RESUMO: Estuda-se o papel da inspeção do trabalho em face do atual regramento acerca da sobrejornada em ambientes insalubres após a Reforma Trabalhista. Busca-se, através da análise de natureza técnica, legal e constitucional das normas de proteção à saúde do trabalhador e sua relação com o espaçamento da jornada de trabalho, interpretar o art.60 da CLT e o seu novel art. 611-A, item XIII, e, apreender o seu adequado e harmônico sentido, com base nos métodos científicos de interpretação jurídica, como o lógico-racional, o sistemático e o teleológico. Apresenta-se a questão da limitação do tempo de exposição do trabalhador aos agentes insalubres. Destacam-se os entendimentos díspares do TST acerca da sobrejornada em ambientes insalubres ao longo dos últimos anos, e, a Reforma Trabalhista: negociação coletiva e sobrejornada em ambientes insalubres.
Palavras-chave: Reforma Trabalhista. Inspeção do Trabalho. Ambiente Insalubre. Autorização para a prorrogação da jornada de trabalho.
1 INTRODUÇÃO
O presente texto objetiva demonstrar o relevante papel social da Inspeção do Trabalho na prevenção de agravos à saúde do trabalhador, por meio de seus auditores-fiscais do trabalho, em particular, no que tange a sua competência para autorizar a prorrogação da jornada de trabalho em atividades insalubres, após proceder aos necessários exames locais e à verificação dos métodos e processos de trabalho, e, também, sua competência para realizar, a posteriori, a fiscalização do trabalho adicional na atividade insalubre e, se ficar comprovado o risco à vida ou à saúde do trabalhador, diligenciar as medidas necessárias ao restabelecimento de um ambiente de trabalho hígido.
Para tanto, procede-se a análise de natureza técnica, legal e constitucional das normas de proteção à saúde do trabalhador e sua relação com o espaçamento da jornada de trabalho. Realiza-se, também, a leitura da jornada e duração laborais e de sua importância no tocante à construção e implementação de uma consistente política de saúde do trabalhador.
Procede-se, ainda, a análise da referida questão em face das mudanças legislativas implementadas pela chamada Reforma Trabalhista.
2 A QUESTÃO DA LIMITAÇÃO DO TEMPO DE EXPOSIÇÃO DO TRABALHADOR AOS AGENTES INSALUBRES
Os avanços dos estudos e pesquisas sobre a saúde e segurança laborais têm ensinado que a extensão do contato do indivíduo com certas atividades ou ambientes é elemento decisivo à configuração do potencial efeito insalubre de tais ambientes ou atividades. Essas reflexões têm levado à noção de que a redução da jornada e da duração semanal do trabalho em certas atividades ou ambientes constitui medida profilática importante no contexto da moderna medicina laboral, ou seja, as normas jurídicas concernentes à duração do trabalho já não são mais, necessariamente, normas estritamente econômicas, uma vez que podem alcançar, em certos casos, a função determinante de normas de saúde e segurança laborais, assumindo, portanto, o caráter de normas de saúde pública. [1]
A leitura atenta do artigo 60 da CLT, em virtude de se tratar de dispositivo de norma trabalhista que contém institutos e princípios emanados da Constituição da República e que se espraiam e entrelaçam no âmbito mais amplo do ordenamento jurídico laboral, lança luzes sobre a questão.
Art. 60 - Nas atividades insalubres, assim consideradas as constantes dos quadros mencionados no capítulo "Da Segurança e da Medicina do Trabalho", ou que neles venham a ser incluídas por ato do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, quaisquer prorrogações só poderão ser acordadas mediante licença prévia das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho, as quais, para esse efeito, procederão aos necessários exames locais e à verificação dos métodos e processos de trabalho, quer diretamente, quer por intermédio de autoridades sanitárias federais, estaduais e municipais, com quem entrarão em entendimento para tal fim.[2]
O artigo 189 da CLT define como atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos.
Como decorrência desse enunciado, poder-se-ia inferir que todos os agentes nocivos à saúde do trabalhador são suscetíveis de mensuração, o que, no estágio atual da ciência, não tem a menor validade. Basta lembrar que os agentes biológicos, constantes do Anexo 14, da NR-15 do MTb, embora caracterizadores de insalubridade, não se submetem a um limite de tolerância.
Ademais, conveniências de ordem econômica podem justificar o retardamento na fixação de vários limites de tolerância relativos a certos agentes químicos ou físicos causadores de insalubridade.
Há, ainda, casos de agentes passíveis de mensuração, que, no entanto, ainda não convém amarrá-los a níveis de tolerância por motivos de ordem econômica ou tecnológica. Nestes casos, seria de bom tom que o legislador admitisse, expressamente, o critério qualitativo para a constatação da insalubridade.
O Ministério do Trabalho usando amplamente da faculdade que lhe deferiu o artigo 200 da CLT de estabelecer disposições complementares às normas de que trata o Capítulo V, o Título II, da CLT, usou os critérios qualitativo e quantitativo na elaboração da Portaria nº 3.214/78. Nesse ato administrativo estão reunidos os agentes agressivos com limites de tolerância que se referem a determinadas condições sob as quais é executado o trabalho e as quais a maioria dos trabalhadores pode ficar exposta, diariamente, sem dano a sua saúde.
O anexo 11, NR-15 do MTb, da Portaria nº 3.214/78, que estabelece critérios para caracterização de insalubridade, fixou limites de tolerância para 126 agentes químicos, valores estes baseados nos estabelecidos pela American Conference of Governamental Industrial Hygienists (ACGIH) em 1978, devidamente corrigidos para a jornada de trabalho brasileira, que, na época, era de 48 horas semanais.
É importante comentar que os limites de tolerância estabelecidos no Anexo 11 merecem revisão urgente, uma vez que estão totalmente defasados com relação aos fixados atualmente pela ACGIH, além de que a jornada de trabalho no Brasil é de 44 horas semanais e não mais 48. [3]
Nosso país tem adotado os padrões da ACGIH. Convém salientar, no entanto, que a adoção dos limites de tolerância da ACGIH devem ser corrigidos através da fórmula Brief & Scala, uma vez que a jornada de trabalho no Brasil é de 8 horas diárias e 44 horas semanais, enquanto os limites da ACGIH são para jornada de 8 horas por dia e 40 semanais. [4] Assim sendo, o limite de tolerância, por exemplo, de 10 mg/m³, recomendado pela ACGIH para poeira de cimento, deverá ser corrigido no Brasil, em virtude de sua jornada semanal de trabalho, para 8,8 mg/m³. [5]
Como os anexos da NR-15, que relacionam os agentes insalubres, sofreram poucas alterações desde 1978, quando foi publicada a Portaria 3.214, eles estão hoje totalmente defasados com a realidade técnica no atual estado da arte, pois, como é sabido, a cada ano vão sendo atualizados limites de tolerância, com base nos conhecimentos científicos que vão sendo adquiridos ao longo do tempo. [6] É exemplo dessa defasagem o caso do monômero de cloreto de vinila, utilizado na fabricação de PVC. No anexo 11 da NR-15 está estabelecido para esse agente químico um limite de 156 ppm. Todavia, há muitos anos a ACGIH adota como limite de tolerância para essa mesma substância apenas 1 ppm. [7]
Repise-se que, mesmo para a jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 semanais, os limites de tolerância encontram-se defasados, deduzindo-se daí que os atuais limites suplicam a redução dos seus valores para a nossa atual jornada.
Sendo assim, mister se faz que o Ministério do Trabalho efetue uma revisão completa de todos os anexos da referida NR, para que seja exigido o cumprimento dos padrões que realmente protejam a saúde dos trabalhadores e em atendimento ao princípio do risco mínimo regressivo. [8]
Do exposto, não bastasse constatar que os atuais limites de tolerância reclamam a diminuição de seus valores, é fácil concluir que submeter o trabalhador aos atuais limites, francamente defasados, em período de sobrejornada, em muitos casos, ver-se-á configurado caso de risco grave e iminente à saúde do trabalhador, exigindo do auditor-fiscal do trabalho, à vista do laudo técnico por ele produzido, que demonstre essa situação, a interdição imediata das atividades desenvolvidas em estabelecimento ou setor de serviço na empresa em que essas condições forem confirmadas, conforme prescrição do artigo 161 da CLT.
3 ENTENDIMENTOS DÍSPARES DO TST SOBRE A SOBREJORNADA EM AMBIENTES INSALUBRES AO LONGO DOS ÚLTIMOS ANOS
O TST editou, nos idos de 1996, a Súmula 349 sobre o assunto, com o seguinte teor:
TST Enunciado nº 349 - Res. 60/1996, DJ 08.07.1996 - Mantida - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 Validade do Acordo ou Convenção Coletiva de Compensação de Jornada de Trabalho em Atividade Insalubre. A validade de acordo coletivo ou convenção coletiva de compensação de jornada de trabalho em atividade insalubre prescinde da inspeção prévia da autoridade competente em matéria de higiene do trabalho (art. 7º, XIII, da CF/1988; art. 60 da CLT).[9]
Este foi, durante certo tempo, o entendimento do TST, tendo como supedâneo o inciso XIII do art. 7º da Constituição da República. Essa compreensão se firmava na ideia de que não se pode dizer que o comando legal expresso no art.60 da CLT seja norma de segurança e medicina do trabalho, pois esta norma está inserida na Seção II (Da Jornada de Trabalho) do Capítulo II, do Título II, da CLT, que trata da duração do trabalho, e não no Capítulo V do mesmo título, que prescreve norma sobre medicina e segurança do trabalho (artigos 154 a 223).
Entendia, assim, o TST, que o artigo 60 da CLT e o inciso XIII do artigo 7º da Constituição Federal versava sobre a mesma questão, havendo, portanto, uma única condição para a prorrogação do horário de trabalho em atividade insalubre : a existência de negociação coletiva de trabalho. [10]
O entendimento firmado pelo autor deste artigo, porém, antes mesmo de qualquer mudança de entendimento jurisprudencial, [11] sempre foi o de que o caminho hermenéutico trilhado pelo TST, neste particular, não era isento de críticas. Conforme previsão feita no artigo 196 da Constituição da República, a saúde, à qual se acham umbilicalmente inseridas a segurança e a medicina do trabalho, é direito de todos e dever do Estado.
A Constituição da República apreendeu, de modo exemplar, essa nova leitura a respeito da jornada e duração laborativas e do papel que têm no tocante à construção e implementação de uma consistente política de saúde no trabalho. Por essa razão é que a Carta de 1988, sabiamente, arrolou como direito dos trabalhadores a “[...] redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.” (art.7º, XXII; grifos acrescidos).
Pela mesma razão é que a ação administrativa estatal, por meio de normas de saúde pública e de medicina e segurança do trabalho que venham reduzir o tempo lícito de exposição do trabalhador a certos ambientes ou atividades não é inválida, nem ilegal, nem inconstitucional. Ao contrário, é francamente autorizada e determinada pela Constituição, através de inúmeros dispositivos que se harmonizam organicamente. Citem-se, por exemplo, o mencionado art. 7º, XXII, que se refere ao direito à redução dos riscos do trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança; o art. 194, caput, que menciona a seguridade social como “[...] conjunto integrado de ações de iniciativas dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde [...]”; o art.196, que coloca a saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos [...]”; o art. 197, que qualifica como de “relevância pública as ações e serviços de saúde [...]”;cite-se, finalmente, o art.200, II, que informa competir ao sistema único de saúde “executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador”.
Do exposto, pode-se inferir que o art. 60 da CLT foi recepcionado pela atual Constituição da República. Também, não deve prosperar norma de negociação coletiva que afronta direitos de indisponibilidade absoluta, como as normas de medicina e segurança do trabalho, sob pena de se ver afrontada a própria dignidade do trabalhador.
Neste diapasão, em junho de 2004, a jurisprudência do TST cristalizou o entendimento, por meio da Orientação Jurisprudencial nº 342 da SDI – 1, de que medidas de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantidas por normas de ordem pública, não podem ser objeto de negociação coletiva.
É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo, porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art.71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva.[12]
Diante desse novo quadro jurisprudencial, restava claro o descompasso entre a Súmula 349 e atual jurisprudência do TST, o que tornava imperativo o seu cancelamento, que ocorreu em maio de 2011.
Disso resulta que a negociação coletiva trabalhista não pode afastar a aplicação de norma cogente, ainda mais quando se trata de matéria de saúde e segurança no trabalho, como o art.60 da CLT, que condiciona a prorrogação da jornada em ambientes insalubres à prévia autorização pelos órgãos de fiscalização laboral. O trabalho prorrogado em atividade insalubre é mais nocivo à saúde do trabalhador.
Esse entendimento tem reverberado na jurisprudência, conforme demonstra o acórdão a seguir colacionado:
RECURSO DE REVISTA. REGIME DE COMPENSAÇÃO DE JORNADA AUTORIZADO EM NORMA COLETIVA. ATIVIDADE INSALUBRE. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO. CANCELAMENTO DA SÚMULA 349/TST. DIFERENÇAS DE HORAS EXTRAS DEVIDAS. A Corte Regional manteve a sentença que, em face de trabalho em ambiente insalubre, entendeu que o acordo individual ou coletivo é insuficiente para autorizar a prorrogação ou compensação de horário de trabalho, inexistindo no caso inspeção prévia da autoridade competente em matéria de higiene e saúde do trabalho a autorizar o sobrelabor ou a compensação de jornada. Está insculpido no inciso XXII do art. 7º da Constituição Federal que é direito do trabalhador a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança. O art. 60 da CLT dispõe sobre a necessidade de autorização das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho para a prorrogação de jornada quando a atividade for considerada insalubre. Sendo uma norma cogente que visa à preservação da integridade física do trabalhador, não poderá tal direito ser abrandado pela via da negociação coletiva. A partir desse entendimento, esta Corte Superior procedeu ao cancelamento da sua Súmula nº 349, reconhecendo a necessidade de inspeção prévia do Ministério do Trabalho e Emprego para a validade do acordo de compensação de jornada quando o labor for exercido em condições insalubres. Precedentes. Recurso de revista não conhecido. Processo: RR-850007820095150108. Data de julgamento: 13.5.2015, Relator Ministro: Alexandre de Souza Agra Belmonte, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 15.5.2015.[13]
Assim, o TST passou a entender que, em se tratando de atividade insalubre, qualquer prorrogação de jornada de trabalho, seja a título de compensação de horas, seja a título de trabalho extraordinário, dependeria da autorização/licença prévia do Ministério do Trabalho, a quem competiria fazer um exame local.
Como visto, o dispositivo comentado vinha sofrendo uma espécie de movimento pendular sazonal em seu entendimento e aplicação.