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Ação penal no crime de estupro

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15/05/2019 às 16:10
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A Lei n. 12.015/2009 operou significativas modificações nas regras da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, e foi criada exatamente para tentar simplificar o tema, tendo em vista a alta complexidade do estudo da ação.

RESUMO: A Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, operou significativas modificações nas regras da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, e foi criada exatamente para tentar simplificar o tema, tendo em vista a alta complexidade que era o estudo da ação penal na sistemática anterior.

Palavras-chave: Ação penal. Crime de estupro. Crime complexo. Lesão corporal. Vias de fato. Ameaça. Pessoa vulnerável. Violência doméstica.


1 INTRODUÇÃO

Como é cediço, anteriormente ao advento da Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, a redação original do artigo 225, “caput”, do Código Penal, fixava a ação penal privada como norma geral para a persecução penal na órbita de todos os crimes contra dignidade sexual.

Naquele tempo, prevalecia o entendimento doutrinário de que a justificativa de o legislador infraconstitucional deixar ao alvedrio da vítima (ou dos seus representantes legais) a deflagração do início da ação penal era uma questão de política criminal decorrente daquilo que ficou conhecido como “strepitus iudicci”, isto é, escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal.

Nesse sentido, como bem lembram Alberto Silva Franco e Tadeu Antonio Dix Silva (2007, p. 1101-1102):

Nestes crimes afasta-se, assim, o caráter publicístico contido no art. 100 do CP, que dispõe a ação pública como regra geral. Esta opção se justifica em virtude da natureza destes delitos. A exposição da intimidade da vítima, comum aos processos nestes tipos de crimes, leva o Estado abrir mão do interesse coletivo, em prol do interesse individual. Na verdade, não se afasta a proteção do bem jurídico das mãos do Estado. Simplesmente se pondera a respeito de o próprio processo afetar outras esferas de liberdade e integridade da vítima, que já carrega uma ofensa contra si em razão do crime contra ela cometido. Deste modo incumbe à vítima – ou seus representantes legais – aquilatar sobre a conveniência de promover a ação penal contra o autor do fato delituoso.

Assim, determinados tipos de delitos afetam tão intimamente o valor social das vítimas e a honorabilidade de suas famílias que é preferível o silêncio ao escândalo do processo em torno deles.

Excepcionalmente, se o delito fosse cometido com abuso do pátrio poder (rectius: poder familiar), ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, a ação penal era pública incondicionada (antigo artigo 225, § 1º, II, Código Penal).

De igual sorte, se da violência resultasse lesão corporal grave ou morte, a ação penal também era pública incondicionada.

Por outro lado, se a vítima ou seus pais não pudessem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, a ação penal era pública condicionada à representação do ofendido (antigo artigo 225, § 1º, I, c/c o § 2 º, Código Penal).

Além dessas hipóteses, o Pretório Excelso sumulou o seu entendimento jurisprudencial dispondo na Súmula n. 608 que “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”.

Destarte, firmou-se o entendimento de que no caso de crime de estupro ou atentado violento ao pudor ainda que resultasse apenas lesão corporal leve, a ação penal passava a ser pública incondicionada.

Diante desta verdadeira celeuma o legislador infraconstitucional tentou unificar a questão, de sorte que, a partir da vigência do novel diploma legal, estabeleceu, no próprio artigo 225, “caput”, do Código Penal, como regra geral, a ação penal pública condicionada para todos os crimes contra a dignidade sexual. Excepcionando-se, contudo, as hipóteses de vítimas menores de 18 (dezoito) anos ou vulneráveis, nas quais as ações penais serão públicas incondicionadas.


2 NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO PENAL NO CRIME DE ESTUPRO

Para melhor elucidar a questão é necessário analisar a ação penal no crime de estupro em suas diversas modalidades, quer quando for praticado na sua forma simples com lesão corporal leve ou grave ameaça, vias de fato, quer quando for qualificado pelo resultado lesão corporal grave (ou gravíssima), morte da vítima, conforme se verá a seguir:

2.1 Crime de Estupro Simples Praticado com Lesão Corporal Leve

Sob a égide da legislação revogada, a doutrina de um modo geral não era uníssona a respeito do tipo de ação penal que devia prevalecer no crime de estupro com resultado lesão corporal leve. Assim, existiam posicionamentos bastante divergentes, tendo em vista que o mérito da celeuma girava em torno da aplicação da regra da ação penal no crime complexo em confronto com o antigo “caput” do artigo 225 do Código Penal.

Segundo Damásio E. de Jesus (2010, p. 237), crime complexo em sentido estrito é aquele formado pela junção de dois delitos autônomos, formando-se uma nova figura, ao passo que crime complexo em sentido amplo é aquele formado por apenas um crime acrescido de outros elementos típicos que, sozinhos, não configuram crimes.

Aliás, o artigo 101 do Código Penal estabelece o seguinte:

Art. 101. Quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do Ministério Público.

Ora, conforme se verifica pelo dispositivo legal supracitado, o simples fato de um dos delitos, que compõe o crime complexo, ser de ação penal pública tem o condão de sujeitar todo o crime complexo as regras da ação penal pública.

Por outro lado, o “caput” do antigo artigo 225 do Código Penal estabelecia como regra geral a ação penal privada para todos os crimes contra os costumes.

Em face disso, é conveniente transcrever a breve síntese exposta por Fernando Capez (2010, p 577), nos seguintes termos:

Para alguns, a regra do art. 101 tinha preponderância sobre a do art. 225, asseverando que, se o crime fosse praticado com violência real (isto é, não presumida), a ação seria pública incondicionada: se praticado mediante violência ficta, teria aplicação a norma do art. 225. Este era, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (Súmula 608).

Para outros, teria prevalência o art. 225, haja vista sua especialidade em relação ao art. 101, localizado na Parte Geral do Código Penal e aplicável a todo e qualquer crime complexo.

Para uma terceira posição, além de admitir a especialidade do art. 225 sobre o art. 101 e, por isso, derrogá-lo, este último não teria aplicação aos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, porque nenhuma dessas infrações seria complexa. Tanto uma quanto a outra compor-se-iam de um único fato típico: o constrangimento ilegal, dirigido a uma finalidade especial, qual seja, à realização da conjunção carnal ou do ato libidinoso daquela diverso. Estes (ato libidinoso diverso da conjunção carnal e a própria conjunção carnal) não constituiriam, por si sós, ilícito algum.

Portanto, de um modo geral a doutrina criticava a posição adotada pela Corte Maior ao editar a súmula 608, isto porque tecnicamente o crime de estupro simples com lesão corporal leve não é considerado um crime complexo em sentido estrito, mas sim um crime complexo em sentido amplo.

Segundo Alberto Silva Franco e Tadeu Antonio Dix Silva (2007, p 1106), é bom lembrar que o resultado lesão corporal leve (ou vias de fato) não tem o condão de transmudar o crime de estupro em delito complexo em sentido estrito, eis que ele constitui elementar do crime, contido na violência descrita no “caput” do artigo 213 do Código Penal, e, por via de consequência, é absorvida por esta, “em razão da subsidiariedade implícita ou tácita”.

Na verdade, ao criar a súmula 608 o Pretório Excelso tinha por intenção sanar as distorções provocadas pela regra geral da ação penal privada, proferindo, destarte, decisão de cunho eminentemente político.

Nessa linha de argumentação, é de todo procedente transcrever a preciosa observação feita pelo eminente Fernando da Costa Tourinho Filho (2010, p. 445), nos seguintes dizeres:

Alguém ousará duvidar que os responsáveis pela elaboração daquele preceito sumular não sabiam que o crime de estupro não se ajusta ao modelo definido no art. 101 do CP? Que motivos os conduziram a excluir, também, a grave ameaça? A nosso juízo, esta é a razão: como a crônica judiciária não registra, com freqüência, casos de estupro com grave ameaça e como, de regra, os crimes de estupro, em quantidade extraordinária e alarmante são cometidos mediante violência da qual resulta lesão leve, o STF, provocado por meio de recurso e habeas corpus, e procurando amparar, mais ainda, a honra das vítimas desses crimes, guindou-os à posição de crime de ação pública incondicionada.

Portanto, conforme se vê, ao elevar o crime de estupro simples com lesão corporal de natureza leve ao “status” de crime de ação penal pública incondicionada, a Excelsa Corte objetivou dar maior guarida as vítimas agredidas.

Atualmente, sob a égide da Lei n. 12.015/09, a doutrina tem se inclinado no sentido de que a celeuma jurídica supracitada encontra-se superada, de modo que havendo crime de estupro simples com lesão corporal leve a ação penal será pública condicionada à representação, nos termos do “caput” do artigo 225 do Código Penal.

É esse o posicionamento defendido por André Estefam (2010, p.25), segundo o qual quando o estupro for praticado com lesão corporal leve a ação penal pública se procederá mediante representação do ofendido, por força do “caput” do artigo 225 do Código Penal.

Logo, se outrora se justificava um tratamento diferenciado para o crime de estupro praticado mediante lesão corporal leve, adotando-se para tanto a regra da ação penal pública incondicionada, tendo em vista os malefícios que a regra geral da ação penal privada poderia ocasionar para a vítima de tais crimes, atualmente com o advento da regra geral da ação penal pública condicionada a representação para os crimes contra a dignidade sexual, tal argumento não pode mais prosperar.

2.2 Crime de Estupro Praticado com Grave Ameaça

Na legislação anterior haviam dois entendimentos a respeito do tipo de ação penal que devia vigorar no crime de estupro praticado com grave ameaça.

Para alguns, o crime de estupro com grave ameaça estava sujeito às regras da ação penal pública incondicionada, por força da aplicação do artigo 101 do Código Penal. Para outros, ocorrendo o crime de estupro perpetrado com grave ameaça, prevalecia a regra geral da ação penal privada, eis que a grave ameaça fazia parte da elementar contida no tipo previsto no “caput” do artigo 213 do Código Penal.

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Atualmente, pelas mesmas razões a discussão que existia antes ainda prevalece, de sorte há dois posicionamentos.

Para alguns, a ação penal seguirá a regra geral prevista no “caput” do artigo 225 do Código Penal, qual seja ação penal pública condicionada à representação. Nesse sentido, Damásio Evangelista de Jesus (2010, p 341), segundo o qual “é crime de ação penal pública condicionada a representação, salvo se se tratar de vítima menor de 18 anos ou pessoa vulnerável, caso em que a ação passa a ser incondicionada”.

Em sentido contrário, havendo crime de estupro praticado com grave ameaça, a ação penal é pública incondicionada, pois, segundo Flávio Monteiro de Barros (2010, p 26), “o estupro com grave ameaça também é crime complexo e, por isso, a súmula deveria ser aplicada, tendo em vista que um dos delitos componentes é o constrangimento ilegal, cuja ação é pública incondicionada”.

2.3 Crime de Estupro Qualificado pelo Resultado Lesão Corporal Grave ou Morte

Antes da reforma introduzida nos crimes sexuais, ocorrendo o resultado lesão corporal grave (ou gravíssima) ou a morte da vítima, no crime de estupro, era pacífico o entendimento de que a ação penal, em qualquer caso, era pública incondicionada. Havia, contudo, divergência doutrinária sobre o fundamento legal que justificava a ação penal pública incondicionada, de modo que surgiram dois posicionamentos.

Para alguns, tratava-se de aplicação da norma prevista no artigo 100 do Código Penal, eis que através de uma exegese sistemática do antigo artigo 225 do Código Penal, concluía-se que o “caput” de tal dispositivo legal ao fazer menção expressa à aplicação da ação penal privada aos crimes previstos nos “capítulos anteriores”, estaria excluindo, por via de consequência, as formas qualificadas pelo resultado, que estavam encartadas no mesmo capítulo deste dispositivo legal.

Para outros, aplicava-se a regra da ação penal no crime complexo, pois o crime de estupro qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte possui a natureza de crime complexo em sentido estrito.

Atualmente, sob o prisma da nova lei, a discussão anterior ainda prevalece, de forma que há alguns posicionamentos divergentes.

Para alguns, a ação penal é de iniciativa pública incondicionada, conforme os termos do artigo 101 do Código Penal e da Súmula n. 608 do Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido, Alessandra Orcesi Pedro Greco e João Daniel Rassi (2010, p. 25), prescrevem a seguinte lição:

Havendo lesão corporal grave ou morte, aplica-se a figura do crime complexo e, portanto, a regra do art. 101 do Código Penal, como o Supremo Tribunal Federal fez com a simples lesão leve, que poderia, em tese, estar excluída dessa norma se se entendesse que o art. 101 se aplicaria apenas aos crimes complexos propriamente ditos, ou seja, aqueles em que há pelo menos dois crimes em seus elementos

Portanto, segundo esse entendimento, como o crime de estupro qualificado pela lesão corporal grave (ou gravíssima) ou pela morte pode ser considerado um crime complexo, aplica-se a regra do artigo 101 do Código Penal, de modo que a ação penal é pública incondicionada.

Para outros, trata-se de ação penal pública condicionada à representação, eis que o artigo 225 do Código Penal prevalece em face do artigo 101 do Código Penal, seja porque aplica-se o princípio da especialidade (o artigo 225 encontra-se previsto na Parte Especial do Código Penal, logo prevalece sobre o artigo 101), seja porque aplica-se o critério cronológico (é princípio assente em hermenêutica de que a norma posterior revoga a anterior)

Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes tece o seguinte comentário:

A ação penal no crime de estupro com resultado morte ou lesão corporal grave, em síntese, é pública condicionada. Impossível aplicar o art. 101 do CP, por duas razões: 1ª) a norma do art. 225 do CP é especial (frente ao art. 101 que é geral); 2 ª) a norma do art. 225 é posterior (o que afasta a regra anterior).

É possível, contudo, admitir-se fundamento diverso do acima exposto, eis que segundo os ensinamentos de Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, o “caput” do artigo 225 do Código Penal revogou a Súmula n. 608. Ou seja, pela literalidade desse dispositivo legal, ao estabelecer que nos crimes previstos nos Capítulos I e II do Título VI do Código Penal, chega-se a conclusão de que estaria abarcando, destarte, tanto o estupro em sua forma simples como qualificada, logo segundo essa exegese, as formas qualificadas de estupro estão sujeitas as regras da ação penal pública condicionada à representação.

Portanto, a divergência doutrinária, mesmo após o advento da nova lei, permanece, devendo futuramente haver uma uniformização por parte da Corte Maior.

2.4 Crime de Estupro Praticado com Vias de Fato

Na legislação anterior, se do crime de estupro resultasse vias de fato, prevalecia o entendimento de que a ação penal era de iniciativa privada, escapando, portanto, da órbita de aplicação do artigo 101 do Código Penal, tendo em vista que se trata de contravenção penal (Decreto-Lei n. 3.688/41, artigo 21).

Segundo Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto (2007, p. 291), a contravenção penal de vias de fato não faz parte do conceito de crime complexo, não se aplicando, destarte, a regra prevista no artigo 101 do Código Penal, a qual exige para a configuração deste “elemento ou circunstância do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes”, logo se aplica a regra geral da ação penal privada.

Atualmente, é possível aplicar as mesmas razões que prevaleciam antes, de modo que havendo crime de estupro praticado com vias de fatos a ação penal será, pública condicionada à representação, nos termos do artigo 225, “caput”, do Código Penal, já que não incidirá a regra da ação penal no crime complexo, conforme supracitado.

2.4 Crime de Estupro Praticado contra Pessoa Vulnerável ou Vítima Menor de Dezoito Anos

Na legislação anterior, se ocorresse um crime de estupro praticado em situação de violência ficta ou presumida (isto é, se a vítima não fosse maior de quatorze anos; se ela fosse alienada ou débil mental, e o agente tinha ciência dessa circunstância; a vítima não era capaz, em razão de qualquer circunstância, de apresentar resistência – conforme as alíneas “a”, “b” e “c”do antigo artigo 224) a ação penal era de iniciativa privada.

Atualmente, se ocorrer qualquer das hipóteses supracitadas a ação penal será pública incondicionada, nos termos do parágrafo do novo artigo 225 do Código Penal, eis que, segundo Eduardo Luiz Santos Cabette (2010, p 152), as hipóteses de violência presumida passaram a ser as hipóteses de pessoa vulnerável.

Por outro lado, se naquela época ocorresse um crime de estupro praticado com abuso do poder familiar, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, a ação penal era pública incondicionada. Atualmente, se ocorrer qualquer dessas hipóteses, a ação penal será pública condicionada a representação, nos termos do “caput” do atual artigo 225 do Código Penal, salvo se se tratar de vítima menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável, em que a ação penal passará a ser pública incondicionada.

2.5 Crime de Estupro Praticado com Lesão Corporal em Situação de Violência Doméstica

O tipo de ação penal que deverá regrar o crime de estupro em que houver lesão corporal em situação de violência contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, será o mesmo aplicado ao artigo 129, § 9°, do Código Penal. Com relação a isto, surgiram dois posicionamentos.

Para alguns, a ação penal por crime de lesão corporal em situação de violência doméstica é de natureza pública incondicionada, uma vez que o artigo 41 da Lei n. 11. 340/2006 eliminou para essa hipótese a aplicação da Lei n. 9.099/95.

Nesse sentido, Thiago André Pierobom de Ávila defende o seguinte posicionamento:

Há muita divergência quanto à interpretação do dispositivo, mas, em nosso entendimento, a ação penal do delito de lesão corporal doméstica contra a mulher deve ser pública incondicionada, seja porque não se aplica o art. 88 da Lei n. 9.099/95 (que estabelece que o crime de lesões corporais somente se procede mediante representação), seja porque o tipo do art.129, § 9°, não é de lesão corporal simples, mas sim uma lesão corporal qualificada, seja, especialmente, porque há razões de política criminal que justificam se prescindir da vontade da vítima – em regra viciada pela pressão psicológica de uma sociedade machista que reluta em responsabilizar os homens que praticam atos de violência doméstica, acobertados pelo mito de que a responsabilização implica em retirar a ‘paz familiar’, o que jamais permite a mudança de paradigmas.

Assim, segundo esse entendimento, havendo crime de lesão corporal em situação de violência doméstica, a ação penal é pública incondicionada, tendo em vista que pela sistemática da Lei da Maria da Penha não se aplica o artigo 88 da Lei n. 9.099/95, demais disso, o delito previsto no § 9° do artigo 129 do Código Penal é um tipo de lesão corporal na forma qualificada, e, por fim, porque por razões de política criminal não depende da vontade da vítima.

Nessa linha de argumentação, a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça também decidiu que o crime de lesão corporal em situação de violência doméstica se procederia por meio de ação penal pública incondicionada, conforme se verifica pelo acórdão abaixo transcrito:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. LESAO CORPORAL LEVE PRATICADA COM VIOLÊNCIA FAMILIAR CONTRA A MULHER. INAPLICABILIDADE DA LEI 9.099/95 E, COM ISSO, DE SEU ART. 88, QUE DISPÕE SER CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO O REFERIDO CRIME. AUSÊNCIA DE NULIDADE NA NÃO-DESIGNAÇÃO DA AUDIÊNCIA PREVISTA NO ART. 16 DA LEI MARIA DA PENHA, CUJO ÚNICO PROPÓSITO É A RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. PARECER MINISTERIAL PELA CONCESSÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA.

1. Esta Corte, interpretando o art. 41 da Lei 11.340/06, que dispõe não serem aplicáveis aos crimes nela previstos a Lei dos Juizados Especiais, já resolveu que a averiguação a lesão corporal de natureza leve praticada com violência doméstica e familiar conta a mulher independe de representação. Para esse delito, a Ação Penal é incondicionada (REsp. 1.050.276/DF, Rel. Min. JANE SILVA, DJU 24.11.08).

2. Se está na Lei 9.099/95, que regula os Juizados Especiais, a previsão de que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais e lesões culposas (art. 88) e a Lei Maria da Penha afasta a incidência desse diploma despenalizante, inviável a pretensão de aplicação daquela regra aos crimes cometidos sob a égide desta Lei.

3. Ante a inexistência da representação como condição de procedibilidade da ação penal em que se apura lesão corporal de natureza leve, não há como cogitar qualquer nulidade decorrente da não realização da audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/06, cujo único propósito é a retratação

Portanto, em suma, o aresto acima transcrito reafirma a ideia de que a ação penal, no crime de lesão corporal em situação de violência doméstica, é de natureza pública incondicionada, eis que o próprio artigo 41 da Lei da Maria da Penha ao excluir a aplicação da Lei n. 9.099/95 estaria, por via de consequência, excluindo o artigo 88 dessa lei.

Por outro lado, para um segundo entendimento, a ação penal por crime de lesão corporal em situação de violência doméstica é de natureza pública condicionada à representação, uma vez que, pelo princípio da unicidade, deve-se fazer uma interpretação restritiva do artigo 41 da Lei n. 11.340/06, de sorte que tal dispositivo legal, ao mencionar que não se aplica a Lei n. 9.099/95 no âmbito da Lei da Maria da Penha, estaria apenas excluindo os institutos despenalizadores, dos quais o artigo 88 da Lei n. 9.099/95 não estaria incluído.

Nessa esteira de pensamento, é firme o entendimento proferido por Damásio E. de Jesus (2010, p. 472), exarado nos seguintes dizeres:

Segundo entendemos, a Lei n. 11.340/2006 não pretendeu transformar em pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contrariaria a tendência brasileira da admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima e dela retiraria ter à sua disposição meios de restaurar a paz no lar. Público e incondicionado o procedimento policial e o processo criminal, seu prosseguimento, no caso de a ofendida desejar extinguir os males de certas situações, só viria piorar o ambiente doméstico, impedindo reconciliações. O propósito da Lei foi o de excluir a permissão da aplicação de medidas relacionadas com penas alternativas que considerou inadequadas para a hipótese legal, como a multa como a única sanção e a prestação pecuniária, geralmente consistente em ‘cestas básicas’ (art.17). O referido art. 88 da Lei n. 9.099/95 não foi revogado nem derrogado. Caso contrário, vias de fato e lesão corporal comum seriam também de ação penal pública incondicionada, o que consistiria em retrocesso inaceitável. Além disso, de ver-se o art. 16 da Lei n. 11.340/2006: não teria sentido falar em renúncia à representação se ação penal fosse pública incondicionada.

Logo, segundo o entendimento defendido pelo eminente penalista, o crime de lesão corporal em situação de violência doméstica estaria sujeito às normas da ação penal pública condicionada à representação, eis que o objetivo da Lei da Maria da Penha, ao mencionar que não se aplicaria a Lei n. 9.099/95 aos seus crimes, é excluir apenas as penas alternativas. Do contrário, o artigo 16 da Lei 11.340/2006 seria de todo desnecessário.

Ocorre que a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, resolveu rever o seu entendimento, dispondo o seguinte:

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. LEI MARIA DA PENHA. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. NECESSIDADE. ORDEM CONCEDIDA.

1. A Lei Maria da Penha é compatível com o instituto da representação, peculiar às ações penais públicas condicionadas e, dessa forma, a não-aplicação da Lei 9.099/95, prevista no art. 41 daquela lei, refere-se aos institutos despenalizadores nesta previstos, como a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo.

2. O princípio da unicidade impede que se dê larga interpretação ao art. 41, na medida em que condutas idênticas praticadas por familiar e por terceiro, em concurso, contra a mesma vítima, estariam sujeitas a disciplinas diversas em relação à condição de procedibilidade.

3. A garantia de livre e espontânea manifestação conferida à mulher pelo art. 16, na hipótese de renúncia à representação, que deve ocorrer perante o Magistrado em audiência especialmente designada para esse fim, justifica uma interpretação restritiva do art. 41.

4. O processamento do ofensor, mesmo contra a vontade da vítima, não é a melhor solução para as famílias que convivem com o problema da violência doméstica, pois a conscientização, a proteção das vítimas e o acompanhamento multidisciplinar com a participação de todos os envolvidos são medidas juridicamente adequadas, de preservação dos princípios do direito penal e que conferem eficácia ao comando constitucional de proteção à família.

5. Ordem concedida para restabelecer a decisão proferida pelo Juízo de 1º grau.

Em suma, nota-se, através do acórdão transcrito acima, que havendo o crime de lesão corporal em situação de violência familiar, a ação penal dependerá da condição de procedibilidade, eis que a representação melhor se coaduna com os objetivos impostos pela Lei da Maria da Penha.

Portanto, na hipótese de prevalecer o entendimento de que o crime de lesão corporal praticado no ambiente doméstico e familiar deverá se proceder mediante ação penal pública condicionada a representação, igual solução deverá ser aplicada para o crime de estupro praticado com lesão corporal em situação de violência doméstica. De igual sorte, se prevalecer o entendimento da ação penal pública incondicionada, a mesma solução deverá ser dada para o crime de estupro praticado com lesão corporal em situação de violência doméstica.

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Sobre o autor
Michel Armando Nishizima

Discente do 10º termo do Curso de Direito das Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NISHIZIMA, Michel Armando. Ação penal no crime de estupro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5796, 15 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67431. Acesso em: 22 dez. 2024.

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