3. MATÉRIAS QUE PODEM SER OBJETO DE INICIATIVA POPULAR
A Constituição Federal de 1988, ao tratar sobre iniciativa popular também o faz para os Estados e Municípios (art.27, §4º e art.29, XIII da CF/88). Em nível estadual, as matérias serão tratadas conforme previsão local, enquanto que em âmbito municipal, as regras são fixadas pela própria CF/88, mas com requisitos diferentes dos que são previstos para a esfera federal.
Além dessa previsão, existem discussões sobre as espécies normativas que podem ser objeto de deflagração popular, conforme será demonstrado nos próximos tópicos do presente trabalho.
3.1 INICIATIVA POPULAR EM LEIS DELEGADAS, MEDIDAS PROVISÓRIAS, DECRETOS LEGISLATIVOS E RESOLUÇÕES
A Constituição Federal de 1988 expressamente admite projeto de lei de iniciativa popular para leis ordinárias e leis complementares, conforme previsão do art.61, § 2º. Entretanto, de acordo com a doutrina de Pedro Lenza (2014, p.635), em geral, não se admite a utilização do instrumento para matérias de iniciativa exclusiva ou reservada, as quais “a Constituição fixou determinado titular para deflagrar o processo legislativo”.
Corrobora com o exposto a lição de Aurélia Carla Queiroga da Silva (2013, p.79):
Assim, a Iniciativa Popular, tal como está disposta na Constituição Federal vigente e na legislação infraconstitucional, somente encontra arrimo para propositura das leis ordinárias e complementares, por tratar-se de uma iniciativa geral, restrita a determinadas matérias(...).
Nesse sentido, não há que se falar em projetos de iniciativa popular no que tange às leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Apesar disso, existem entendimentos doutrinários que consideram a possibilidade de deflagração de processo legislativo pelo povo quando a iniciativa é do Presidente da República, fazendo, para tanto, uso de uma interpretação sistemática da CF/88.
Pedro Lenza (2013, p.632), ao fazer uso desse entendimento, justifica-o “ especialmente diante do sentido maior de titularidade do poder pelo povo, que elege o Presidente da República(...)”.
3.2 INICIATIVA POPULAR EM PROJETO DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO
Ao tratar sobre o instituto em comento, a Carta Magna nada falou sobre a possibilidade de exercê-la em relação a projeto de emenda à Constituição. Em decorrência disso, a doutrina se divide nesse ponto.
Os que argumentam pela impossibilidade, o fazem considerando o rol expressamente previsto no art. 60, I, II e III da CF/88 e o mandamento implícito de que ele não poderia ser alterado.
Por outro lado, uma grande parte da doutrina, a citar José Afonso da Silva, acredita na possibilidade de utilização popular desse instrumento, com base em normas gerais e princípios da Constituição, dentre eles, o art.14, III da CF/88, que atrela o exercício da iniciativa popular à ideia de soberania popular.
De fato, a deflagração popular para PEC é decorrência direta de uma democracia participativa, onde se escuta a vontade política da população. O povo é o titular do poder constituinte originário, portanto, nada mais óbvio que se permita a sua participação enquanto reformador de um diploma constitucional que ele mesmo construiu, aliás, de forma incondicionada e ilimitada.
Sobre o assunto, Aurélia Carla Queiroga da Silva (2013, p.79) discorre acertadamente:
Hodiernamente, não se concebe que o povo, fonte de onde emana todo o poder, incluindo-se o próprio poder constituinte originário, não tenha legitimidade para propor emenda à Constituição. O trato da questão pelo texto constitucional de 1988, restrita apenas às leis ordinárias e complementares, denuncia a timidez do instituto no cenário jurídico nacional, que diante do influxo democrático apregoado pela Nova Hermenêutica libertadora não mais se justifica exigindo-se mudança, em função da revisão do paradigma de valores institucionais ao qual a própria sociedade já se amolda, no sentido de pleitear uma maior participação nos assuntos públicos, com vistas à reinvindicação pela tutela efetiva de seus direitos.
Ademais, este seria um mecanismo bastante eficiente para se prevenir a existência de hiatos constitucionais, que provocam um distanciamento entre o texto político e a realidade social. A ampliação de uma iniciativa faz parte do próprio ideal democrático, uma vez que permite a defesa de direitos desejados por toda a sociedade. Nesse sentido, corrobora o entendimento de Ferreira Filho (1992, p.122):
Destarte o ideal democrático de auto-governo exige que a iniciativa seja estendida, para que todos possam, na medida de seu interesse e de sua capacidade, colaborar na gestão da coisa pública.
Justamente em virtude dessa vontade de participação política que cresce na população, dezesseis Estados no Brasil preveem, em suas Constituições, a iniciativa popular de PEC, a citar São Paulo, Santa Catarina, Espírito Santo, entre outros.
Aliás, este é um mecanismo experimentado em diversos países no mundo. As lições de Paulo Bonavides (2008, p.205) apontam a previsão na Constituição da Itália de 1948, que exige a proposta formulada por no mínimo 50.000( cinquenta mil) eleitores. No mesmo sentido, a Constituição Federal da Suíça, que em seu art.120 também confere ao povo a iniciativa de reforma.
Imperioso destacar, ainda, que o anteprojeto da CF/88 apresentado por Pinto Ferreira previa a iniciativa popular de PEC. Nesse sentido, preleciona Aurélia Carla Queiroga da Silva (2013, p.62):
Na sequência do processo histórico- evolutivo pátrio, foi proposto o Anteprojeto Pinto Ferreira, que apresentava como princípio basilar do Estado Brasileiro a participação direta e organizada da sociedade civil, através do Princípio da Democracia Participativa, consoante disposto no art. 1º do texto que propunha para discussão. O grande mérito deste anteprojeto é conferir à Iniciativa Popular a prerrogativa de propositura tanto de Leis, quanto de Emendas à Constituição, necessitando para tanto, tão somente de um projeto articulado, subscrito por no mínimo 50.000( cinquenta mil) eleitores. Resta claro, que o jurista pernambucano pretendia facilitar e estimular a efetiva participação dos cidadãos nos processos de elaboração das leis, de forma a romper com o paradigma de simples representação política, trazendo à baila os contornos do ideário da Democracia Participativa, como opção sistêmica para o país.
Percebe-se, portanto, que o anseio da sociedade em permitir o alargamento da iniciativa popular como forma de aumentar a sua participação política já era premente na constituinte de 1988. Atualmente, e principalmente em virtude do cenário político em que se acham imersos os brasileiros, a luta pela utilização e fortificação desse instituto é cada vez mais crescente, como será trabalhado a seguir.
4. PERSPECTIVAS DA INICIATIVA POPULAR NO CENÁRIO ATUAL BRASILEIRO
Atualmente, diante dos inúmeros escândalos de corrupção noticiados em nosso país, o povo se vê diante de uma crise de representatividade, onde os governantes não correspondem aos anseios do verdadeiro titular do poder, ao contrário, geram extrema insatisfação na sociedade.
O povo clama pela democracia participativa, já comentada anteriormente nesse trabalho. Assim como no momento da constituinte de 1988, percebe-se uma mobilização da sociedade e das instituições democráticas para aumentarem o seu poder de participação na política do país. Da mesma forma, o instituto da iniciativa popular, enquanto instrumento da democracia participativa, vem recebendo um crescente destaque no cenário brasileiro.
Em decorrência disto, tem-se a tramitação, por exemplo, da PEC 286/13, de autoria do senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que tem como objetivo facilitar a apresentação de projetos de iniciativa popular pela população. Nesse ponto, a PEC propõe importantes mudanças.
Primeiro, diminui o número de assinaturas necessárias a apresentação para 0,5% do eleitorado nacional, distribuídas por, pelo menos, cinco estados, com não menos de 0,1% dos eleitores de cada um deles.
Além disso, prevê a possibilidade de iniciativa popular para PEC, porém, com requisitos diferentes. Nesse caso, seria exigida a assinatura de 1% do eleitorado, também distribuído por cinco estados, com pelo menos 0,3% dos eleitores de cada um deles.
Ainda como inovações importantes, esta PEC prevê a aposição de assinaturas pelo povo através de meios eletrônicos, o que seria mais conveniente e ágil. Por fim, a PEC 286 estabelece, também, preferência na ordem de tramitação para as propostas populares que obtiverem o apoio de, pelo menos, um partido político.
Também está em tramitação na Câmara dos Deputados o PL 7005/2013, de autoria do Senador Serys Slhessarenko (PT/MT), que acrescenta os §§ 3º e 4º na Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, para estabelecer a possibilidade de subscrição eletrônica para apresentação de projeto de lei de iniciativa popular. Além disso, os projetos que não alcançarem o número mínimo de assinaturas tramitarão na forma de sugestões legislativas. Ainda, pode-se citar também o PL 7.003/2010, que indica a utilização de urnas eletrônicas para este fim.
Estes são exemplos de resultados das pressões populares que visam expandir o uso do mecanismo da iniciativa popular no país, de forma a permitir uma maior participação do povo na vida política.
Aliás, demonstra esse crescimento de “vontade de participação” brasileira, a criação, tanto na Câmara, como no Senado de “Comissões Participativas”, como indica Pedro Lenza (2014, p.632-633) em sua obra intitulada “Direito Constitucional Esquematizado”. Nesse contexto, a “ Comissão de Legislação Participativa”, prevista no art.32, XII do RICD, bem como a “ Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, mencionada no art. 102-E do RISF.
Convém destacar que presenciamos, hoje, um movimento formulado e amplamente apoiado pelo Ministério Público Federal que bem demonstra a vontade política da população brasileira e de suas instituições democráticas. A ação pretende colher assinaturas para apresentar ao Congresso um projeto de lei de iniciativa popular que promova alterações estruturais e sistêmicas necessárias para prevenir e reprimir a corrupção de modo adequado.
No próprio site do Ministério Público Federal, temos um apanhado histórico dos escândalos de corrupção que assolaram o Brasil, o que demonstra que os instrumentos utilizados até então para combatê-la não estão sendo eficazes. Como exemplo, tem-se o escândalo do mensalão, a operação Anaconda, e o atual escândalo intitulado “lava jato”.
Como medidas previstas pelo movimento, pode-se citar: o aumento das penas conferidas a esta espécie de crime e a classificação em crime hediondo para corrupção de altos valores; uma maior celeridade nas ações de improbidade administrativa; a reforma da prescrição penal para os crimes de corrupção; a responsabilização dos partidos políticos e a criminalização da prática do “caixa 02”; além da recuperação de todo o lucro obtido com o crime, uma vez que todo o montante ganho ilicitamente será confiscado, culminando com a prisão preventiva caso haja o ocultamento desse valor.
Dessa forma, tendo em vista a ampla aceitação dessas medidas pela população, nos encaminhamos para o quinto projeto de iniciativa popular empenhado pela sociedade brasileira, tendo sido os outros quatro já apresentados em momento anterior neste trabalho.
As mudanças no instituto na iniciativa popular que tramitam no parlamento prometem uma maior utilização do mecanismo pelo povo, o que, com certeza, contribui positivamente em termos de perspectiva para a construção de uma democracia efetivamente participativa do país.