 28 de março de 2007. Tal inovação legislativa trouxe, dentre suas principais mudanças, a alteração do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que, em sua redação exordial, trazia a obrigatoriedade de ser cumprida a pena em regime fechado integral, tendo com isso a vedação da progressão do regime aos sentenciados por crimes hediondos e a ele assemelhados (tortura, tráfico de drogas e terrorismo). Contudo, a doutrina e a jurisprudência pacificaram-se na linha de que tal exigência era inconstitucional, ao passo que violava o princípio da individualização da pena, assim como o da própria dignidade da pessoa humana. Com o advento desta lei, o ponto foi sanado e então foi conferido o novo texto legal, o qual exige que o magistrado fixe o regime fechado apenas para o início do cumprimento de pena, sendo assegurada a progressão.

Ainda, a lei supracitada também alterou o critério para progressão de regime. Até a sua criação, a progressão do regime prisional, para sentenciados por delitos hediondos ou a ele assemelhados, era vedada pelo § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90. Quando a referida lei foi promulgada, o legislador colocou que apenas o regime inicial de cumprimento de pena será o fechado, sendo, então, aceita a progressão; entretanto, oposto ao que se sucede com os crimes não hediondos ou a ele não assemelhados, em que a progressão acontece com o cumprimento de 1/6 da pena, comprovado o bom comportamento (Lei de Execução Penal, art. 112), a mudança do § 2º acarretou uma cobrança maior de cumprimento de pena para que o condenado obtenha esse direito de progressão, isto é, o cumprimento de 2/5, se o apenado for primário; de 3/5, se reincidente.

Esta lei também trouxe a redação do § 3º do art. 2º, o qual prevê que “em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”, bem como incluiu o § 4º do mencionado artigo, onde giza que “a prisão temporária para os crimes hediondos e seus assemelhados, terá o prazo de trinta dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade”, diferenciando-se, dessa forma, do prazo da prisão temporária previsto aos crimes não hediondos ou não assemelhados, de cinco dias, prorrogáveis por outro tanto.

Outras duas inovações legais também acarretaram mudanças significativas na Lei 8.072/90, quais sejam: a Lei nº 11.464, de 20 de junho de 2008, a qual veio para revogar a proibição de concessão de liberdade provisória, mesmo para crimes hediondos ou a ele assemelhados, e a Lei nº 12.403/11, que veio a alterar o CPP, onde a fiança policial tornou-se cabível nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não ultrapasse quatro anos (art. 322, caput, Código de Processo Penal).

2 REFLEXÕES SOBRE A DEFINIÇÃO DOS CRIMES DA LEI 8.072/90 - O CRITÉRIO LEGAL E A PALAVRA HEDIONDO: ASPECTOS POSITIVOS, NEGATIVOS E SUAS CARACTERÍSTICAS MORFOLÓGICAS

Exordialmente, quanto aos sistemas de classificação das infrações penais como crimes hediondos, tem-se que há variadas formas de classificação de um determinado delito como crime hediondo, que são: o sistema legal, o sistema judicial e o sistema misto.

O primeiro, chamado de sistema legal (ou enumerativo), define que o legislador tem de enunciar, de forma exaustiva (numerus clausus), os delitos que devem ser considerados hediondos. Deste modo, através de um rol taxativo de crimes, não é dado ao magistrado qualquer discricionariedade para declarar a natureza hedionda do crime. Ou seja, se o delito praticado pelo agente estiver inserido no rol dos crimes hediondos, não haverá outra saída que não seja a do reconhecimento de sua natureza hedionda, mesmo que, no caso concreto, a conduta delituosa não se mostre tão gravosa. Com isso, embora o crime não seja repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, horroroso, se estiver etiquetado pelo legislador como crime hediondo, deverá ser assim tratado pelo juiz.

No sistema judicial, o objetivo é dar ao juiz ampla liberdade para que seja identificada a natureza hedionda de determinada conduta criminosa. Assim, tem-se que, a depender das circunstâncias gravosas do caso concreto, seria então possível considerar hediondo, inclusive, um crime contra a administração pública.

Já o sistema misto, também chamado de legislativo definidor, é caracterizado pela apresentação de um conceito por parte do legislador, onde é fornecido alguns traços próprios dessas infrações penais. Existindo essa definição prévia de crime hediondo, seria incumbência do magistrado enquadrar determinada conduta criminosa como hedionda.

A Lei nº 8.072/90 adota o sistema legal, ou seja, ela etiqueta determinada conduta como hedionda. Quanto a isso, a doutrina coloca em evidência os pontos efetivos e contraproducentes, além de explanar sobre outros modelos de raciocínio acerca da classificação.

No que diz respeito à parte favorável, elucida Nucci (2013, p. 389) que “o ponto positivo desse modelo é a segurança na aplicação da lei, isto é, somente são hediondos os delitos ali constantes” . Em consonância, Fernando Capez esclarece que esse sistema legal, em virtude da sua aspereza, deixou uma margem curta para a avaliação discricionária da discrepante repugnância da conduta no caso concreto. Essa, ao se enquadrar em uma das estampas hediondas, abre pouco campo interpretativo ao julgador. Comenta ainda Renato Brasileiro de Lima que o aspecto positivo desse sistema está na segurança quanto à aplicação da lei, visto que unicamente serão considerados hediondos os crimes que estão presentes no rol taxativo elaborado pelo Poder Legislativo.

Em relação aos pontos negativos, temos a confusa avaliação legislativa, sem haver regras para se saber o que teria levado o Parlamento a considerar certos delitos como hediondo, citando, por exemplo, o envenenamento de água potável (art. 270, CP), na edição exordial da lei em 1990, desdenhando em seu quadro o homicídio qualificado (art. 121, § 2º, CP). Dessa forma, imperaria o aspecto negativo, muito em conta de o legislador poder agir como bem entender e em acordo com os meios de comunicação social, como já feito em outrora.

Além do exemplo citado, com a enumeração taxativa, ficaram barrados outros crimes importantes, como o sequestro e o roubo qualificado pelo emprego de arma, demonstrando o pouco caso tido pelo legislador com as condutas que, em determinadas situações, estejam circundadas de anormal repugnância.

Ainda, através do mencionado sistema, o Congresso Nacional dispõe de ampla liberdade para delimitar qualquer infração penal como hedionda, estando a seu bel-prazer o poder de elevar à categoria ora discutida um delito qualquer, muito em conta da pressão que a mídia exerce ou pelo clamor social.

O texto legal claudicou, inicialmente, por sua indefinição da dicção “crime hediondo”, inserida na regra constitucional. Ao invés de prover uma noção, tanto quanto explícita, de qual era o entendimento a ser dado sobre a hediondez do crime – o projeto de lei enviado ao Congresso Nacional recomendava um significado a esse respeito – o legislador optou em utilizar um sistema simplório, isto é, o de etiquetar, com a expressão “hediondo”, tipos já expostos no Código Penal ou em leis penais especiais. Desse modo, nos dizeres de Franco, Lira e Felix:" não é ‘hediondo’ o delito que se mostre ‘repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjecto, horroroso, horrível’, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade que presidiu ou iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer outro critério válido, mas sim aquele crime que, por um verdadeiro processo de colagem, foi rotulado como tal pelo legislador. "

Ainda, os referidos autores extraem os dizeres de Nilo Batista, o qual destacou que o legislador ordinário, para cumprir a determinação constitucional, deveria basear-se em determinados elementos legais do delito, como por exemplo, o dolo, animus lucri faciendi, modos de execução (crueldade, aleivosia), para então edificar uma definição de crime hediondo, delimitando por outro lado na natureza e quantitativamente na pena cominada. Contrariando o mandamento constitucional, acabou que o legislador infraconstitucional não acompanhou essa diretriz e restou essa produção legislativa revestida de arbitrariedade, uma vez que a Carta Magna solicitou-lhe um conceito, isto é, uma asseveração da essência-significado dos crimes hediondos e ele refutou com uma seleção arbitrária, uma etiquetação sem método ou critério. Assim, ofensa é ao princípio da legalidade o fato do legislador, sem consentimento da norma positiva superior, propagar drásticas restrições. A função de definir os crimes hediondos que a Constituiçãoatribuiu ao legislador ordinário difere-se da voluntariosa escolha de certos tipos penais, injustificadamente selecionados ao gosto de idiossincrasias conjunturais.

Em harmonia vai o dito por Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto:"No tocante à Lei n. 8.072/90, cabe registrar que o legislador não definiu, o que seja “crime hediondo”, limitando-se a rotular determinados crimes como “crimes hediondos ou equiparados”. Ou seja, a definição de crimes hediondos ou equiparados não existe, havendo apenas um rol de crimes assim rotulados (vide art. 1º da Lei n. 8.072/90, modificado pelas Leis n. 8.930/94 e 9.677/98), o que não raramente acarreta sérios problemas de proporcionalidade, pois a gravidade ou não de um crime tem, por vezes, mais a ver com o modus operandi ou a forma com a qual foi praticado, não sendo razoável o emprego do rótulo a determinado tipo de delito."

Ao serem analisados os argumentos utilizados por Franco, Lira e Felix, juntamente aos de Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto, tem-se que são defensores do critério chamado “legislativo definidor”, definido como aquele em que conta com a definição do legislador do que vem a ser crime hediondo e, a começar daí, os operadores jurídicos procurariam enquadrar os tipos penais e os casos concretos nessa definição previamente feita.

Há posições contrárias ao exposto, como o pensamento de Alberto Zacharias Toron, ao enfatizar que uma possível conceituação, dado o vasto significado que carrega a expressão, emanaria pela formação ideológica ou cultural do juiz diferentes considerações sobre o que lhe parecesse o caso. Temos que as dificuldades de se realizar uma conceituação legal de crime hediondo condizem com o próprio aperto que se tem ao concluir-se sobre a materialidade do crime.

A locução “crimes hediondos” carrega visível carga emocional, do qual significado verdadeiro deriva de fungíveis normas de julgamento axiológicas ou ideológicas. Propõe o autor, visando reduzir o rigor legal, uma cláusula salvatória onde o aspecto hediondo, a critério do juiz, pudesse ser afastado. Em face da garantia da legalidade, a qual é destinada aos incriminados, não é possível que se acate a inserção de delitos por critério judicial. Entretanto, objetivando abarcar exceções que não acontecem sempre, parece exequível um tipo de cláusula de modo que permita ao julgador excluir a ocorrência da qualificação hedionda.

A rotulagem dos tipos penais gera, todavia, consequências ardentemente sérias na medida em que, sem a definição legal de hediondez, qualquer comportamento, ainda que provoque irrisoriamente danos à sociedade, acolhida no tipo, será acunhada de hedionda. A existência de uma conceituação jurídica causaria, indubitavelmente, uma medida de subjetividade judicial, que poderia ser reduzida pela cobrança da motivação explícita. Sobre a cláusula salvatória, ainda dispõem os autores que “não devolveria ao conceito, a objetividade necessária, mesmo porque não liberaria o juiz da criticável subjetividade”.

Concluem Franco, Lira e Felix:"Ademais, a insuficiência do critério adotado pela Lei 8.072/90 é manifesta e dá azo a distorções sumamente injustas, a partir da seleção, feita pelo legislador, das figuras criminosas, ou da forma, extremamente abrangente, de sua aplicação pelo juiz. Aliás, o julgador foi dispensado da verificação dos elementos de composição conceitual, relegando-o à tarefa extremamente singela de observar se o tipo debitado ao agente faz parte ou não do rol legal. Além disso, a predeterminação de tipos delitivos, sem fixação conceitual de hediondez, provoca um certo grau de rigidez na aplicação tipológica. Se o agente dá um beijo lascivo, ou pratica um leve toque corporal, ou executa um ato de libidinagem grave, como por exemplo o coito anal, com uma vítima, com idade não maior de catorze anos, estará sempre realizando um crime hediondo – pouco importa a ato efetuado – porque o atentado violento ao pudor – atualmente com a denominação jurídica de estupro de vulnerável – foi incluído, sem nenhuma restrição, entre os delitos dessa categoria."

Em outra linha é a visão de Guilherme de Souza Nucci, que sugere um novo critério a ser utilizado, juntando os já existentes enumerativo (presente na Lei 8.072/90), judicial subjetivo e legislativo definidor. Nas suas pontuais palavras, o legislador deve enumerar vários delitos (especialmente os que implicam em violência ou grave ameaça contra a pessoa), fornecer um conceito de hediondez e permitir que o juiz, no caso concreto, no tocante a esses delitos constantes em lei, possa promover a justa adequação, tachando-os o ou não de hediondos. Teríamos uma parte de responsabilidade do legislador, fornecendo uma lista de crimes sujeitos à qualificação de hediondo – mas não necessariamente. E exemplifica com o seguinte: o homicídio, por estar na lista, conforme a definição de hediondez, igualmente constante em lei, poderia ser considerado, pelo juiz, hediondo, caso as circunstâncias concretas assim recomendassem, atendendo-se não somente aos aspectos pessoais do agente, mas também à forma de cometimento do delito e as consequências produzidas.

Com isso, o autor afirma que seria ganho uma definição sobre hediondez, mas teria seu emprego limitado àqueles tipos penais constantes do rol dos crimes possivelmente hediondos, bem como permitiria ao Judiciário maior maleabilidade na classificação dos delitos para que recebam tratamento mais severo.

Analisando a palavra “hediondo” e fazendo uma correlação com o critério adotado pela legislação brasileira, tem-se que o crime hediondo está incluso como uma das obrigações constitucionais de criminalização (inc. XLIII do art.  da CF). Crime, com tal nomenclatura jurídica não possui antecedente no ordenamento penal pátrio, nem gênese em ordenamentos penais estrangeiros. Fora isso, a locução “crime hediondo” é integralmente estranha ao arrazoado criminológico. Trata-se, por conseguinte, de denominação penal sem pretérito, não demarcada com exatidão pelo legislador constituinte e necessitada de explicitação, em seus elementos compositores, por parte do legislador infraconstitucional.

No tema em tela, lembra Alberto Silva Franco que o legislador penal não abriu rumo na direção da noção de crime hediondo porque não chegou a ter sobre ele uma só palavra pensada. E não lhe faltavam dados para construir esse conceito (gravidade objetiva do fato, meios e modos de execução, finalidade iluminadora da ação, o animus lucri faciendi, etc.), nem para fixar espécie e a quantidade da pena cominada. Em lugar de preencher os elementos de formatação da nova categoria penal, o legislador preferiu utiliza-se de um mecanismo seletivo de todo inapropriado: a etiqueta pregada em tipos já existentes ou posteriormente reformulados no ordenamento penal.

3 A NECESSÁRIA DISCUSSÃO SOBRE A TEORIA E HIERARQUIZAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TUTELADOS PENALMENTE

Na doutrina brasileira, tem prevalecido o entendimento de que a função do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos fundamentais. O bem jurídico, entretanto, não pode unicamente reconhecer-se na ratio legis, mas deve ter um sentido social próprio, antes mesmo da norma penal e concluso em si mesmo, senão, não teria cabimento a sua função sistemática, de padrão e limitador do mandamento penal e de contrapartida dos motivos de justificação na possibilidade de conflito de valorações.

O conceito de bem jurídico foi definido, no começo do séc. XIX, como direito subjetivo, tanto de particular, como do Estado, a ser matéria de proteção. Após,foi purificado e reproduzido como estado valorado pelo legislador, sendo transposto posteriormente a um íntimo conceitual de interesse juridicamente protegido, com uma desavença: Binding tomou-se, superficialmente, do bem jurídico, ao passo que Von Liszt enxergou nele uma definição nuclear da estrutura do delito, levado em conta de que existem vários delitos que não possibilitam a averiguação de lesão ao direito subjetivo, mas que, todavia, é lesado ou está em inerente perigo um bem jurídico.A proteção de bem jurídico, como embasamento de um Direito Penal liberal, proporciona um critério material, espantosamente importante e seguro na edificação dos tipos penais, porque, assim, será possível diferenciar o crime das simplórias atitudes internas, de um lado, e, de outro, dos fatos materiais não ofensivos de bem algum. O bem jurídico pode ser conceituado como todo valor da vida humana amparado pelo Direito e, como o início do esqueleto do delito é o tipo de injusto, representa a lesão ou perigo de lesão do bem juridicamente protegido.

Se um discernimento predominantemente liberal concede ao Direito Penal um cargo protetor de bens e interesses, uma concepção social, em lato sensu, pode aderir um pensamento predominantemente imperialista e, com isso, ser regulador de vontades e atitudes internas, tendo, como exemplo, o nacional-socialismo alemão. A primeira ideia pontua a importância do bem jurídico; a segunda escora-se na infração do dever, na indisciplina, na teimosia da vontade individual versus a vontade coletiva. Entretanto, conforme abordava Welzel, o Direito Penal tem o dever central de garantir a validade dos valores ético-sociais positivos de ação, defendendo o comportamento humano daquela maior parte capaz de manter uma minúscula ligação ético-social, que interage na construção positiva da vida social através da família, escola e trabalho. O Direito Penal funciona, num primeiro plano, afiançando a segurança e o equilíbrio do juízo ético-social da comunidade e, em segunda via, insurge, ante o caso concreto, contra a transgressão ao ordenamento jurídico-social com a instituição da pena correspondente.

Guia-se o Direito Penal de acordo com a escala de valores da vida em sociedade, pontuando determinadas ações que vão contra essa escala social, sendo delimitadas como comportamentos inaceitáveis, estabelecendo, dessa forma, os limites da liberdade da pessoa em comunidade. Sendo esses limites infringidos, desde que se adéquem aos princípios da tipicidade e da culpabilidade, ocasionará então a responsabilidade penal do infrator. Tal desfecho jurídico-penal da infração ao ordenamento gera como resultado ulterior o chamado efeito preventivo do Direito Penal, que qualifica a sua segunda função. Para Welzel, então, o Direito Penal tem como escopo resguardar os valores ético-sociais da ordem social.

A partir da segunda metade do século XX, emerge relevante alteração na percepção da definição de bem jurídico, com o chamado conceito metodológico, de base normativista, ligado aos requisitos neokantianos próprios da escola denominada de Baden ou escola subocidental alemã, doutrina dominante a partir dos anos 1920.

Sobre esse conceito, diz Bechara:"Reagindo contra a compreensão positivista do direito, para a qual o conteúdo do delito é dado formalmente segundo o que está expresso na lei, esta concepção também buscou a substância material de bem jurídico em uma realidade prévia ao direito. Acentua-se na concepção de bem jurídico a vertente teleológica imposta pela especificidade do mundo jurídico, como entreposto entre os mundos do ser e do dever-ser. Porém, em lugar de vê-la no terreno dos interesses sociais, situa-a no mundo espiritual subjetivo dos valores culturais."

Utilizou-se, desse modo, dos bens jurídicos fórmulas interpretativas dos tipos legais de delito, capazes de sintetizarem seu conteúdo – a finalidade de proteção não existiria enquanto tal, formando-se somente quando são vistos nos valores sociais como fim objetivo das prescrições penais.

Mas, se a começar da referida mudança do conteúdo do bem jurídico, adquiriu-se conhecimento quanto à sua primordial significação para a interpretação dos tipos penais, a nova definição acabou perdendo sua inserção no âmbito da dogmática. Aparentando, na verdade, uma fórmula vaga de conteúdo, tal entendimento de bem jurídico forma mais uma instrução metodológica interpretativa de tipos penais, abandonando a explicação sobre a espécie do injusto de cada delito. Rigorosamente por isso, por não poder ser empregada como padrão crítico de medição da legitimidade da criminalização, esta concepção também não soa aplicável.

Assim, necessário se faria buscar um conceito que demonstre não só critério material de interpretação das normas penais positivas, como também uma ligação negativa ou limitação às sanções de novos tipos penais retumbaria ideal no Estado Democrático de Direito. Esta definição de bem jurídico caberia se pudesse deduzi-lo de prescrições jurídicas positivas, que são anteriores à legislação penal, conferindo ao legislador um arbítrio material vinculante. E tais decisões ricas de conteúdo prévias à legislação penal não são oriundas, como na época do Iluminismo, de uma norma de direito natural, e tão pouco, como fez Von Liszt, das relações sociais predecessoras. Estas escolhas valorativas somente estariam, portanto, possibilitadas e inseridas no texto constitucional.

Em acordo, Jorge de Figueiredo Dias leciona que um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez significa que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal – jurídico-penal – dos bens jurídicos tem por força de se verificar uma qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de “identidade”, ou mesmo só de “recíproca cobertura”, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de sentido e – do ponto de vista da sua tutela – de fins.

Hernán Hormazabal Malarée, no mesmo diapasão, define os bens jurídicos como relações sociais concretas, de caráter sintético, protegidas pela norma penal, que brotam da própria relação social democrática, começando pela superação do processo dialético que tem lugar em sua esfera.

Já Juarez Tavares repreende que o bem jurídico, na qualidade de valor e, por conseguinte, colocado no grande caractere da finalidade da ordem jurídica, realiza a função de proteção, não dele próprio, senão da pessoa humana, que é o último escopo de proteção da ordem jurídica. Compreendido como valor e não como dever, o bem jurídico é devolvido à atribuição de delimitador da norma. Esse também é o pensamento de Claus Roxin, que conceitua inicialmente os bens jurídicos como acontecimentos dados ou finalidades com serventia ao indivíduo e ao seu livre desenvolvimento, na área de um sistema social global estruturado sobre a base dessa concepção dos fins ou para o funcionamento do próprio sistema.

Há pouco tempo, Hassemer admitiu que a visão de Welzel era mais ampla na medida em que objetivava a proteção dos bens jurídicos através da proteção dos valores de caráter ético-social.

Indubitável é a finalidade genérica de proteção social havida pelo direito penal. Referido ajuste definha-se, contudo, nessa assertiva, remetendo-se ao debate de qual seja o bem específico da proteção jurídico-penal. Em linhas gerais, percebem-se dois modelos de atuação do direito penal: o primeiro, voltado à proteção de bens jurídicos; e o segundo, relacionado diretamente à proteção do ordenamento jurídico, no plano de sua vigência. A partir da pluralidade desses pontos de vista a respeito da aproximação aos fins concretos do direito penal, a doutrina divide-se em setores discordantes que, de forma gradativa, antecedem a vigência do ordenamento à proteção de bens jurídicos, vindo, em derradeira apreciação, a prescindir totalmente desse último fim.

Começando a análise das distintas visões sobre a teoria do bem jurídico e, assim, da própria função do direito penal, pode-se já de partida afirmar que a finalidade do direito penal de proteção da própria vigência do ordenamento jurídico não permite apreciar, de forma clara, quais sejam os efeitos concretos buscados para a proteção da norma.Fixados esses padrões, deduz-se que as questões em relação à legitimidade do direito penal tratam diretamente sobre a determinação da configuração concreta de uma dada sociedade.

Por isso, conforme expõe Bernd Müssig, a tarefa central da política criminal atual consiste na caracterização normativa das esferas do sujeito em um mundo complexo, inclusive em contraposição com o poder público. Mesmo no plano sistêmico normativo, surgem, portanto, valores fundamentais a embasar a norma. Tudo indica que o ponto mais importante do debate mora nos chamados bens jurídicos supra-individuais, modernamente considerados os maiores objetos de preocupação ao que se refere à tutela jurídico-penal. Tratando da proteção dos citados bens jurídicos, dentro da linha funcional percebe-se sua ligação à função dos sistemas sociais ou institucionais. De acordo com Bernd Müssig, o direito, como esqueleto da sociedade, cresce fundamentalmente sob a ótica do conflito, este constituindo o substrato social que conduz à banalização de expectativas de conduta.

No outro extremo, a teoria sistêmica enfrenta a oposição dos pensadores da Escola de Frankfurt, partindo das vivências históricas do séc. XX, com o retrato da totalização da razão instrumental. Nesse enredo, a obediência da pessoa às circunstâncias sistêmicas da sociedade leva a uma razão de natureza totalitária. Aqui, é defesa uma ideia pessoal da constituição do bem jurídico, como é comprovado nos estudos de Rudolphi, Marx e Winfried Hassemer, dentre outros autores, a começar pelo referencial do indivíduo, ao qual devem satisfazer o direito e o Estado. Logo, sendo os bens jurídicos derivados dos indivíduos, mesmo os bens jurídicos supra-individuais apenas serão aceitos como legítimos ao passo que sirvam para o desenvolvimento pessoal dos cidadãos. Esse pensamento pessoal do bem jurídico provém do modelo de Estado liberal, baseado e apoiado na ideia do contrato social de Rousseau. Justamente por isso, conforme a ideia pessoal, a hierarquização entre bens jurídicos individuais e supra-individuais mostra-se preocupante, haja vista que, no momento da sociedade atual, pode existir uma decomposição técnico-social do sujeito na constituição de bens jurídicos supra individuais, caminhando, consequentemente, ao perigo iminente de uma funcionalização dos interesses pessoais em relação ao Estado.

Da mesma forma de discernimento, aplicado ao atual momento das sociedades complexas, Claus Roxin observa que, em um Estado Democrático de Direito as normas penais somente podem ir atrás do escopo de assegurar aos cidadãos uma existência simultânea livre e pacífica, garantindo o respeito aos direitos humanos de todos. Ainda, chama de bens jurídicos a todos os objetos autenticamente protegidos pela norma sob essas condições, ainda que isso implique, em certos momentos, substratos de acepção de natureza ideal.

Com isso, os bens jurídicos, para o professor da Universidade de Munique, Claus Roxin, são realidades ou fins necessários para uma vida social livre e segura que garanta os direitos humanos fundamentais do indivíduo, ou para o funcionamento do sistema estatal voltado à consecução de tais fins. A distinção entre realidades e fins leva a conclusão de que os bens jurídicos não necessariamente vêm dados ao legislador, como ocorre, a título de exemplo, com a vida humana, senão que também podem ser criados, como sucede em matéria tributária.

Sobre o tema, dissertam Franco, Lira e Felix que o princípio também denominado princípio da ofensividade ou da lesividade centra-se na ideia de que o controle social penal só deve intervir quando ocorrer lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos concretos. Continuam, ao citar Antonio García-Pablos de Molina:"Bens jurídicos, em definitivo, são os pressupostos existenciais que a pessoa necessita para sua autorrealização na vida social. Uns têm natureza estritamente individual (vida, integridade, liberdade, honra etc.), outros, comunitária (saúde pública, segurança do tráfego, etc.), mas também esses últimos interessam ao indivíduo, já que a convivência pacífica, assegurada por uma ordem social adequada, é o único marco viável para sua própria auto-realização."

Molina prossegue com “proibir por proibir, carece de sentido e legitimação”.

Com isso, tem-se que é incabível acionar o instrumento estatal de controle se a conduta, ativa ou omissiva, da pessoa não conter nenhum laivo de lesividade, formando visivelmente uma nítida limitação ao poder punitivo desse Estado Democrático de Direito, ao ponto que circunscreve o desempenho do mecanismo repressor à proteção de bens jurídicos de alto valor, sendo coletivo ou individual, e às ameaças mais danosas a esse bens.

Assegura-se, a rigor, que a Constituição de uma nação reflete e define esses bens, mostrando-os como a expressão consensual da vontade dos membros de uma comunidade, como expressão hierarquizada daqueles interesses que são considerados fundamentais para o andamento do sistema social. É a Carta Magna, destarte, a norma que vai medir, em princípio, o sistema de valores a ser protegido. Porém essa avaliação não tem importância de caráter absoluto, nem pretere outras valorações. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos tem a Constituição como uma possibilidade de trabalho indispensável, um obrigatório ponto de partida, mas não pode a ela limitar-se na escolha e hierarquia desse bens. A dignidade formal do bem jurídico é necessária, mas não o bastante. Há uma dignidade material também a ser tratada. Os bens jurídicos devem ser acatados em toda a sua dimensão material, mas sem que se esvaia de vista, para que a intervenção penal não se espalhe muito, o dado comum a todas as ameaças a esses bens: a sua lesividade.

No modelo penal do Estado Democrático de Direito, existe uma estreita correlação entre, de um lado, os princípios da esfera constitucional, que coordenam não só os direitos e garantias fundamentais do cidadão, mas também os referentes a ordem política, econômica e social e, de outro, os bens jurídicos que fazem parte do ordenamento jurídico-penal. Indubitavelmente, há um traço de ligação que une esse conjunto de valores expressa ou implicitamente declarados pelo modelo constitucional abarcado, aos bens jurídicos que são alvo de tutela penal.Entretanto, esses fatos não denotam que haja entre eles uma identidade absoluta, mas é incontestável a realidade de uma relação de mútua referência. Os bens jurídicos merecedores de tutela penal são, a bem da verdade, objetos de concretização de valorações que se encontram inseridas no texto constitucional.

Mas não é suficiente, apenas, que os bens jurídicos façam jus a essa tutela. É necessário que se acrescente outra exigência, ou seja, a constatação de que esses bens realmente necessitem dela. O controle penal não se autentica através de uma intervenção ilimitadamente expansiva, ilibada a atingir toda e qualquer conduta humana que tenha possibilidade de causar lesão ou pôr em risco bens jurídicos de integridade jurídico-penal. O Direito Penal se limita a atuar diante dos ataques mais atrozes contra os referidos bens e sempre que todos os demais domínios sociais não-penais se mostrem apáticos ou infrutíferos na sua salvaguarda.

Compete ao legislador infraconstitucional, em regra, a importante tarefa de fazer o juízo medidor da necessidade de intervenção penal. No universo entrançado da tipologia penal, é ele o personagem principal. É ele o responsável por construir o tecido punitivo. Na sua confecção, entrelaçam-se, no sentido transversal e longitudinal, os fios desatados dos novelos caracterizados pelos fatos e pelas penas. É ele quem constata a existência da necessidade de proteção penal, seleciona os fatos ofensivos mais expressivos e também escolhe as penas que mais se adequam ao grau do dano social por eles provocada. Na sua seara de operação, estão, logo, a descrição dos atos humanos com palavras diminutas coerentes e a apuração quantitativa de sanções punitivas que carreguem ao menos grandeza proporcionada.

Cada tipo penal deve conter um equilíbrio interno, e todo o amontoado tipológico não aguenta nem ações humanas descritas de modo sórdido, derramado ou conflitante, nem penas exorbitantes ou extravagantes. Justamente por dispor, nesse ambiente, do esplêndido poder de criar figuras criminosas e de cominar penas, colocando em enorme risco o direito de liberdade do cidadão, é que o legislador comum está limitado de forma expressa por um princípio constitucional inarredável: o princípio da legalidade, encontrado no art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com todo o conteúdo estudado, analisado e transcorrido, percebe-se que, desde a sua nascença, passando por suas alterações e chegando ao mais recente projeto aprovado pelo Senado que torna a corrupção e outros crimes de cunho político hediondo, temos que a Lei 8.072/90 possui enraizada uma cultura de urgência e que foi criada com a única finalidade de responder ao clamor da sociedade e não da criminalidade em si, já que, em mais de 20 anos de existência da Lei dos Crimes Hediondos, a lei acabou não impedindo que as práticas delituosas persistissem, não interferiu na linha de estabilidade – seja de delitos praticados antes de sua promulgação, seja de delitos realizados depois dela – o que acabou gerando consequentemente um inchaço carcerário por conta de sua ineficácia. 

Assim, acabou por acarretar inúmeros erros dos quais o erro do legislador, ao contrariar a norma maior que é a Carta Magna por não definir o que seria crime hediondo e apenas rotular delitos já existentes como tal, configura-se como um grave ponto inconstitucional da lei, ao ofender um dos princípios basilares do nosso ordenamento pátrio, que é o princípio da legalidade, uma vez que está inerente a este preceito que a lei defina o crime. E não eram escassos os dados para construir o conceito – gravidade objetiva do fato, meios e modos de execução, finalidade iluminadora da ação, etc. – nem para determinar o tipo e o quantum da pena cominada.

Apesar de já terem sido feitas diversas alterações na Lei 8.072/90, sendo ela um embrião eterno para projetos de lei, a maioria por conta da sua má formação, deve-se pensar em uma nova alteração que objetive ensejar a “legalidade da lei” nesse sentido, conceituando e delimitando o que seria um crime hediondo ou do que se trataria a hediondez. A questão principal é tentar saber o porquê do crime se tornar hediondo. Para tentar desvendar o problema, não é suficiente que se utilize apenas dos dicionários da língua pátria para descobrir o real significado do conceito de hediondez, uma vez que essa conceituação seria uma simples prática de pleonasmo. A grande incumbência do legislador penal é, ao estar diante de um bem jurídico que se mostre carente de tutela penal, narrar as condutas mais relevantes que possam ofendê-lo, cominando sanções punitivas a quem os infringir.

A hierarquização entre bens jurídicos individuais e supra-individuais é algo que causa preocupação, uma vez que, no momento da sociedade atual, pode existir uma decomposição técnico-social do sujeito na constituição de bens jurídicos supra individuais, por conta de tornar-se amplo. Ainda que não deixe de proteger um interesse individual, não é a lesão a este que produz a tipicidade penal e, com isso, tem-se, consequentemente, o perigo iminente de uma funcionalização dos interesses pessoais em relação ao Estado.

A Carta Magna define esses bens, mostrando-os como a expressão consensual da vontade dos membros de uma comunidade, como expressão hierarquizada daqueles interesses que são considerados fundamentais para o andamento do sistema social. É a Constituição Federal, destarte, a norma que vai medir, em princípio, o sistema de valores a ser protegido. Porém, essa avaliação não tem importância de caráter absoluto, nem pretere outras valorações. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos tem a Constituição como uma possibilidade de trabalho indispensável, um obrigatório ponto de partida, mas não pode a ela limitar-se na escolha e hierarquia desse bens. A dignidade formal do bem jurídico é necessária, mas não o bastante. Há uma dignidade material também a ser tratada. Os bens jurídicos devem ser acatados em toda a sua dimensão material, mas sem que se esvaia de vista, para que a intervenção penal não se espalhe muito, o dado comum a todas as ameaças a esses bens: a sua lesividade.

Temos aqui um grande ponto conflitante: o movimento norte-americano Lei e Ordem, no qual se baseou o legislador ao elaborar a lei discutida, defendia a máxima aplicação do Direito Penal, enquanto que o ordenamento pátrio trata da aplicação mínima e subsidiária do Direito Penal. Com base numa política criminal minimalista, os mecanismos penais de intervenção sobre a sociedade não se justificam por si só, mas sim como meios de controle social e de proteção de bens jurídicos e sempre subsidiariamente. A dignidade de todos deve ser preservada em qualquer atuação jurídico penal. O Estado, como intermediário, age decisivamente para que se mantenha um estado democrático de direito complexo e harmonioso, assentando-se de forma dominante para a adequação à realidade político-social contemporânea. De outra forma, tal intervenção deve ser limitada, de jeito que sua atividade seja baseada nos princípios basilares penais e constitucionais, sendo assegurada a todos os indivíduos a devida proteção que cabe ao Direito Penal.

É de suma importância que aprimoremos ainda mais o conhecimento acerca do tema e da esfera penal, levando a uma maior compreensão sobre as características da Lei dos Crimes Hediondos e do direito penal brasileiroa, uma vez que se trata de um assunto recheado de polêmica e de vários pontos a serem mencionados que, de certa forma, abrem um leque de opções para outros trabalhos de cunho científico, permitindo desenvolver e aperfeiçoar o conhecimento de causa.

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ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2004.

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Sobre o autor
Matheus Passos da Silva

- Natural de Pelotas/RS; - Possui formação acadêmica na Universidade Católica de Pelotas, bem como concluiu recentemente especialização lato sensu em Direito Material e Processual do Trabalho na instituição Faculdade Damásio Educacional de Jesus. No momento, cursa especialização em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial e Registral pela Universidade de Santa Cruz do Sul; - Sócio Proprietário do Escritório Passos & Ricaldone - Advocacia, Assessoria e Compliance.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Este trabalho foi redigido como conclusão de curso na Universidade Católica de Pelotas, no final do ano de 2014, pelo presente autor.

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