Resumo: O presente artigo faz uma crítica em relação à situação em que se encontram crianças e fetos prisioneiros, encarcerados numa realidade que não ajuda em seu desenvolvimento integral. A pesquisa tem caráter bibliográfico explorando páginas da internet, legislação brasileira e alguns livros que tratam da situação das mães e filhos encarcerados. Inicia mostrando a situação e, em seguida, procura traçar um resumo sobre os direitos destas crianças e gestantes. Mostra que parte do problema foi resolvida com a decisão no Habeas Corpus 143.641, que mandou para a prisão domiciliar as mães presas preventivas. Mas o problema persiste com a falta de condições para o desenvolvimento integral da criança de mães condenadas.
Palavras-chave: Crianças encarceradas. Mães Presas. Desenvolvimento Integral da Criança. Inocentes presos. Prisão Domiciliar. Direitos Fundamentais.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como tema os fetos em gestação e as crianças recém-nascidas cujas mães encontram-se condenadas, especialmente aquelas que vão para a prisão no ventre da genitora. Fetos, embriões e crianças que, sem defesa, contrariando a norma constitucional de que ninguém pode ser preso sem decisão devidamente fundamentada ou por condenação penal transitada em julgada, acabam indo para as grades junto com suas mães. A necessidade de punir as mães acaba punindo junto seus filhos.
A jurisprudência sobre o tema mudou durante o interesse por esta pesquisa, mas continua importante. No final de fevereiro de 2018, a segunda turma do Supremo Tribunal Federal) julgou o Habeas Corpus 143.641 decidindo que as grávidas e a mães com filhos até 12 anos em prisão preventiva, atendidos os requisitos da lei, deveriam ter facilitadas o cumprimento domiciliar da pena.
Com isto, os ministros do STF queriam aproximar mais as crianças de suas famílias. Tinham, também, como objetivo, atender os critérios dos Direitos Humanos e das garantias constitucionais para as crianças que acabam presas de modo imerecido. Contudo, o problema continua porque o encarceramento de grávidas e mães com criança pequena condenadas permanece.
Apesar da mudança da jurisprudência, o tema continua sendo importante para o estudante de direito e para as pessoas preocupadas com as condições de educação das crianças. Não se pode esquecer que o momento da primeira infância é muito importante na formação do indivíduo. Também, é bom lembrar, que mesmo com esta jurisprudência, muitas crianças e fetos, com as mães não atendendo os critérios da lei, continuarão presas.
Trata-se de tema muito importante para a vida social, pois está em jogo não somente o cumprimento de pena pela mãe condenada. Há, também, a questão da formação das crianças que acabam passando importante fase da vida isoladas em grades com suas mães. Estas crianças ao invés de ficarem presas deviam estar nas creche e escolas, assim como no abrigo de suas famílias. Deveria prevalecer a absoluta prioridade do interesse da criança e o favorecimento par seu desenvolvimento integral.
O principal objetivo é ajudar a conhecer melhor a realidade das crianças presas, algumas ainda na barriga da mãe verificando o que o direito pode fazer para melhorar esta situação. O objetivo principal de conhecer melhor é seguido do objetivo de gerar sensibilidade para o tema tão importante para a sociedade e o Direito.
O método usado é o bibliográfico com pesquisas em artigos da internet, em livros, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na decisão do STF no habeas corpus 143.641. Além disto, serão consultados livros que narram as condições das mulheres presas em estado de gravidez e com crianças pequenas.
Haverá a preocupação de apresentar algumas estatísticas tiradas de sites. Assim, tanto olhara o problema quanto a solução apresentada pelo STF no Acórdão do Habeas Corpus 143.641 para mostrar que, como aquela decisão atinge somente as presas preventivas que atendam os requisitos da lei, muitas crianças continuaram sendo gestadas e criadas nas condições sub-humanas das prisões.
2. SITUAÇÃO ATUAL DO PROBLEMA
Ao apresentar seu voto no HC 143.641, o Ministro Lewandowski destacou que, no começo de 2018, "mais de 2 mil pequenos brasileirinhos" estavam "atrás das grades com suas mães, sofrendo indevidamente, contra o que dispõe a Constituição, as agruras do cárcere" (STF, HC 143.641). Com esta referência inicial segue breve análise da situação das crianças presas.
Em primeiro lugar é preciso entender que o fato de a criança ficar presa com a mãe nos primeiros meses de vida é considerado um avanço, uma conquista, voltada para assegurar a proximidade entre mãe e filho.
Porém é bom destacar que a falta de estrutura das prisões e as condições em que as mães ficam está longe de ser ideal para a saúde, crescimento e educação das crianças. Coisas que a lei exige estão longe de serem atendidas. Além da falta do convício com a família, as crianças crescem em meio à falta de creches, berçários, ambiente para brincar e cuidado médico. O ambiente da prisão já é inadequado para uma criança nascer e passar seus primeiros dias de vida, mais ainda se não possuir infraestrutura adequada. Até porque, conforme afirma Daniele Viafiore (2005, p. 93), mesmo na "história da estruturação do sistema prisional brasileiro, não houve uma preocupação com a mulher criminosa e nem com a família".
A estrutura não tem acompanhado nem as exigências da lei. Letícia Casado e Natália Casian publicaram um texto na Folha de S.Paulo no qual destacam que apesar das exigências da lei,
os presídios femininos não possuem estrutura para abrigar as mães: apenas 34% dispõem de cela ou dormitório adequado para gestantes, 32% dispõem de berçário ou centro de referência materno infantil e 5% têm creche. Nas penitenciárias mistas, os dados são 6%, 3% e zero, respectivamente, afirmou. (CASADO; CASIAN, 2018)
Assim fica claro que não há estrutura física adequada para as mães grávidas e as crianças recém nascidas. Sem um lugar adequado para a gestante ficar, sem berço, sem creche e sem o ambiente que este tipo de pessoa precisa pode-se falar que estamos diante de uma situação muito desumana, que fere a dignidade da pessoa. Neste caso, algumas delas nem sequer conhece o mundo ainda e já são maltratadas.
Letícia Casado e Natália Casian mostram, ainda, que nem mesmo o básico exigido pela lei em relação à saúde da mãe e da criança é cumprido. Ao comentar o Acórdão do HC 143.641, elas lembram que o próprio Ministro Lewandowski reconhece esta limitação no cumprimento da pena de mulheres grávidas ou acompanhada de seus bebês. Segundo elas,
Ele destacou que a Lei de Execução Penal prevê acompanhamento médico à mulher, "principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido", entre outras determinações que não estão sendo seguidas pelo sistema penitenciário. (CASADO; CASIAN, 2018)
Se é muito difícil a vida das crianças na prisão é um grande desafio para as mães ficarem sem seus pequenos que só podem ver as mães nas visitas. Assim, ficar preso com a mãe e poder ser amamentado já é uma conquista. Porém, uma conquista com muitos aspectos negativos. Segundo Daniele Viafiore (2005, p. 95), o problema é que mesmo os pequenos inocentes acabam passando por vistorias bem constrangedoras para entrar nas unidades.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mantém uma página na internet através da qual é possível acompanhar dia a dia o painel de dados sobre as presas grávidas e lactentes nas prisões do Brasil, tanto os números nacionais quanto os dos Estados. Os números mostram que com o crescimento do número de mulheres presas, cresceu, também, a quantidade de grávidas e mãos que amamentam.
A consulta dos dados médios do mês de março de 2018 (CNJ, 2018) indicava um total de 633 mulheres grávidas ou amamentando os filhos. As grávidas somavam 317 mulheres. Outras 215 estavam amamentando. Este número vária muito em vista das novas prisões, das crianças que são levadas pelas famílias, das mulheres que são soltas e outros motivos. Isto porque a atualização dos dados é feita todos os dias.
O problema se agravou de 2000 até os dias atuais com o grande aumento do número de mulheres presas. Para se ter uma ideia, segundo os dados do CNJ (2017), em notícia publicada no mês de outubro de 2017, o número de mulheres presas passou de 5.601 em 2000 para 44.721 em 2016. O aumento é de mais de 500%. Com mais mulheres presas o problema da gravidez, da presença de bebês amamentados e de crianças na primeira infância nas prisões aumentou, também.
Ainda assim, Danile Viafiore (2005, p. 92) aponta que no "universo carcerário, poucas são as reflexões acerca dos estabelecimentos prisionais femininos". Isto porque, segundo ela, apesar do crescimento no número de encarceradas, a "mulher presa não representa um número expressivo dentro do cenário prisional brasileiro", representando, pelos dados do Departamento Penitenciário Nacional, as "4,4% da população carcerária brasileira".
Especificamente, sobre grávidas e filhos em companhia, os dados são menores ainda:
Conforme os dados no Ministério da Justiça, no início de 2008, a população prisional feminina brasileira era de 27.000 mulheres, sendo 1,24% das mulheres encontravam-se grávidas, 1,04% possuíam filhos em sua companhia e 0,91% de mulheres encarceradas estavam em período de amamentação. (MELLO; GAUER, 2011, p. 113)
Considerando somente o número de presas em situação de maternidade de filhos recém-nascidos e gestação, o número ainda é menor, mas não menos preocupante conforme indica Daniele Viafiore:
Todavia, não menos alarmante é a situação de uma reclusa grávida. A vida de uma gestante no mundo carcerário é desconhecida, obscura, porém cada vez mais presente nesta crescente população prisional. Viafore (2005, p.99)
Desta forma, este tema importante acaba sendo pouco discutido. Mas as crianças gestadas, nascidas ou crescidas na prisão, são brasileiros que precisam ter seus direitos protegidos. Até para não reproduzir em suas vidas a criminalidade que acompanharam com suas genitoras.
2.1. A realidade das prisioneiras com seus filhos
O tema das mulheres presas em situação desumana ganhou destaque nos últimos tempos com a publicação de vários livros de relatos. Este livros procuram mostrar a dura realidade das prisões para as mulheres e, mais ainda, para as grávidas e as que estão acompanhadas dos filhos pequenos. Entre eles destacam-se três: Contando os dias, As prisioneiras e Presos que Menstruam.
O livro Contando os dias (MARQUES et. al., 2014), conforme o próprio subtítulo, com "relatos de mulheres que vivem atrás das grades, distantes de seus filhos", escrito por vários autores. Outra obra importante é As Prisioneiras, de Dráuzio Varela (2017). Por fim, o livro de Nana Queiróz intitulado Presos que Menstruam (QUEIRÓZ, 2017), que mostra as mulheres sendo tratadas como se fossem homens. Isto é, as prisões não foram adaptadas para a realidade feminina.
Estas obras mostram, através de histórias contadas, a dura realidade das prisões. Quando se lê a vida das presas e os problemas do dia-a-dia dentro das prisões, conclui-se que ali não é o lugar mais adequado para as crianças nascerem e passarem os seus primeiros dias de vida. Já é um lugar inadequado para as mulheres adultas, mais ainda para pequenas crianças e mulheres grávidas.
Para Nana Queiroz "é fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica". Porém, ela lembra que "a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças" (QUEIRÓZ, 2017, p. 19). Então, mesmo na prisão, as mulheres não podem ser tratadas do mesmo jeito que os homens.
Tratando todos os presos da mesma forma, como se todos fossem homem acaba não se considerando os "os bebês nascidos no chão das cadeias" (QUEIRÓZ, 2017, p. 19) e as demais situações envolvendo a maternidade, o cuidado com a gestação, com o parto, com a amamentação e com a criação dos filhos nos primeiros dias de vida.
O doutor Dráuzio Varela fala sobre o mesmo tema usando de sua experiência de onze anos de trabalho voluntário atendendo a realidade das penitenciária feminina da cidade de São Paulo situada onde um dia foi a prisão chamada de Carandiru (VARELA, 2017, p. 9).
Suas observações vão na mesma linha apresentada acima que identifica o tratamento igual entre homens e mulheres e fala da necessidade de cuidados diferenciados entre os gêneros. Ele mostra que enquanto o atendimento das prisões igualam homens e mulheres, até as reclamações de saúde são diferente entre os presos e as presas. Ele fala que:
Em vez de feridas mal cicatrizadas, sarna, furúnculos, tuberculoso, micoses e as infecções respiratórias dos homens, elas se queixavam de cefaleia, dores na coluna, depressão, crises de pânico, afecções ginecológicas, acne, obesidade, irregularidades menstruais, hipertensão arterial, diabetes, suspeita de gravidez.
Portanto, as preocupações com a saúde devem respeitar os diferentes problemas enfrentados pelos homens e pelas mulheres. Na citação acima é fácil verificar que muitas preocupações das mães com sua saúde estão relacionadas com a maternidade.
Contando os dias fala da situação das mães que ficam presas sem seus filhos pequenos e, literalmente, contam os dias para encontrá-los. "Seus filhos não podem morar no local, mas possíveis visitas e saídas das presas para passar um fim de semana em casa, com seus familiares. Contata-se que no tempo do encarceramento "essas mulheres sentem muita falta de seus filhos" (MARQUES et al., 2014, p. 14).
Neste sentido,
A companhia do filho durante o aprisionamento é percebida como um aspecto positivo, o qual a mulher projeta no filho a minimização das dificuldades enfrentada durante este período. (MELLO; GAUER, 2011, p. 117)
Além destas obras citadas, em estudo sobre o problema das mães encarceradas com seus filhos, de 2007, ARMELIN, MELLO E GAUER (2010) resumem os dados do Ministério da Justiça para mostrar como era precária a situação.
Com relação aos estabelecimentos com berçários, foi constatação que apenas 19,61% das prisões femininas possuem berçários ou estruturas separadas das galerias prisionais. As mães passam, em 81,25% dos casos, o período integral com os filhos. Em 12,5% dos casos as mães permanecem no local durante o dia e retornam para as celas durante a noite em companhia de seu filho. Enquanto que 6,23% das presas permanecem no local durante o dia e retornam para as celas sem a companhia da criança. (ARMELIN, MELLO; GAUER, ARQUIVO DIGITAL, pp. 7. - 8)
Os dados confirmam que as prisões foram feitas para punir as mães condenadas, mas não estão preparadas para criar e educar os filhos que acabam indo junto com elas. Então, sem ter cometido nenhum crime, os pequenos acabam privados da defesa de seus interesses prioritários e do desenvolvimento integral. Nem mesmo um berçário é encontrado na maioria das prisões. Isto porque, como mostra Stella (2009, p. 294), ao longo do tempo, o "papel outorgado às mulheres em nossa sociedade é o de serem as primeiras e principais guardiãs das crianças". Então, para as mães presas a sociedade, o direito e o afeto da família continua a responsabilidade pelos cuidados de suas crianças pequenas.
Viofore (2005, p. 99) lembra que a "prisão é fator emocional de constante estresse na vida de qualquer detenta". Contudo o estresse aumenta se com aos problemas prisionais são acrescentados os da gravidez, da amamentação e dos cuidados com um filho pequeno. Seja pelo ambiente de convivência da prisão ou pela estrutura precária. A proximidade entre mãe e filho acaba trazendo reflexos na vida dos inocentes presos, que, em meio ao ambiente da prisão, sem berço, sem banheiro adequado e sem cozinha com higiene, as crianças crescem longe dos olhos da sociedade.
3. OS DIREITOS DA CRIANÇA PRESA
Para falar do direito destas crianças é preciso olhar para a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei 8.069 de 1990. Estas crianças gestadas, condenadas a nascer nas prisões ou nela passar parte dos primeiros dias de vida, também devem ter seus direitos protegidos. A lei protege o direito de todos e destaca o interesse dos mais vulneráveis. As crianças em desenvolvimento devem ser prioridades para a família e para a sociedade.
Esta proteção do Estado, enquanto elas estão presas, deve dedicar cuidados especiais para elas a fim de que não sejam punidas mais ainda. Isto é, para que elas, por causa deste tempo de encarceramento, além de serem atingidas pelas condenações das mães, não acabem marcadas para sempre pelos dias passados na prisão por aquilo que nunca deveram.
Assim, segue um breve estudo da Constituição com relação aos direitos do feto e da criança encarceradas com a mãe nos Direitos e Garantias Fundamentais. Segue, também, algumas anotações sobre estes direitos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Por fim, será feito pequena anotação sobre o que diz a lei processual penal sobre esta situação.
3.1. A criança presa com a mãe e seu direito constitucional
A Constituição apresenta, dentro do Título sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, quatro incisos que podem ser aplicados ao tema em questão. Ao falar de grávidas presas gestantes e de crianças mantidas na prisão junto com as mães, vale lembrar que elas estão ali por tabela, em vista da condenação da mãe. O único crime delas é ter nascido de uma mãe que está sendo acusada ou processada por cometer algum crime.
Os fetos na barriga das mães e os bebês nas prisões também têm seu direito protegido pela Constituição. Não é uma situação fácil, pois o problema tem muitos lados diferentes. De um lado, quem comete um crime não pode deixar de ser punido pelo fato de estar grávida ou ter filhos. Isto poderia provocar uma corrida pela gravidez por parte de mulheres delinquentes.
De outro lado, em vista do tipo de relação estabelecida entre a gestante e o feto ou a mãe e a criança que amamenta, não é fácil falar de garantia de direitos daquele indefeso que por nascer de mãe presa acaba ficando preso com ela e não tendo o conforto próprio do convívio com a família nem garantido seu direito de desenvolvimento integral.
Por fim, para assegurar seus direitos e garantias é preciso assegurar a punição da mãe sem punir o filho. Isto parece muito difícil, porque só o fato de passar os dias da gestação e / ou os primeiros dias de vida no ambiente da prisão já é uma forma de nascer condenado. Mas, ser tirado da mãe e levado para a família ou para abrigo indo ver a genitora somente nos finais de semana, inclusive, se for o caso, privado de amamentação, não parece ser algo bom para uma criança pequena.
O tema é tão importante que o legislador constituinte o incluiu no rol dos direitos e garantias fundamentais colocados no artigo 5o da Constituição de 1988 no qual se lê que "L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação". Portanto, as condições de ambiente favoráveis à gravidez e à amamentação não privilégio para a presa, mas direito dela e especialmente de seu filho gestado ou recém-nascido.
Depois, convém fazer a leitura do inciso LIV que afirma: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". O texto da constituição diz: "Ninguém será privado da liberdade". Então, o caso dos fetos e das crianças encarceradas com suas mães é uma grave exceção para esta regra. Elas ali se encontram por causa do devido processo legal de outra pessoa: sua mãe. Não estão condenadas, porém se encontram privadas de liberdade.
Como consequência do dito no parágrafo anterior, a situação destas crianças serve, também, de exceção para o inciso LVII, pelo qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Estas crianças, pelo fato de nascerem de mães condenadas são atingidas pela condenação.
De certo modo, elas também, mesmo não condenadas, estão presas e para elas serve, também, o disposto no inciso XLIX, para o qual "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral". Mais ainda para elas que estão presas sem nenhuma condenação e sem cometer nenhuma conduta que possa ser considerada crime. Elas sofrem as restrições por não poder ter contato com os demais membros da família. Neste caso, o ambiente deve assegurar o mínimo de "respeito à integridade física e moral"
3.2. Na barriga da mãe ou recém-nascido: os direitos desrespeitados da criança
Além do previsto acima, vale lembrar que a Constituição determina a "absoluta prioridade" do interesse da criança ao normatizar no artigo 227
CF/88 - "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A mesma proteção é retomada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069 de 1990. Desta vez incluindo "todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana" para todas as crianças independente da condição de nascimento. Mas, é bom lembrar mais uma vez, que a situação da criança ainda na barriga da mãe e daquela que vive na prisão com a mãe, especialmente, ali nascendo, cria dificuldade para a aplicação do estabelecido na lei.
O ECA defende todos os meios e facilidades para que o "desenvolvimento físico, mental, espiritual e social" da criança". Pede que ele encontre "condições de liberdade e dignidade" muito difícil de ser visualizada na carceragem, junto com a mãe e longe do resto da família.
Diz o ECA:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.
Em seguida, a Lei faz referência e enfatiza o disposto na Constituição ao afirmar:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Desta forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a política da absoluta prioridade do interesse da criança. Isto porque, esta é uma das fases mais importante da formação humana. Dela depende o futuro da criança e também da sociedade.
Neste sentido, o Código de Processo Penal, Decreto-Lei 3.649 de 1941, com as mudanças processuais de 2011 e 2016, passou a regulamentar o tema considerando esta prioridade absoluta. Então, normatiza da seguinte forma a questão da prisão de mães grávidas e com filhos pequenos:
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
(...)
IV - gestante;
V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; (...)
Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo.
Verifica-se, portanto, com a leitura dos incisos IV e V que está estabelecido o direito de a gestante e a mulher com filho até 12 anos ter substituída a prisão preventiva por domiciliar. Renato Brasileiro de Lima, o inciso IV do artigo 318 que para não conceder a prisão domiciliar o ambiente penitenciário deve "conceder tratamento adequado à gestante" (LIMA, 2017, p. 923).
Em último caso, não havendo condições de medidas alternativas e sendo obrigado à prisão da mulher deve-se aplicar as Regras de Bangkok. O Brasil assinou as Regras de Bangkok (BRASIL, 2016) que se preocupa com o tratamento de mulheres presas e orienta medidas privativas de liberdade no caso das mulheres infratoras.
Estas regras falam de como deve ser a prisão no caso de mulheres grávidas ou com filhos pequenos que precisam ficar com ela. Mas Cerneka (2012) fala que é preciso trabalhar para fazer as Regras de Bangkok produzirem seus efeitos no Brasil.
Entre outras proteções, estas regras contemplam a realidade da mulher mãe em situação de prisão; o fato de que atualmente a grande maioria de mulheres é presa pelo envolvimento com drogas; a realidade das estrangeiras, a questão de saúde em geral e a saúde mental, e o direito de contato com sua família (seja por visita ou por telefone). (CERNEKA, 2012)
A cláusula de número 23 das Regras de Bangkok trata deste assunto e diz o seguinte:
23.
1) Nos estabelecimentos penitenciários para mulheres devem existir instalações especiais para o tratamento das reclusas grávidas, das que tenham acabado de dar à luz e das convalescentes. Desde que seja possível, devem ser tomadas medidas para que o parto tenha lugar num hospital civil. Se a criança nascer num estabelecimento penitenciário, tal fato não deve constar do respectivo registro de nascimento.
2) Quando for permitido às mães reclusas conservar os filhos consigo, devem ser tomadas medidas para organizar um inventário dotado de pessoal qualificado, onde as crianças possam permanecer quando não estejam ao cuidado das mães.
As histórias contadas nos livros citados no item 2.1 (A realidade das prisioneiras com seus filhos) mostram que na realidade das prisões brasileiras não é bem assim. Ainda falta muito para dar cuidados mais humanos para as grávidas, para os partos e para as crianças ali aprisionadas com as mães. Como defende Cerneka (2012) ainda falta muito para o direito e a proteção da maternidade e dos cuidados com as crianças das presas serem devidamente protegidas no Brasil.
Neste mesmo sentido aponta o Marco Civil da Primeira Infância, regulamentado pela Lei 13.257 de 2016. Este documento regulamenta a prioridade do interesse da criança destacando a primeira infância, isto é, os primeiros anos de vida. Na Lei está escrito que:
Lei 13.257, Art. 1o Esta Lei estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano (...)
Neste sentido, para assegurar uma boa primeira infância, a Lei fala de políticas públicas e de programas para atender todas as famílias com o objetivo de proporcionar o desenvolvimento integral da criança. O artigo 14 desta lei sugere importantes políticas e programas para as famílias com gestantes e com crianças nos primeiros anos de vida.
O artigo estabelece que:
Art. 14. As políticas e programas governamentais de apoio às famílias, incluindo as visitas domiciliares e os programas de promoção da paternidade e maternidade responsáveis, buscarão a articulação das áreas de saúde, nutrição, educação, assistência social, cultura, trabalho, habitação, meio ambiente e direitos humanos, entre outras, com vistas ao desenvolvimento integral da criança.
§ 1º Os programas que se destinam ao fortalecimento da família no exercício de sua função de cuidado e educação de seus filhos na primeira infância promoverão atividades centradas na criança, focadas na família e baseadas na comunidade.
§ 2º As famílias identificadas nas redes de saúde, educação e assistência social e nos órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente que se encontrem em situação de vulnerabilidade e de risco ou com direitos violados para exercer seu papel protetivo de cuidado e educação da criança na primeira infância, bem como as que têm crianças com indicadores de risco ou deficiência, terão prioridade nas políticas sociais públicas.
§ 3º As gestantes e as famílias com crianças na primeira infância deverão receber orientação e formação sobre maternidade e paternidade responsáveis, aleitamento materno, alimentação complementar saudável, crescimento e desenvolvimento infantil integral, prevenção de acidentes e educação sem uso de castigos físicos, nos termos da Lei no 13.010, de 26 de junho de 2014, com o intuito de favorecer a formação e a consolidação de vínculos afetivos e estimular o desenvolvimento integral na primeira infância.
§ 4º A oferta de programas e de ações de visita domiciliar e de outras modalidades que estimulem o desenvolvimento integral na primeira infância será considerada estratégia de atuação sempre que respaldada pelas políticas públicas sociais e avaliada pela equipe profissional responsável.
§ 5º Os programas de visita domiciliar voltados ao cuidado e educação na primeira infância deverão contar com profissionais qualificados, apoiados por medidas que assegurem sua permanência e formação continuada.
Todas estas coisas bonitas estão longe da realidade das grávidas e crianças encarceradas. Pelo menos, mais uma vez, é o que mostram os relatos dos livros citados para falar da realidade das prisões. Longe da família, quase sempre sem berçário, em meio a um clima muito pesado e até rebeliões, as crianças crescem distantes do desejado desenvolvimento integral.
Além disto, "o estigma social enfrentado pelos pais presos", estende-se para seus familiares e, portanto, para as crianças (STELLA, 2009, P. 293). Em condições precárias dentro da prisão, os pequenos reclusos inocentes já crescem marcados pelos preconceitos. Assim, levam para a vida as consequências do clima pesado da prisão e são recebidos pela sociedade com preconceitos e não aceitação.
3.3. Sinais de mudança na decisão do HC 143.641
O Código de Processo Penal, no artigo 318, incisos IV e V, como já apresentado, permite a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para as gestantes e mães com filhos até 12 anos. A mesma coisa se encontra autorizada na Lei de Execução Penal, nos incisos III e IV artigo 117, onde se lê:
Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de:
(...)
*III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;
IV - condenada gestante.
Apesar da clareza das duas lei isto não era praticado, levando muitas mulheres gestantes ou com crianças pequenas ao encarceramento. O problema destas presas preventivamente foi amenizado com a decisão do Habeas Corpus 143.641, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski.
Em Habeas corpus coletivo, tendo como paciente todas as mulheres presas preventivas em estado de gravidez ou com criança pequena, pediu-se a aplicação da lei. Na apresentação do problema os impetrantes:
Afirmaram que a prisão preventiva, ao confinar mulheres grávidas em estabelecimentos prisionais precários, subtraindo-lhes o acesso a programas de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto, e ainda privando as crianças de condições adequadas ao seu desenvolvimento, constitui tratamento desumano, cruel e degradante, que infringe os postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e moral da presa. (STF, HC 143.641)
Além disto, confirmando narrativas em relação à situação de aprisionamento na qual estas mulheres se encontravam, os impetrantes:
Arguiram que, embora a Lei de Execução Penal (LEP) determine como obrigatória, nos estabelecimentos penais, a presença de instalações para atendimento a gestantes e crianças, essas disposições legais vêm sendo sistematicamente desrespeitadas. (STF, HC 143.641)
O Ministro Relator Lewandowski concordou com os dados apresentados pelos defensores dos interesses das pacientes afirmando que eles mostram "um descumprimento sistemático de regras constitucionais, convencionais e legais referentes aos direitos das presas e de seus filhos" (STF, HC 143.641). Tanto descumpre a lei que autoriza a prisão domiciliar das presas preventivas quanto as obrigações de dar dignidade para os casos de condenação nos quais a prisão pode ser evitada.
O Ministro conclui que:
Em suma, quer sob o ponto de vista da proteção dos direitos humanos, quer sob uma ótica estritamente utilitarista, nada justifica manter a situação atual de privação a que estão sujeitas as mulheres presas e suas crianças, as quais, convém ressaltar, não perderam a cidadania, em razão da deplorável situação em que se encontram. (STF, HC 143.641)
Por fim, concede a ordem para substituir a prisão preventiva pela domiciliar para "todas as mulheres presas gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes" (STF, HC 143.641). Esta decisão resolveu parte do problema. Mas é preciso considerar a influência materna na vida da criança e as consequências se mãe permanecer na criminalidade. Ocorre que a realidade das penitenciárias continua não atendendo as regras para os casos das mães condenadas que os filhos são encarcerados conjuntamente ou são gestados e nascidos no cárcere.
Assim, tanto encarcerada com a mãe ou assistindo a conduta criminosa da mãe, a crianças sofrerá as consequências. Estas crianças crescidas no ambiente da prisão e dos crimes acabam pagando os erros cometidos pelos pais. E, considerando a influência que a mãe tem sobre a socialização do filho, não se pode perder de vista que a situação de "criminalidade e a prisão materna" ter impacto na vida da criança. (STELLA, 2009, p. 305).