É corriqueiro que as pessoas tenham de se submeter a procedimentos cirúrgicos, sejam eles para os mais variados fins. É corriqueiro, também, que, diante do sucateamento da saúde pública, as pessoas da atualidade contratem planos de saúde, a fim de garantir um tratamento adequado em caso de emergência. É corriqueiro, ainda, que há abusividades por quem oferece planos de saúde a quem necessita destes serviços.
Dentro dos fatos acima retratados, vemos com clareza o seguinte ponto em comum: o direito à saúde.
Neste delicado contexto, caso que vem sendo objeto de amplas discussões no âmbito jurídico é sobre o pagamento do profissional que trabalha como instrumentador cirúrgico no momento da cirurgia, bem como a sua relação com o paciente que contrata plano de saúde.
Mas, primeiro, o que é um instrumentador cirúrgico? Nas palavras de Alisson Daniel Fernandes da Silva, enfermeiro formado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, “o instrumentador cirúrgico é responsável por todos os materiais e equipamentos que serão utilizados na cirurgia. Seu trabalho garante segurança e qualidade para o paciente e equipe médica”.
(https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/enfermagem/instrumentador-cirurgico/17853)
De uma maneira mais detalhada, as funções deste profissional abarcam: o preparo do instrumental cirúrgico e da sala de cirurgia, com equipamentos, mesas, medicamentos, material de sutura e anti-sepsia; o desempenho de tarefas relacionadas a intervenções cirúrgicas, posicionando de forma adequada os instrumentos, passando-os ao cirurgião, e, ainda, a realização de outros trabalhos de apoio; a conferência, a esterilização e a reposição dos instrumentos cirúrgicos, bem como o zelo pelo estado funcional dos aparelhos que compõem as salas de cirurgia.
Podemos, então, dizer que o instrumentador cirúrgico é a pessoa que auxiliará diretamente o médico cirurgião, antes, depois e no exato momento da cirurgia. Sem dúvidas, é uma profissão de suma importância à realização dos procedimentos cirúrgicos.
Agora, imaginemos a seguinte situação: uma pessoa assegurada por plano de saúde, sentindo muitas dores e desconfortos, quaisquer que sejam eles, se encaminha a um determinado hospital e, a ela, é prescrita a realização de uma cirurgia emergencial.
Imediatamente, uma pessoa se apresenta dizendo ser o instrumentador cirúrgico que irá acompanhar o procedimento de emergência; ato contínuo, do paciente é cobrado o prévio pagamento deste profissional, sob pena de a cirurgia não se realizar; e, por fim, o paciente é orientado a pedir o reembolso à operadora do plano de saúde onde é assegurado.
Pois bem.
A este paciente, que já se encontrava fragilizado diante da sua situação física e mental, não sobra alternativa a não ser providenciar o pagamento, sem hesitar, uma vez que se livrar daquele sentimento era a sua maior prioridade naquele momento.
Obviamente, por pagar mensalmente por plano de saúde, quando as dores somem e os nervos se acalmam, o paciente de outrora busca o reembolso dos valores despendidos com instrumentador cirúrgico, o que, para a sua surpresa, é negado pela prestadora destes serviços sem qualquer explicação aprofundada.
Aforada ação de ressarcimento, em peça contestatória é alegada que a ausência do reembolso, acerca do pagamento do instrumentador cirúrgico, ocorreu pelo simples fato de esta profissão não se encontrar regulamentada em Lei. E, mais surpreendente, é que esta tese vinha sendo acatada pelo Poder Judiciário.
À exemplo dos seguintes julgados:
ADMINISTRATIVO. AUTO DE INFRAÇÃO. ANS. ATIVIDADE DE INSTRUMENTAÇÃO CIRÚRGICA. SERVIÇÕES GERAIS DE ENFERMAGEM. NÃO ENQUADRAMENTO. A atividade de instrumentador cirúrgico não é de exercício exclusivo pelo profissional de enfermagem. Não é possível a aplicação de penalidade à operadora por negativa de cobertura a serviço não expressamente previsto em lei.
(TRF-4 – APL 50821471020144047000, Relator LUÍS ALBERTO D’AZEVEDO AURVALLE, Data de Julgamento: 17/08/2016, QUARTA TURMA)
ADMINISTRATIVO. DESPESA COM INSTRUMENTADOR CIRÚRGICO. PLANO DE SAÚDE. COBERTURA. INEXISTÊNCIA. MULTA. ANS. A jurisprudência majoritária desta Corte é no sentido de que a despesa pelo uso de instrumentador cirúrgico, não enfermeiro, é insuscetível de ser presumida como coberta pelo plano de saúde.
(TRF-4 – AG 50009187120174040000, Relator MARGA INGE BARTH TESSLER, Data de Julgamento: 21/02/2017, TERCEIRA TURMA)
ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE DE INSTRUMENTAÇÃO CIRÚRGICA. EXERCÍCIO DE FISCALIZAÇÃO E SANÇÃO PELA ANS. FALTA DE PREVISÃO LEGAL. NULIDADE DA MULTA. Reconhecendo-se que a atividade de instrumentador cirúrgico não é de exercício exclusivo pelo profissional de enfermagem, mantém-se o entendimento de que não é possível a aplicação de penalidade à operadora por negativa de cobertura a serviço não expressamente previsto em lei.
(TRF-4 – AC 50202151620174047000, Relator MARGA INGE BARTH TESSLER, Data de Julgamento: 20/03/2018, TERCEIRA TURMA)
A principal discussão era saber onde se enquadram os instrumentadores cirúrgicos e se essa profissão deve ser vista à luz da Lei nº 9.656/98, principalmente no tocante ao seu art. 12, II, “c’.
Mas, o que diz esse artigo de Lei? Ele, basicamente, estabelece que os contratos de plano de saúde, para o caso de internação hospitalar, devem, obrigatoriamente, abarcar algumas exigências mínimas, quais sejam, a cobertura de despesas referentes a honorários médicos, serviços gerais de enfermagem e alimentação.
Contudo, por não constar expressamente a profissão de instrumentador cirúrgico na Lei, mesmo sabendo da sua necessidade e responsabilidade para a realização do procedimento cirúrgico, o Poder Judiciário, a pedido das operadoras dos planos de saúde, vinha negando aos pacientes o ressarcimento do valor outrora despendido, o que, com todo o respeito, é um absurdo!
Em outras palavras, com base numa lacuna legal, as operadoras de planos de saúde negam, sob um raciocínio míope, raso e descontextualizado, um direito que, na prática, é considerado básico e essencial ao atendimento do paciente, contratante destes planos. E este, na iminência de ter sua saúde colocada em risco, não vê outra saída que não desembolsar o valor cobrado injustamente.
O entendimento do Poder Judiciário, diante das reiteradas provocações jurídicas que a ele foram postas, vem mudando.
Senão vejamos:
ADMINISTRATIVO. AUTO DE INFRAÇÃO. ANS. ATIVIDADE DE INSTRUMENTAÇÃO CIRÚRGICA. SERVIÕES GERAIS DE ENFERMAGEM. ENQUADRAMENTO. RECUSA DE REEMBOLSO. ABUSIVIDADE. É legal a aplicação de penalidade à operadora por negativa de cobertura da instrumentação operada em cirurgia por ela realizada. Reforça da sentença.
(TRF-4 – APL 50201562820174047000, Relator LUÍS ALBERTO D’AZEVEDO AURVALLE, Data de Julgamento: 11/04/2018, QUARTA TURMA)
No julgado acima, o Desembargador Relator Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle consagrou, de maneira mais que certa, que foge à normalidade surpreender o usuário de plano de saúde, submetido a procedimento cirúrgico, com a cobrança de honorários de instrumentador, pois tal profissional deve, necessariamente, estar inserido na equipe médica.
Ora, isso nada mais é que o direito intrínseco e essencial de quem contrata um plano de saúde, pois a sua função primeira, seja ele mais caro ou mais barato, é evitar outras preocupações além das próprias dores e desconfortos, tal como comentado no início deste texto.
E é justamente por tal motivo que a Lei padroniza o mínimo necessário à cobertura de um plano de saúde, de maneira que o seu escopo não se esvazie num mundo onde, cada vez mais, se esteja colocando de lado direitos básicos de uma pessoa, em prol de uma lucratividade desmedida.
O julgado acima vem ganhando repercussão, de certo que outros juízes vêm julgando de maneira equivalente:
“(...)
a circunstância de o exercício não ser privativo de profissional de enfermagem não é determinante para a solução da controvérsia. O que efetivamente interessa é saber se ela enquadra-se no conceito de ‘serviços gerais de enfermagem’, a que se refere o artigo 12, inciso II, c, da Lei nº 9.656/98. E a resposta é afirmativa, na medida que a instrumentação cirúrgica consiste em um serviço de assistência ao paciente no desempenho de atividade que contribui para a recuperação de sua saúde, ou seja, um serviço-meio para a prática do ato cirúrgico”.
(TRF-4 – AI 50285711420184040000, Relator VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento 30/07/2018, TERCEIRA TURMA)
Esperançosos, novamente voltam-se os olhos do Estado a quem realmente precisa desta assistência, em desfavor das grandes prestadoras de serviços e produtos, que, no atropelo quase natural dos direitos básicos daqueles, normalmente pendem para a vantagem injusta, o que vem sendo motivo de conflito ente as partes.