3. Da situação da controvérsia, preponderantemente, no âmbito do Direito do Consumidor
É bem verdade que a presente controvérsia instala-se no âmbito da obrigação que o Estado tem de zelar pela saúde pública. Entretanto, além disso, dadas as especificidades das regras impugnadas, as quais estabelecem alguns condicionamentos à publicidade de produtos fumígeros, indiscutivelmente, é sob o prisma do Direito do Consumidor que se deve apreciar esta ação direta.
Como se sabe, a publicidade é o artifício de que se vale o fornecedor para criar ou fomentar necessidades de consumo de seus produtos ou serviços. Adverte o argentino, Ricardo Luis Lorenzetti, que ela "é uma forma de comunicação produzida por uma pessoa física ou jurídica, pública ou privada, com o fim de promover a contratação ou o fornecimento de produtos ou serviços." [12]
Tecendo considerações sobre a evolução dos bens jurídicos protegidos pela publicidade, o citado doutrinador argentino afirma que, para os primeiros enfoques, tutelava-se a leal concorrência entre as empresas, o que levou à restrição de campanhas que acarretassem lesões à imagem de concorrentes; numa segunda aproximação, protegia-se a liberdade de expressão do autor da mensagem publicitária, favorecendo, então, uma certa ausência de limites em razão da tutela que se confere a esse direito; numa terceira e atual abordagem, considera-se a publicidade como um dos aspectos da proteção do consumidor. [13]
Pois bem, é, sem dúvida alguma, na seara do Direito do Consumidor, que se equacionam os interesses postos em evidência no presente feito. Em matéria de publicidade de bens de consumo, devem ser ponderados uma série de direitos antagônicos, como, de um lado, a livre iniciativa e a livre manifestação do pensamento dos fornecedores e, de outro, a proteção à saúde, à segurança e ao direito de informação dos consumidores.
Nessa linha, o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, de maneira genérica, regula as práticas publicitárias, dedicando-lhes uma seção inteira, cujo teor se transcreve abaixo:
"Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.
Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
§ 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.
§ 4° (Vetado).
Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina."
Ao lado desses condicionamentos impostos às campanhas publicitárias em geral, determinados produtos e serviços experimentam restrições mais severas, não arbitrariamente instituídas, mas em razão da tutela que se deve conferir à vida, à saúde, e à informação do consumidor, tendo em vista a latente nocividade de tais bens. É o que ocorre, a propósito, com a íntegra da Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, que dispõe "sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4º do art. 220 da Constituição Federal".
Com efeito, a tutela de certos direitos do consumidor integra-se no rol dos direitos fundamentais previstos pela Constituição da República, emergindo sua eficácia diretamente desta, e não das normas infraconstitucionais.
Reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor, a Carta Brasileira de 1988, em seu art. 1º, II e III, traz como fundamentos do Estado Democrático de Direito, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. No art. 5º, prescreve que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. Em seu art. 170, estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, entre outros, o princípio da defesa do consumidor. Ademais, no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fixou-se o prazo de 120 dias, para que o Congresso Nacional elaborasse o já mencionado Código de Defesa do Consumidor.
Esse arcabouço constitucional autoriza a compreensão de alguns direitos do consumidor, quais sejam, o direito à vida, à saúde, à idoneidade de informação acerca de produtos e serviços, como direitos fundamentais, inclusive, por serem reflexos da dignidade da pessoa humana.
Estudando os direitos dos consumidores como direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, o lusitano, José Carlos Vieira de Andrade, assinala que, embora eles não constem do elenco universal dos direitos humanos, cada ordem jurídica pode assim os tratar, como fez, segundo articula, o ordenamento de Portugal. [14] Pode-se dizer que de semelhante maneira agiu o Brasil.
Os direitos fundamentais, num primeiro momento, surgiram para proteger o cidadão em face das arbitrariedades do Estado, mas com a evolução do capitalismo, na contemporaneidade, restringem também o poderio econômico dos particulares, que, no mais das vezes, abusam de sua posição no mercado. Na linha desenvolvida pelo estudioso português, assim "entendidos, os direitos dos consumidores podem aspirar a inscrever-se no conjunto dos direitos fundamentais, visto que prosseguem em primeira linha a finalidade própria desses direitos, isto é, a defesa de pessoas contra entidades poderosas que possam provocar-lhes lesões e, em última análise, afectar o livre desenvolvimento da sua personalidade." [15]
Lembre-se de que o rol dos direitos fundamentais não é de numerus clausus, mas sim de numerus apertus, o que se conhece na doutrina por cláusula aberta, podendo nele se compreenderem novos direitos, especialmente em atenção à ordem normativa em vigor.
Resta, pois, patente a inserção dos direitos do consumidor, ao menos os principais, que traduzem o seu núcleo essencial, como o direito à proteção da vida, da saúde e da idoneidade de informação sobre produtos e serviços, no elenco brasileiro dos direitos fundamentais.
Na hipótese vertente, contrapondo-se aos direitos invocados pela autora, e como desdobramento dos direitos fundamentais do consumidor em face das indústrias do tabaco, poder-se-ia até falar em um direito fundamental de (não) fumar, que apenas se manifesta no âmbito das liberdades reais, quando o Estado intervém no domínio econômico, para restringir o nocivo efeito da publicidade sobre o indivíduo.
No sentido da existência do mencionado direito, Amanda Flávio de Oliveira, em sua tese de doutorado, preleciona:
"Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se propor o reconhecimento de um "direito de não fumar", como desdobramento dos direitos à vida e à saúde, direitos humanos, fundamentais, constitucionalmente assegurados. Esse direito demandaria ação efetiva do Estado, consistente em condicionar a atividade de todos os seus órgãos e influenciando a ordem jurídica." [16]
Enfim, reduzir o exame da presente controvérsia ao âmbito apenas da suposta violação às liberdades constitucionais de iniciativa econômica e de expressão do pensamento, como pretende a autora (fls. 7), significaria amesquinhar o rol dos direitos fundamentais, no qual se encontram, também, os direitos do consumidor à idoneidade da informação, à saúde e à segurança. Renegar estes direitos indispensáveis ao desenvolvimento e à preservação da incolumidade física e mental das pessoas humanas – às quais se endereça o núcleo essencial dos direitos fundamentais – em prestígio das indústrias do tabaco é afrontar e subverter a ordem atual das coisas, estabelecida não apenas pelo Constituinte brasileiro, mas firmada em caráter irreversível no cenário mundial.
4. Da ponderação dos princípios constitucionais e da necessária preponderância dos direitos do consumidor enquanto direitos fundamentais
Consoante se observou desde as primeiras linhas, a Confederação Nacional da Indústria questiona as restrições legais impostas à publicidade de produtos fumígeros, fundada, em suma, na violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre manifestação do pensamento, que seriam direitos fundamentais das empresas do tabaco. Em sentido contrário, em favor dos mencionados condicionamentos, invocam-se os princípios, também de ordem constitucional, da proteção dos direitos do consumidor, enquanto direitos fundamentais decorrentes, não somente do art. 5º, XXXII, da Carta, mas, também e principalmente, da dignidade da pessoa humana.
Destaque-se, a propósito, o art. 220, § 4º, da Constituição da República, único dispositivo específico acerca da presente ação direta, litteris:
"Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos dos inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrente de seu uso."
Da leitura tanto do caput quanto do parágrafo, revela-se evidente a possibilidade de a legislação condicionar a publicidade de produtos derivados do tabaco. Especialmente no caput, exige-se, de forma expressa, que as liberdades de comunicação devem observar a Lei Fundamental, ou seja, sujeitam-se à obrigatoriedade de respeito aos direitos fundamentais, entre os quais, já se acentuou, encontram-se os direitos do consumidor.
Por sua vez, o § 4º também deixa clara a possibilidade de restrições à propaganda comercial de produtos fumígeros, imputando ao legislador ordinário a tarefa de as elaborar. Trata-se, sem qualquer sombra de dúvida e, inclusive, com a concordância da autora, de norma de eficácia contida (ou restringível).
Nesse contexto, resta a essa Suprema Corte decidir se a quantidade e a qualidade dos condicionamentos à publicidade dos produtos do tabaco são constitucionais ou não. Em apertada síntese, deve ser decidido ou se as restrições violam os direitos fundamentais das empresas, ou se atendem aos dos consumidores.
A Constituição, especialmente a analítica, como é o caso da brasileira, muitas vezes, sofre de contradições internas, hipóteses em que algumas disposições conflitam com outras, gerando a necessidade de ponderação entre os valores assegurados pelas diversas normas, a fim de se decidir qual delas se aplica a uma determinada situação. Isso é bem o que sucede no presente caso.
Balizando alguns pontos de apoio para a interpretação e a integração das normas constitucionais, Jorge Miranda escreve:
"A função integradora da Constituição reclama a função racionalizadora da interpretação constitucional. Partindo do princípio de que ela tem de ser objectivista e evolutiva – de maneira a assegurar a coerência e a subsistência do ordenamento – podem sugerir-se os seguintes pontos de apoio ou directrizes que se reputam de maior importância:
a) A Constituição deve ser apreendida, a qualquer instante, como um todo, na busca de uma unidade e harmonia de sentido. O apelo ao elemento sistemático consiste aqui em procurar as recíprocas implicações de preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua inter-relacionação e em tentar, assim, chegar a uma idônea síntese globalizante, credível e dotada de energia normativa;
b) Isto aplica-se particularmente ao chamado fenômeno das ‘contradições de princípios’, presente nas Constituições compromissórias e, não raro, noutros sectores além do Direito constitucional. Tais contradições hão-de ser superadas, nuns casos, mediante a redução adequada do respectivo alcance e âmbito e da cedência de parte a parte e, noutros casos, mediante a preferência ou a prioridade, na efectivação, de certos princípios frente aos restantes – nuns casos, pois, através de coordenação, noutros através de subordinação. Tem de fazer-se, por conseguinte, um esforço de concordância prática, assente num critério de proporcionalidade. E pode ter de se solicitar (mesmo sem se aderir a todas as premissas do puro método valorativo) a ponderação ou a hierarquia dos valores inerentes aos princípios constitucionais; (...)." [17]
Por seu turno, tecendo comentários sobre a colisão de direitos fundamentais na jurisprudência dessa Excelsa Corte, e a respeito da preponderância do princípio da dignidade da pessoa humana, o Ministro Gilmar Mendes, em sua obra intitulada "Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais", leciona, in verbis:
"Embora o texto constitucional brasileiro não tenha privilegiado especificamente determinado direito, na fixação das cláusulas pétreas (CF, art. 60. § 4º), não há dúvida de que, também entre nós, os valores vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo (CF, art. 1º, III).
Assim, devem ser levados em conta, em eventual juízo de ponderação, os valores que constituem inequívoca expressão desse princípio (inviolabilidade da pessoa humana, respeito à sua integridade física e moral, inviolabilidade do direito a imagem e da intimidade).
Também entre nós coloca-se, não raras vezes, a discussão sobre determinados direitos em contraposição a determinados valores constitucionalmente protegidos.
Na discussão sobre a legitimidade das disposições reguladoras de mensalidades escolares, reconheceu o Supremo Tribunal Federal que, com objetivo de conciliar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência e os dados da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, ‘pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros’ [18]." [19](Destaques não originais).
Além do exemplo por último mencionado, o Ministro Gilmar Mendes, entre outros, cita o Recurso Extraordinário nº 153.531, Relator Ministro Marco Aurélio, referente à conhecida "proibição da farra do boi", em que se confrontavam, de uma parte, a proteção e o incentivo de práticas culturais, e, de outra, a defesa dos animais contra práticas cruéis.
Esse Supremo Tribunal Federal, naquela oportunidade, houve por bem proibir a referida manifestação cultural, valendo a pena a transcrição de alguns trechos do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, no sentido de "que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no início de meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem a todo custo, o próprio sacrifício do animal." [20]
De toda sorte, a respeito da prevalência da dignidade da pessoa humana em eventual conflito entre princípios constitucionais, na mesma linha das diretrizes traçadas pelo Ministro Gilmar Mendes na obra citada há algumas linhas, o Ministro Eros Roberto Grau pondera:
"A dignidade da pessoa humana comparece, assim, na Constituição de 1988, duplamente: no art. 1º como princípio constitucionalmente conformador (Canotilho); no art. 170, caput, como princípio constitucional impositivo (Canotilho) ou diretriz (Dworkin) – ou, ainda, direi eu, como norma-objetivo.
Nesta sua segunda consagração constitucional, a dignidade da pessoa humana assume a mais pronunciada relevância, visto comprometer todo o exercício da atividade econômica, em sentido amplo – e em especial, o exercício da atividade econômica em sentido estrito – com o programa de promoção da existência digna, de que, repito, todos devem gozar. Daí porque se encontram constitucionalmente empenhados na realização desse programa – dessa política pública maior – tanto o setor público quanto o setor privado. Logo, o exercício de qualquer parcela da atividade econômica de modo não adequado àquela promoção expressará violação do princípio duplamente contemplado na Constituição.
Observe-se ademais, neste passo, que a dignidade da pessoa humana apenas restará plenamente assegurada se e enquanto viabilizado o acesso de todos não apenas às chamadas liberdades formais, mas, sobretudo, às liberdades reais." [21]
Aliás, a percepção dos direitos do consumidor como direitos fundamentais que concretizam a dignidade da pessoa humana, não qualquer de suas espécies, mas sim aqueles integrantes de seu núcleo essencial, como a proteção à pessoa, à vida e à saúde, e o direito de informação idônea ao exercício eficaz do livre arbítrio do indivíduo, devem se sobrepor a outros interesses constitucionalmente tutelados. A esse respeito, vejam-se as lições do português, José Carlos Vieira de Andrade, litteris:
"Outra manifestação da força jurídica dos direitos do consumidor, enquanto direitos sociais, resulta do seu caráter de valores constitucionais e poderá traduzir-se na capacidade para, em situações de conflito entre direitos, fundarem restrições legítimas ou limitações às liberdades e a outros direitos fundamentais.
Na realidade, para assegurar a realização dos direitos dos consumidores, o legislador tem de limitar ou restringir direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, designadamente a liberdade de iniciativa económica e a liberdade contratual.
Neste contexto, são de destacar as alterações à legislação civil e comercial codificada, que rege a generalidade das relações contratuais, sobretudo em matéria de cláusulas contratuais gerais e no âmbito de contratos de adesão, com o objectivo de proteção dos consumidores, por exemplo, proibindo certo tipo de cláusulas, estabelecendo casos de responsabilidade objectiva do produtor ou fornecedor, determinando prazos muito curtos para prescrição de créditos; bem como as limitações introduzidas relativamente à propaganda de certos produtos, incluindo as advertências administrativas sobre os seus malefícios ou inconvenientes, e a certas formas de publicidade e de métodos de venda; (...).
Tudo isto representa limitações das liberdades económicas e da liberdade de expressão, que se consideram adequadas, necessárias e proporcionadas, em face da vulnerabilidade do ‘consumidor’ na relação com as entidades que exercem actividades profissionais de produção ou fornecimento de bens e serviços com fins lucrativos." [22] (Destaques não originais).
Portanto, na hipótese vertente, não há outra solução senão reconhecer que os condicionamentos impostos são constitucionais, atendendo legitimamente à proteção dos consumidores, diante dos malefícios notoriamente causados pelo cigarro, e resguardando-os do poderio das grandes empresas (multinacionais e transnacionais) que exploram a produção e distribuição de produtos do tabaco.
De fato, as disposições impugnadas não extinguiram o direito de propaganda, consoante alega a requerente. Há diversos meios de materialização da publicidade, que variam de um simples panfleto a complexas e requintadas campanhas televisivas. O que a legislação faz não é vedar a publicidade, mas apenas algumas de suas formas de manifestação, v. g., aquelas em rádio e televisão, ressalvando, expressamente, a possibilidade de "pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda."
A propósito, a vedação das propagandas por televisão ou rádio justifica-se, mostra-se razoável, pois esses meios de comunicação, sem qualquer entrave, ingressam no seio das famílias contemporâneas, em que há principalmente crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento, cujo caráter ainda está em formação, e poderiam ceder com facilidade aos apelos publicitários, sucumbindo, por conseguinte, ao triste vício do tabagismo.
Essa restrição da publicidade televisiva não é originalidade do Brasil. Conforme já se mencionou, na Europa, ela também existe. Vejam-se as palavras de Jens Karsten:
"Desde 1989 todas as formas de propaganda do tabaco na televisão foram proibidas após a Diretiva 89/552/EEC. Igualmente, o telemarketing de produtos do tabaco é proibido. A regulação da televisão alcança até mesmo além das fronteiras da Comunidade Européia em razão do Conselho da Europa, ocorrido durante uma convenção datada do mesmo ano, que tornou ilegal a propaganda do tabaco em televisão transfronteiriça. Essa convenção aplica-se através de quase toda a área geográfica da Europa." [23]
Com respeito ao argumento suscitado pela requerente, relativo a uma suposta desproporcionalidade dos condicionamentos impostos pelas normas infraconstitucionais à propaganda comercial dos produtos do tabaco, cumpre assinalar sua total improcedência. Essas normas atendem à adequação, pois se mostram idôneas a atingir o objetivo por elas colimado; à necessidade, uma vez que é o único e exclusivo meio para alcançar seus fins; e à proporcionalidade em sentido estrito, porquanto atende à proteção do valor jurídico mais relevante, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Ratificando isso, comporta, mais uma vez, transcrever os ensinamentos de Jens Karsten:
"Muito importante também é a observação do relatório de que a regulação inclusiva tem um claro efeito na redução do uso do tabaco, enquanto a regulação limitada quase não é eficaz. A regulação limitada não reduz o impacto da propaganda porque permite a substituição por outro tipo de mídia. No total, uma redução na propaganda de tabaco não é alcançada com regulação limitada, por exemplo, na propaganda de televisão, mas deve, para ser efetiva, alcançar toda a mídia.
Essas descobertas também trazem argumentos para dizer que não existem alternativas para a regulamentação da propaganda. Não há como obter meios menos restritivos para alcançar o mesmo fim. Medidas positivas, como campanhas de informação que demonstram os perigos de fumar para a saúde, são severamente prejudicadas se a promoção do tabaco é ao mesmo tempo permitida." [24]
No Brasil de hoje, a propósito, percebem-se as primeiras ações de indenização contra as indústrias do tabaco, [25] oportunidades em que as rés alegam, em sua defesa, o livre arbítrio dos fumantes. Sustentam que ninguém seria obrigado a fumar. Acentue-se, no entanto, que o poder da mídia na sociedade da comunicação é fator determinante do comportamento das pessoas. Somente a ostensiva restrição publicitária, como bem demonstrou Jens Karsten, constitui meio idôneo a se desincumbir da tarefa de redução do tabagismo, possibilitando que realmente o livre arbítrio dos indivíduos se manifeste como liberdade real.
Não se olvide, aliás, de que as advertência que devem constar das embalagens, acompanhadas de ilustrações, não constituem contrapropaganda, como diz a requerente, mas sim o modo ímpar capaz de comunicar ao consumidor os riscos a que se expõem os fumantes.
Por fim, lembre-se de que os direitos fundamentais não vinculam apenas o Estado, mas também os particulares, o que se percebe pela sua eficácia privada ou horizontal. A esse respeito, observem-se, a seguir, os ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet:
"Ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas é a constatação de que, ao contrário do Estado clássico e liberal de Direito, no qual os direitos fundamentais, na condição de direitos de defesa, tinham por escopo proteger o indivíduo de ingerências por parte dos poderes públicos na sua esfera pessoal e no qual, em virtude de uma preconizada separação entre Estado e sociedade, entre o público e o privado, os direitos fundamentais alcançavam sentido apenas nas relações entre os indivíduos e o Estado, no Estado Social de Direito não apenas o Estado ampliou suas atividades e funções, mas também a sociedade participa cada vez mais ativamente do exercício do poder, de tal sorte que a liberdade individual não apenas carece de proteção contra os poderes públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, os detentores de poder social e econômico, já que é nesta esfera que as liberdades se encontram particularmente ameaçadas." [26]
Nesse contexto de sujeição direta do poderio econômico privado aos termos dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República, independentemente da existência das normas impugnadas neste feito, as indústrias do tabaco, ante a notória maleficência de seus produtos, deveriam, por si mesmas, restringir o conteúdo e as formas de suas campanhas publicitárias, de sorte a respeitar a ordem vigente.
Todavia, isso não ocorre, competindo ao Estado, ator, por sua vez, submetido à eficácia vertical dos direitos fundamentais, intervir no cenário econômico, para assegurar a proteção à saúde e à informação dos consumidores, bem como tutelar o eficaz exercício de seu livre arbítrio, promovendo medidas que importem a redução do uso de tabaco e, ao fim e ao cabo, a dignificação da pessoa humana, que constitui, no caso do Brasil, fundamento principal do Estado Democrático de Direito.
Apenas para ilustrar a ostensiva enganosidade das propagandas comerciais dos cigarros, que se perpetraram por várias décadas, vale a pena citar um item das considerações que levaram o legislador comunitário a editar a já mencionada Diretiva 2001/37/CE, litteris:
"(27) A utilização nas embalagens dos produtos do tabaco de certas indicações, como
, , , , designações imagens e símbolos figurativos ou outros, pode induzir o consumidor no erro de que esses produtos são menos nocivos e levar a alterações no consumo. Os níveis das substâncias inaladas são determinados pelo teor de certas substâncias contidas no produto antes de ser consumido, mas também pelo comportamento do fumador e pelo grau de dependência. Este facto não se reflete na utilização daqueles termos, o que pode prejudicar as exigências de rotulagem impostas na presente directiva. A fim de assegurar o correcto funcionamento do mercado interno e tendo em conta o desenvolvimento das regras internacionais propostas, aquela utilização deverá ser proibida ao nível comunitário, embora se deva dar tempo suficiente para a introdução desta interdição."
Aliás, tendo em vista o alto índice de fumantes entre crianças e adolescentes, de acordo com pesquisas aqui noticiadas, pode-se invocar, ainda, em prol da constitucionalidade das restrições à propaganda comercial de cigarros, o dever que têm a família, a sociedade e o Estado de lhes assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito, à liberdade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, exploração e opressão, nos termos do art. 227, caput, da Lei Fundamental.
Por todas essas considerações, não há como se negar que o conflito aparente entre os direitos fundamentais postos em causa resolve-se em prol dos direitos do consumidor, enquanto direitos fundamentais projetados a partir da dignidade da pessoa humana, ou seja, os condicionamentos impostos pelas normas hostilizadas à publicidade de produtos fumígeros são plenamente conformes a Constituição da República.