6. AUSÊNCIA DE INSCRIÇÃO DE GRAVAME/PENHORA NO CARTÓRIO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO – ATUAÇÃO CONFORME A LEI
Como se sabe, deve-se sempre exigir a adoção de uma postura diligente pelo terceiro na realização de negócios jurídicos. A atuação cautelosa é configurada com a consulta no Registro Público, em relação aos bens em que necessitem registro, ou, nos demais casos, a verificação de certidões fiscais que possibilitem a identificação inscrição na dívida ativa.
No tocante aos bens não sujeitos à registro objetos de transação, para a prevenção da fraude à execução, é razoável a exigência de obtenção de certidões, mas, em regra, apenas àquelas obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem, tal como passa a ocorrer no caso das execuções não fiscais após a edição do Código Processual de 2015. Não se deve, desse modo, presumir absolutamente a fraude à execução, sob pena de engessar ou inviabilizar dos atos negociais, através da burocratização excessiva relativa à obtenção de certidões ou da ausência de segurança jurídica.
No tocante aos bens sujeitos a registro, é ainda mais evidente o descompasso entre a interpretação conferida ao art. 185 do CTN pelo STJ e o restante do ordenamento jurídico, visto que, caso impere uma presunção absoluta de fraude à execução, estar-se-ia quebrando da confiança do administrado com pessoa jurídica prestadora de serviço público, esvaziando de eficácia sua função precípua: a de conferir segurança jurídica através de atos registrais.
Ademais, qualquer dúvida acerca de tal observação pode ser dirimida ao se observar a Lei nº7.433/85 (alterada pela Lei 13.097/15), relativa à lavratura de atos notariais, que atribui ao Tabelião a responsabilidade de consignação de certidões fiscais e de certidões de ônus reais:
Lei nº 7.433/85
Art 1º - Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei.
(...)
§2ºo Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição”. (Redação dada pela Lei 13.097/2015).
§ 3º - Obriga-se o Tabelião a manter, em Cartório, os documentos e certidões de que trata o parágrafo anterior, no original ou em cópias autenticadas. (grifo nosso)[16].
A partir do dispositivo transcrito, percebe-se que a previsão legal obriga o registro de qualquer gravame/penhora sobre o imóvel e exige expressamente, inclusive, a manutenção das certidões de débitos fiscais, de propriedade e de ônus reais relativas ao imóvel em cartório.
A partir dessa constatação, no caso de não haver consignação de qualquer gravame/penhora na lavratura da escritura pública de compra e venda, chega-se a duas conclusões relevantíssimas: 1) a omissão do registro de certidões fiscais e ônus reais pode ser imputada ao Tabelião ou à Fazenda Pública, mas jamais ao terceiro adquirente de boa-fé 2) A lei deve ser aplicada tanto nos casos que envolvem execuções fiscais, quanto naqueles que envolvem execuções não fiscais, em virtude da menção expressa a débitos fiscais.
Em relação ao primeiro ponto, percebe-se que, uma vez que fosse admitida uma presunção absoluta de má-fé em face do terceiro adquirente, estar-se-ia, em verdade, punindo que aquele que a todo tempo agiu em estrita observância à legalidade em sua atuação negocial e ferindo o princípio da confiança do administrado, já que a embargante concretizou o negócio jurídico perante a tutela de órgão que exercia serviço público por delegação.
Já no tocante à segunda constatação, destaca-se que não só a lei deixou de fazer qualquer ressalva a respeito de sua aplicação aos casos de execução fiscal, como tratou explicitamente acerca da responsabilidade do Tabelião de consignar as certidões fiscais, sendo incabível o argumento de que a norma teria sua aplicabilidade afastada em razão da especialidade no tocante às execuções fiscais.
Conclui-se, dessa forma, que, embora se possa admitir uma presunção legal relativa de fraude à execução fiscal de imóvel por sujeito inscrito na dívida ativa nas alienações diretas, não é plausível tornar tal presunção absoluta, impossibilitando a defesa do terceiro de boa-fé, posto que contrário ao ordenamento jurídico brasileiro.
TERCEIRO DE BOA-FÉ – ALIENAÇÕES SUCESSIVA
Outro ponto relevante a se discutir é o caso das alienações sucessivas, que se refere àqueles casos em que o sujeito que sofreria a perda do bem sequer teria participado da relação jurídica que teria ensejado a fraude à execução, trata-se de situações em que o terceiro de boa-fé adquire imóvel de pessoa diversa da qual houve imputação do ato ilícito fraudulento.
Tais casos não são análogos ao do REsp nº. 1.141.990/PR, no entanto, alguns tribunais passaram a utilizar a decisão paradigmática para embasar a persecução do bem alienado fraudulentamente na relação jurídica originária, mesmo quando posteriormente alienados a terceiros de boa-fé que figuram em posição distante da relação ilícita do ponto de vista da cadeia dominial do imóvel.
Há diversos julgados afastando esse tipo de interpretação, a exemplo de decisão que espelha o entendimento da Terceira Turma do Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª Região, denunciando não ser razoável exigir do último comprador que investigue toda a cadeia dominial do imóvel, em busca de certidões negativas dos proprietários anteriores, acrescentando ainda que não pode o embargante ser penalizado pela inércia da Fazenda que não realizou o registro da penhora na matrícula do imóvel:
PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE TERCEIRO EM EXECUÇÃO FISCAL. ALIENAÇÃO SUCESSIVA DE IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE REGISTRO DA PENHORA. BOA-FÉ DO ADQUIRENTE. FRAUDE À EXECUÇÃO NÃO CONFIGURADA. APELAÇÃO NÃO PROVIDA.
1. Insurgência recursal contra sentença que julgou procedente o pedido formulado em embargos de terceiros para determinar o levantamento da penhora realizada nos autos da execução fiscal nº. 0002053-55.2005.4.05.8001 sobre o imóvel de matrícula nº. 39740.
2. O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o REsp nº. 1141990/PR, consolidou o entendimento de que "(...) a alienação engendrada até 08.06.2005 exige que tenha havido prévia citação no processo judicial para caracterizar a fraude à execução; se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar nº. 118/2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude; (...)".
3. A aplicação do entendimento adotado no REsp nº. 1141990/PR não deve ser automática, devendo-se atentar para as peculiaridades de cada caso, podendo a presunção de fraude ser afastada quando o terceiro comprovar de forma inequívoca a sua boa-fé, a qual somente pode ser alegada quando não houver o registro de penhora ou de qualquer gravame sobre o bem.
4. Não se vislumbra a má-fé do embargante, ora apelado, uma vez que adquiriu o imóvel objeto de venda sucessiva, sem que houvesse qualquer indício de ocorrência de conluio fraudulento entre ele e o vendedor ou entre ele e o executado originário.
5. No caso de alienações sucessivas de imóveis, não é razoável exigir do último comprador que investigue toda a cadeia dominial do imóvel, em busca de certidões negativas dos proprietários anteriores, sendo suficiente que a última compra tenha seguido todos os trâmites legais.
6. O embargante não pode ser penalizado pela inércia da Fazenda Nacional que não realizou o registro da penhora na matrícula do imóvel, deixando de dar publicidade a terceiros acerca da constrição realizada.
7. Não se pode olvidar que o artigo 8º do Código de Processo Civil preceitua que o juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico, atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando, dentro outros princípios, a proporcionalidade e a razoabilidade.
8. É válida, portanto, a alienação à terceiro, que adquiriu o bem sem conhecimento da constrição judicial, amparado pela boa-fé, de modo que, não constatada a existência de fraude à execução na aquisição feita pelo mesmo, é de se considerar como ilegítima a penhora levada a efeito nos autos da execução fiscal, sendo a manutenção da sentença medida que se impõe.
9. Honorários recursais, previstos no art. 85, parágrafo 11 do Código de Processo Civil, a cargo da apelante, devendo a verba honorária sucumbencial ser majorada de 10% para 12% sobre o valor da condenação.
10. Apelação não provida. (...)[17]
No julgado, por entender que a interpretação e a aplicação da norma jurídica tenham como corolário a boa-fé, na Turma citada, chegou-se à conclusão de que “não haveria como considerar irrelevante eventual inexistência de registro de gravame/penhora, à época da alienação”, afastando a presunção absoluta da fraude em tais casos.
Ademais, há entendimento em sede decisões monocráticas no próprio STJ, afastando a presunção absoluta de fraude à execução no caso das alienações sucessivas. Para chegar a tal conclusão, o Excelentíssimo Ministro Relator Herman Benjamin[18] utilizou como justificativa o fato de que, de acordo com a previsão legal do art. 185 CTN, a presunção de fraude à execução só ocorreria em relação ao sujeito em débito com a Fazenda Pública. Ou seja, em relação a crédito regularmente inscrito como dívida ativa, o que não ocorreria no caso das alienações sucessivas, dado que só haveria inscrição de débito em dívida ativa do alienante originário, mas não daqueles que revenderam o imóvel em seguida.
Trata-se, na verdade, de afastamento, por vias oblíquas, da aplicação irrestrita da presunção absoluta de fraude à execução sedimentada em sede de recursos repetitivos pelo STJ, buscando-se salvaguardar os direitos do terceiro de boa-fé, que participou de alienação em estrita observância do ordenamento jurídico, através do isolamento do contexto de fraude à execução à alienação fraudulenta originária, considerando-se válidas as demais, sem, contudo, afrontar diretamente o precedente estabelecido pela Corte.
Sendo assim, no tocante às alienações sucessivas, a situação é diferente, uma vez que a presunção relativa deve militar a favor da boa-fé do terceiro que adquiriu imóvel sem qualquer gravame/penhora no Cartório de Registros Imobiliários, dado que sequer participou da relação fraudulenta originária.