Capa da publicação Embriaguez alcoólica: conseqüências jurídico-penais
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A embriaguez alcoólica e as suas conseqüências jurídico-penais

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Resumo:


  • A embriaguez alcoólica pode ter diversas consequências jurídico-penais, variando de acordo com sua origem e grau de influência sobre o indivíduo.

  • A teoria da "actio libera in causa" é aplicada em casos de embriaguez preordenada, onde o indivíduo se embriaga intencionalmente para cometer um crime, resultando em agravamento da pena.

  • O Código de Trânsito Brasileiro estabelece punições severas para a condução de veículos sob influência de álcool, considerando infração gravíssima e prevendo detenção, multa e suspensão do direito de dirigir.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. AS ESPÉCIES DE EMBRIAGUEZ E AS SUAS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICO-PENAIS

Ao tratarmos das espécies de embriaguez, usaremos a sistemática adotada pelo Código Penal Brasileiro, com a ressalva de que, aqui, continuamos empregando o termo embriaguez como tradutor apenas da embriaguez alcoólica.

O que realmente importa para o ordenamento jurídico criminal é a relação do estado de imputabilidade, ou inimputabilidade, do agente que comete uma infração sob os efeitos de alguma espécie de embriaguez com a sua conseqüente punibilidade.

Assim, o Código Penal dividiu essas hipóteses de infrações cometidas sob efeitos de intoxicação aguda proveniente do álcool em diferentes espécies de embriaguez, cada uma com uma conseqüência jurídico-penal diversa.

Para uma visualização mais cristalina do que abordaremos nesse capítulo, de valiosa utilidade é esquema realizado pelo mestre Damásio 141, indicando a localização de cada espécie de embriaguez, com os conseqüentes artigos aplicáveis às hipóteses, vejamos:

"1. NÃO-ACIDENTAL:

Voluntária:

completa – art. 28, II

incompleta – art. 28, II

Culposa:

completa – art. 28, II

incompleta – art. 28, II

2. ACIDENTAL PROVENIENTE DE:

Caso fortuito:

completa – art. 28, § 1.º

incompleta – art. 28, § 2.º

Força maior

completa – art. 28, § 1.º

incompleta – art. 28, § 2.º

3. PATOLÓGICA – art. 26, caput ou parágrafo único

4. PREORDENADA – art. 61, II, l."

Vale destacar, contudo, que a classificação de acordo com o grau que a substância inebriante possui sobre o organismo do agente, qual seja, completa ou incompleta, apontada por Damásio, é a mesma em todas as espécies de embriaguez que serão analisadas. 142

Assim, em qualquer hipótese que seja, a embriaguez será completa quando o sujeito perder a totalidade do seu discernimento, de tal sorte que todos os seus atos, praticados durante esse estágio, serão sem nenhum grau de entendimento e "vontade". 143

Dessa forma, o agente perde totalmente a noção do que está acontecendo e, por conseguinte, de se portar de acordo com o seu normal discernimento.

Por sua vez, o grau de embriaguez será incompleto nas situações em que o agente não perde a totalidade do seu discernimento.

Nessa situação, passa a existir apenas a retirada parcial da capacidade de entendimento e de autodeterminação. Assim, o agente ainda consegue deter um resíduo de compreensão e vontade. 144

Cabe ressaltar a comparação, realizada pelo Prof. Damásio 145, entre essas subespécies da embriaguez voluntária com as fases da embriaguez, ora assinaladas no item 3.6, vejamos:

"A embriaguez completa corresponde ao segundo e ao terceiro períodos (fases), sendo que neste último (período letárgico) o sujeito só pode cometer crimes omissivos ou comissivos por omissão. A embriaguez incompleta corresponde à primeira fase."

5.1. NÃO ACIDENTAL

A embriaguez não acidental é a de mais fácil ocorrência e, dessa forma, ela pode ser facilmente definida por exclusão das demais espécies.

Assim, a embriaguez não acidental se encontra presente em todas aquelas hipóteses em que o agente ingere a substância alcoólica, que não sejam em razão de caso fortuito ou força maior ou de alguma patologia.

Por sua vez, esses casos de embriaguez podem ocorrer em situações de voluntariedade ou de culpa.

5.1.1. Voluntária

A embriaguez não-acidental voluntária, dolosa ou intencional, ocorre naquelas hipóteses em que o sujeito consome a substância alcoólica com intenção de se embriagar, restando nítido o animus do agente de entrar em um estado de alteração psíquica.

Ela é facilmente perceptível na hipótese em que Ezequiel, em companhia de seus amigos, sentam numa mesa de bar e decidem beber para ver quem cairá primeiro, com o nítido propósito de se embriagarem.

5.1.2. Culposa

A embriaguez não-acidental culposa é aquela em que o agente, por imprudência, ingere a substância intencionalmente e, devido ao excesso, embriaga-se, embora sem o animus de se embriagar.

O caso de visualização mais clara encontra-se na situação em que Ezequiel, no intuito de perder a desinibição e paquerar Maria, começa a beber na danceteria. Como Ezequiel ainda é muito jovem e inexperiente, não se dá conta de que está ingerindo doses bem acima de sua capacidade fisiológica e se embriaga, perdendo Maria e dando trabalho para os amigos.

Note, nessa situação, a intenção de Ezequiel não era se embriagar, mas apenas se desinibir para paquerar Maria, no entanto, devido a sua imprudência, acaba por se embebedar.

5.2. ACIDENTAL

A embriaguez acidental constitui a exceção em nosso ordenamento jurídico e, dessa forma, a ela é dada uma atenção de maior relevância, de tal sorte que a mesma, quando completa, é considerada como causa de exclusão de culpabilidade.

Como o próprio nome sugere, a embriaguez acidental encontra-se presente nas situações de acidente, decorrendo de caso fortuito ou força maior.

A distinção entre essas duas subespécies da embriaguez acidental não trará qualquer relevante conseqüência, de tal sorte que o real interesse jurídico-penal residirá na compreensão da hipótese como de embriaguez acidental.

Assim, tal distinção fica a critério da doutrina.

5.2.1. Por caso fortuito

Para o Prof. Bitencourt 146 a embriaguez acidental proveniente de caso fortuito "ocorre quando o agente ignora a natureza tóxica do que está ingerindo, ou não tem condições de prever que determinada substância, na quantidade ingerida, ou nas circunstâncias que o faz, poderá provocar a embriaguez."

Segundo os ensinamentos do Prof. Capez, estaremos diante de uma hipótese de embriaguez proveniente de caso fortuito quando, por exemplo, alguém tropeça e cai de cabeça em um tonel de vinho, embriagando-se; alguém que ingere bebida na ignorância de que tem um conteúdo alcoólico ou dos efeitos psicotrópicos que provoca; alguém, após tomar antibiótico para tratamento de uma gripe, consome álcool sem saber que isso o fará perder completamente o poder de compreensão. 147

Note, em todas essas situações apontadas, embora de difícil verificação, o agente não teve a intenção de se embriagar e, da mesma forma, a sua conduta não foi coroada pela culpa.

5.2.2. Por força maior

Trazendo à colação as lições de Bitencourt 148, a embriaguez acidental proveniente de força maior "é algo que independe do controle ou vontade do agente. Ele sabe o que está acontecendo, mas não consegue impedir."

De acordo com o Prof. Capez, a embriaguez por força maior ocorre, por exemplo, quando uma força externa ao agente o obriga a consumir a bebida; quando o sujeito é obrigado a ingerir o álcool por coação física ou moral irresistível, perdendo, em seguida, o controle sobre suas ações. 149

5.3. PATOLÓGICA E HABITUAL

A embriaguez patológica ou anormal ocorre em função do indivíduo não apresentar um quadro de embriaguez semelhante ao abordado até agora.

A principal diferença entre a embriaguez patológica e a normal reside no fato do indivíduo, patologicamente embriagado, apresentar um estado de ânimo exageradamente excitado, com desinibição excessiva, descargas comportamentais agressivas e graves, enfim, manifestando ações que diferenciam muito de sua personalidade quando sóbrio, mesmo fazendo uso de pequenas quantidades de bebida alcoólica.

O Prof. Genivaldo França 150 em sua obra, ao conceituar a embriaguez patológica, relata que a mesma "resulta da ingestão de pequenas doses, com manifestações intempestivas. Surpreendem pela desproporção entre a quantidade ingerida e a intensidade dos efeitos."

Apesar de pessoas normais poderem apresentar este tipo de reação, em regra, as pessoas com embriaguez patológica são portadoras de alguma disfunção cerebral. Assim, resulta deste fato a expressiva importância de aconselhar a total abstinência alcoólica aos portadores destas alterações cerebrais.

Por este motivo, Bitencourt 151, de forma muito acertada, salienta que a "embriaguez patológica manifesta-se em pessoas predispostas, e se assemelha à verdadeira psicose, devendo ser tratada, juridicamente, como doença mental, nos termos do art. 26 e seu parágrafo único."

Cabe advertir que a embriaguez patológica em muito difere da embriaguez habitual. Conforme os ensinamentos de Antolisei 152, enquanto a embriaguez habitual constitui uma alteração patológica de natureza permanente, a embriaguez patológica é uma intoxicação aguda que presumivelmente cessa com o findar do uso de substâncias alcoólicas.

Nesta esteira de raciocínio, a embriaguez habitual é definida como o estado freqüente de embriaguez que se encontra o sujeito dado ao uso de bebidas alcoólicas.

5.4. PREORDENADA

A embriaguez preordenada pode ser considerada o caso mais interessante, tanto no que concerne a sua definição, quanto na sua respectiva conseqüência jurídico-penal.

Com muita propriedade são os ensinamentos de Bitencourt 153 ao definir a embriaguez preordenada, vejamos:

"Embriaguez preordenada é aquela em que o agente deliberadamente se embriaga para praticar a conduta delituosa, liberando seus freios inibitórios e fortalecendo a sua coragem. Nessa forma de embriaguez apresenta-se a hipótese de actio libera in causa por excelência. O sujeito tem a intenção não apenas de embriagar-se, mas esta é movida pelo propósito criminoso; a embriaguez constitui apenas um meio facilitador da execução de um ilícito desejado."

Tal forma de embriaguez é visualizada naquelas situações em que o sujeito se embriagada no intuito de cometer uma infração penal. Assim, o seu animus de delinqüir é preexistente à embriaguez, que acaba sendo o meio encorajador encontrado para a prática delitiva.

Dessa forma, o agente, acometido por falta de coragem, medo ou se sentindo inibido, usa do álcool para sentir corajoso e capaz do crime.

Conforme ensina o Prof. Capez 154, ao tratar da diferença entre a embriaguez voluntária e a preordenada:

"Não se confunde a embriaguez voluntária, em que o agente quer embriagar-se, mas não tem a intenção de cometer crimes nesse estado. Na preordenada, a conduta de ingerir a bebida alcoólica já constitui ato inicial do comportamento típico, já se vislumbrando desenhado o objetivo delituoso que almeja atingir, ou que assume o risco de conseguir. É o caso de pessoas que ingerem álcool para liberar instintos baixos e cometer crimes de violência sexual ou de assaltantes que consomem substâncias estimulantes para operações ousadas."

5.5. CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICO-PENAIS DA EMBRIAGUEZ

Inicialmente, cabe advertir que a quase-totalidade dos casos de embriaguez não têm uma intenção inicial criminosa, a qual só se manifesta na embriaguez preordenada.

Para o nosso ordenamento jurídico, no entanto, algumas dessas hipóteses de embriaguez, mesmo não possuindo o animus preliminar de infração penal, acabam por gerar conseqüências jurídico-penais relevantes, face as suas respectivas implicações fáticas na ocorrência delitiva.

Após o estudo das diversas hipóteses de embriaguez, cada qual proveniente de fatos distintos, bem como com conseqüências múltiplas, de fácil constatação é que, com a presença de cada espécie no momento da infração penal, o nosso ordenamento jurídico responderá de forma diversa.

Assim, para chegarmos à hipótese in casu de embriaguez, de mister relevância é a conjugação de três aspectos: beber, embriagar-se e delinqüir. 155 Esses aspectos são apontados na obra do Prof. Odon Maranhão como a forma mais segura para que o aplicador do direito alcance a real hipótese de embriaguez aplicável à espécie.

BEBER

VONTADE DE EMBRIAGAR-SE

DELINQÜIR

FORMA DE EMBRIAGUEZ

ausente

ausente

ausente

1. acidental ou fortuita

presente

ausente

ausente

2. involuntária ou culposa

presente

presente

ausente

3. voluntária

presente

presente

presente

4. preordenada

Neste diapasão, somente com a observação da participação concorrente dessas formas de vontade, teremos a configuração penal própria de cada caso e, conseqüentemente, poderemos aplicar a resposta jurídico-penal necessária.

O primeiro caso de relevância jurídica que abordaremos é a embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior.

Inicialmente, cabe advertir que, não obstante a diferença ora construída para as duas hipóteses, as mesmas, quando presentes na prática de uma infração penal, trazem em comum idêntica conseqüência jurídico-penal, conforme reza o art. 28, § 1.º do Código Penal Brasileiro, in verbis:

"art. 28, §1.º. É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento."

Com muita propriedade, o Prof. Damásio 156 analisa tal dispositivo, asseverando que:

"Quando a embriaguez acidental, proveniente de caso fortuito ou força maior, é completa, em conseqüência da qual, ao tempo da ação ou omissão, o agente era inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento, há exclusão da imputabilidade. Neste caso, o sujeito não responde pelo crime, em face da ausência de culpabilidade. O legislador acatou o sistema biopsicológico. Não é suficiente a ebriez acidental completa. É necessário que em conseqüência dela o sujeito seja inteiramente incapaz de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (ausência da capacidade intelectiva ou volitiva)."

Ressalta-se que a exclusão da imputabilidade, nessa hipótese de embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, só ocorre caso haja a ausência da capacidade intelectual ou volitiva do agente ao tempo da prática do fato. Assim, caso não seja observada essa exclusão, mesmo frente a uma embriaguez acidental proveniente de caso fortuito ou força maior, o agente deverá responder pelo crime, subsistindo a imputabilidade.

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Vale trazer a colação os ensinamentos de Capez 157, o qual, de forma bastante esclarecedora, salienta que:

"na hipótese de embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior, fica totalmente excluída a imputabilidade, porque o agente perdeu a capacidade de compreensão e vontade, devendo ser absolvido. Entretanto, ao contrário do que ocorre na doença mental e no desenvolvimento incompleto ou retardado, não haverá imposição de medida de segurança (absolvição imprópria): a absolvição será própria, pois não há necessidade de submeter o sujeito a tratamento médico."

Nessa mesma esteira de raciocínio, surge a hipótese do § 2.º do art. 28 do Código Penal Brasileiro, rezando acerca destas mesmas espécies de embriaguez acidental, no entanto, de forma incompleta.

Vejamos a transcrição do dispositivo:

"art. 28, § 2.º. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento."

De uma simples leitura do dispositivo em comento, resta cristalino que, nas hipóteses em que o sujeito não se encontra inteiramente embriagado, a sua imputabilidade não será excluída, de tal sorte que necessariamente haverá o apenamento, só que de forma reduzida.

A compreensão deste artigo fica a cargo do Prof. Mirabete 158, o qual, de forma salientar, ensina-nos que:

"Tratando-se de embriaguez fortuita incompleta, na qual o agente, ao tempo do crime, não tem plena capacidade de entendimento e autodeterminação, há imputabilidade pela existência ainda dessa possibilidade de entender e querer. Devido, porém, à diminuição dessa capacidade, ao juiz é facultada a redução da pena de um a dois terços (art. 28, § 2.º)."

Cabe destacar que tal redução, inobstante a considerável opinião do douto Mirabete em contrário, é considerada um direito subjetivo do agente, não uma mera faculdade do juiz. Da mesma forma, a quantidade da diminuição (de um a dois terços) deve ser fundamentada, não podendo ser aleatoriamente fixada pelo julgador.

Outra hipótese que apresenta relevância jurídica é a embriaguez patológica. Conforme já assinalado, tal modalidade de embriaguez se assemelha à psicose e, por esse motivo, deve ser encarada como hipótese de inimputabilidade, prevista no art. 26, caput, do Código Penal Brasileiro.

"art. 26. é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento."

Devido tal espécie de embriaguez ser decorrente de distúrbios psicóticos, o Prof. Capez 159 chegou a afirmar que "trata-se de verdadeira doença mental, recebendo, por conseguinte, o mesmo tratamento desta."

Neste diapasão, a inimputabilidade se impõe e, por conseguinte, ao agente não poderá ser aplicada qualquer pena.

Em sentido contrário, discorre Basileu Garcia 160, ao comentar tal espécie de inimputabilidade, proveniente da embriaguez patológica, que:

"não deixa de ser curiosa tal disparidade: no mecanismo do Código, o indivíduo que cometa um crime por estar completamente embriagado, embora tenha bebido pela primeira vez na vida, será responsabilizado penalmente, desde que a embriaguez não seja fortuita, mas voluntária ou culposa. Esse indivíduo, porém, vem a delinqüir em conseqüência de perturbações mentais ocasionadas por continuas libações alcoólicas. Afinal, é ainda a embriaguez que produz o seu crime. E será considerado irresponsável."

Na realidade, mesmo, a primeira vista, bastante plausível a indagação levantada pelo Prof. Basileu Garcia, não há como dar razão ao mesmo após o estudo da embriaguez patológica.

Conforme sobejamente demonstrado no item 4.3, tal modalidade de embriaguez é uma patogenia, inclusive cadastrada pela CID.10, sendo que o agente, apenas com pequenas doses, já adentra num estágio de distúrbios psicológicos, perdendo completamente o seu normal discernimento.

Outrossim, conforme se depreende de estudos científicos realizados, o agente que sofre de embriaguez patológica encontra-se num estágio de disfunção cerebral, considerado doente mental, tendo, inclusive, aconselhada pelos médicos a total abstinência alcoólica aos portadores destas alterações cerebrais.

Assim, cristalina é a sua igualdade de condições com os viciados em tóxicos, com os loucos em geral, bem como com os que sofrem de desenvolvimento mental retardado, de tal sorte que resta completamente infundada a diferenciação de tratamento, qual seja, a inimputabilidade.

As outras hipóteses de embriaguez que assumem relevância jurídico-penal são a não-acidental, voluntária e culposa, e a preordenada.

Antes de adentrarmos nas conseqüências destas modalidades de embriaguez, quando presentes no momento da prática delitiva, resta, contudo, definirmos o instituto da actio libera in causa, que servirá de fundamentação jurídica para as suas respectivas aplicabilidades.

Na magnífica obra do Prof. Damásio 161, há relatos que a teoria em questão remonta a Aristóteles, o qual, em sua obra Magna Moral, manifestou-se no sentido que:

"Sempre que por ignorância se pratica um delito, o sujeito não se conduz voluntariamente, a não ser que aquele que o cometa seja causa da ignorância como acontece com os ébrios, os quais causam danos ou injúria, sendo causa da ignorância. 162 A conseqüência seria o ébrio responder somente pela embriaguez e não pelo crime. Entretanto, Aristóteles, socorrendo-se da Lei de Pítaco, afirmava que deveria sofrer duas penas, referentes à maldade cometida e à ebriez."

Outros doutrinadores, no entanto, afirmam que a teoria da actio libera in causa assume a sua base conceitual na Idade Média, período em que os práticos italianos, em oposição aos preceitos do direito canônico, firmaram posição no princípio de que, ocorrido o evento de ato voluntário, a responsabilidade do agente não se determinaria pela ação principal, qual seja, o crime, mas pela ação anterior, a causa mediata do crime. 163

Conforme salienta o Prof. Narcélio de Queiroz 164, essa definição é a observada pelos penalistas modernos que, de forma bastante extensiva, ampliaram a definição da actio libera in causa, com o intuito de se justificar a punição, a título de culpa, das condutas praticadas nos estados resultantes de uma ação voluntária, que não foi propositada.

Acerca desde assunto, desde o século XIX, Carrara foi um dos pioneiros a dar à problemática da aplicação da actio libera in causa uma orientação jurídica adequada, examinando a embriaguez sob o aspecto do dolo e da culpa. Assim se manifestou o renomado autor: 165

"a) na embriaguez preordenada, qualquer que fosse o seu grau, a imputabilidade seria sempre a título de dolo;

b) na embriaguez voluntária ou culposa, se completa, a imputação seria a título de culpa e, se incompleta, excluir-se-ia a imputabilidade e a imputação seria dolosa, porém, atenuada."

Neste diapasão, com absoluta propriedade o Prof. Damásio 166 reitera os ensinamentos do ilustre Roberto Lyra, traçando a etimologia da teoria em estudo, vejamos:

"O termo actio indica a conduta (ação ou omissão); libera expressa o elemento subjetivo do sujeito; in causa, a conduta anterior determinadora das condições para a produção do resultado. As duas expressões juntas, libera in causa, entendendo-se por actio a execução e o resultado, indicam a existência de um prius, consistente em conduta dominada pela vontade livre e consciente, em face de um posterius, não mais regido por ela. Sive ad libertatem relatae expressa o conceito da derivação subjetiva da actio da vontade antecedente livre e consciente."

Importante assinalar que a actio libera in causa deve ser compreendida sob a ótica do nexo causal entre ao ato de se embebedar e o resultado fático observado. Tal análise deve ser realizada com o objetivo de traçar a responsabilidade do agente e a sua conseqüente proporcionalidade perante a ação praticada.

Nesse sentido, manifesta-se o Prof. Narcélio de Queiroz 167:

"deve ser sempre analisado se há entre o evento, produzido já durante o estado de inimputabilidade e o ato livre de que decorreu, uma relação de causalidade, dependendo a punibilidade dos delitos caracterizados por esses resultados de que provieram, e que foram realizados num estado de imputabilidade, por dolo ou por culpa."

Assim, a actio libera in causa, segundo os ensinamentos do Prof. Narcélio de Queiroz 168, pode ser definida como:

"os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo-se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando podia ou devia poder."

Em nosso ordenamento jurídico-criminal, a teoria em comento apresenta-se na exposição de motivos do Código de 1940, sendo, posteriormente, ratificada na reforma ocorrida em 1984. 169

O saudoso Prof. Nélson Hungria 170, defendendo a aplicação desse critério extensivo da actio libera in causa, apoiou de forma irrestrita o contido na exposição de motivos do código, exposta pelo Ministro Campos, em que se vê que:

"Ao resolver o problema da embriaguez (pelo álcool ou substância de efeitos análogos), do ponto de vista da responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a teoria da actio libera in causa ad libertatem relata, que modernamente, não se limita ao estado de inconsciência preordenada, mas a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de inconsciência. Quando voluntária ou culposa, a embriaguez, ainda que plena, não isenta a responsabilidade"

Noronha 171, traz à colação a justificativa que entende como a adotada pelo Código Penal Brasileiro como a encontrada para o acolhimento das ações livres na causa para as hipóteses de ebriez, qual seja, a política criminal:

"Estamos que a consideração dada pela lei à ebriez assenta-se numa exigência de política criminal, como, aliás, fez com a paixão e a emoção. Diante das nefastas conseqüências do álcool e outras substâncias, o legislador ditou a regra do art. 28, II, sem preocupações com o estado de imputabilidade do indivíduo."

Naquilo que concerne à embriaguez preordenada, fácil é a compreensão no sentido do aproveitamento da actio libera in causa em sua totalidade.

Como afirma Bitencourt 172:

"nessa forma de embriaguez apresenta-se a hipótese de actio libera in causa por excelência. O sujeito tem a intenção não apenas de embriagar-se, mas esta é movida pelo propósito criminoso; a embriaguez constitui apenas um meio facilitador da execução de um ilícito desejado."

Assim, nas hipóteses de embriaguez preordenada, o animus de delinqüir do sujeito é preexistente à prática da ação delituosa, sendo que o agente encontra na bebida alcoólica, como é o caso em estudo, a coragem necessária para a prática da infração penal ou até a escusa que pensa ser necessária para não incidir em culpabilidade perante a sua ação.

Bettiol 173, de forma muito salientar, apresenta com extrema simplicidade o verdadeiro significado da teoria da actio libera in causa nos casos de embriaguez preordenada:

"o resultado produzido no estado de inimputabilidade deve ter sido previsto e querido pelo agente, e que este se tenha posto em condição de incapacidade de entender ou de querer, para praticar o crime ou para preparar-se uma escusa."

Nessas hipóteses, resta cristalino o nexo causal preexistente ao estado de inimputabilidade em que o agente, de forma proposital, colocou-se. Da mesma forma, de fácil constatação é a presença da circunstância agravante prevista no art. 61, II, l, do Código Penal, em razão da maior censurabilidade da conduta, vejamos:

"art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:

(...)

II – ter o agente cometido o crime:

(...)

l) em estado de embriaguez preordenada."

Nesse mesmo sentido, basilar é o posicionamento de Noronha 174:

"Cabe dizer que a lei considera como circunstância agravante a ebriez preordenada, isto é, quando o sujeito ativo se embriaga para delinqüir. É o que dispõe o art. 61, II, l: ‘em estado de embriaguez preordenada.’"

Inobstante a exposição de motivos do Código Penal, que fundamentou a própria criação dos artigos referentes aos casos de embriaguez, manifestar-se cristalinamente no sentido da total aplicabilidade da actio libera in causa, forte é a divergência doutrinária quando o assunto é a relação existente entre a aplicabilidade da actio libera in causa e os casos de embriaguez não acidental, seja dolosa ou seja culposa.

Vale ressaltar que a problemática começa da simples análise do disposto no art. 28, II do Código Penal, segundo o qual, deve obrigatoriamente subsistir a culpabilidade em todas as hipóteses de embriaguez não acidental:

"Art. 28. Não excluem a imputabilidade penal:

(...)

II – a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos."

O Prof. Fernando Capez 175 é um dos autores que se manifestam favoráveis à aplicabilidade da actio libera in causa, em sua totalidade, nos casos de embriaguez não acidental. Vejamos a defesa do renomado penalista:

"A embriaguez não acidental jamais exclui a imputabilidade do agente, seja voluntária, culposa, completa ou incompleta. Isso porque ele, no momento em que ingeria a substância, era livre para decidir se devia ou não o fazer. A conduta, mesmo quando praticada em estado de embriaguez completa, originou-se de um ato de livre-arbítrio do sujeito, que optou por ingerir a substância quando tinha possibilidade de não o fazer. A ação foi livre na sua causa, devendo o agente, por essa razão, ser responsabilizado.

É a teoria da actio libera in causa (ações livres na causa). Considera-se, portanto, o momento da ingestão da substância e não o da prática delituosa. Essa teoria ainda configura resquício da responsabilidade objetiva em nosso sistema penal (...)."

Outro defensor da aplicabilidade da teoria da actio libera in causa aos episódios de embriaguez não acidental é o saudoso mestre Hungria. Segundo os ensinamentos do douto penalista, restaria uma vontade residual no sujeito que fez uso de bebidas alcoólicas, ou seja, um resíduo de consciência e vontade que não lhe eliminaria a imputabilidade. 176

Tais ilustres autores penalistas coadunam com a forma de pensar de Mezger 177, para o qual a embriaguez não acidental é algo que o agente pode evitar e controlar, dessa forma, ensina o renomado autor que:

"na embriaguez é possível e pode ser exigido um grau mais alto de autocontrole do que, por exemplo, nas alterações da consciência de índole orgânica. As perturbações por intoxicação de álcool sempre ficam, em maior ou menor medida, na superfície."

Nesse entendimento, a embriaguez não acidental jamais exclui a imputabilidade penal, seja ela voluntária ou culposa. Isso ocorre porque o sujeito, no momento em que ingere a substância inebriante, é livre para decidir se devia ou não fazer. A conduta, mesmo que praticada em estado de embriaguez completa, originou-se de um ato de livre arbítrio do sujeito, que optou por ingerir o líquido inebriante, quando possuía a alternativa de não o fazer.

Nessa mesma esteira de raciocínio, Battaglini 178 lançou uma engenhosa e interessante frase, segundo a qual "o ébrio, de inteligência suprimida e de vontade inexistente, é criação da fantasia: ninguém jamais o viu no banco dos réus."

De outro lado, irresignado com o posicionamento adotado pelo Código, no que concerne a aceitabilidade da actio libera in causa nas hipóteses de embriaguez não acidental, o Prof. Basileu Garcia 179 manifestou-se no sentido de que:

"Não percebemos o nexo de causalidade psíquica entre a simples deliberação de ingerir bebida alcoólica e um crime superveniente. O agente não pensa em delinqüir. Nem mesmo – admita-se – supõe que vai embriagar-se. Entretanto, embriaga-se totalmente e pratica lesões corporais num amigo. Parece-nos um exagero dizer que ele procedeu com dolo, mediante aplicação do princípio das actiones libera in causa.

O que há na hipótese é, pura e simplesmente, um caso de responsabilidade objetiva – responsabilidade excepcionalmente sem culpabilidade, ou, pelo menos, sem aquele grau de culpabilidade tido como relevante no sistema jurídico, - responsabilidade objetiva que os autores do Código de 1940 não querem, de forma alguma, confessar ter acolhido.

Mas, se tamanha extensão se pretende emprestar à teoria das actiones libera in causa, então também o doente mental, que assim se tornou apenas pela culpável imoderação no uso do álcool, devia ser responsabilizado."

Nesse mesmo sentido, manifesta-se o mestre Noronha 180, afirmando que:

"Não se pode, em nome dessa teoria, responsabilizar alguém pelo só fato de poder genericamente delinqüir, pois é preciso acentuar que quando na citada teoria, se fala em dolo ou culpa em relação ao crime que se segue, é sempre certo e determinado delito.

A exposição de motivos dá extensão muito ampla à teoria, pois acha que a pessoa, embriagando-se, responde em virtude da ação livre na causa, porém não mostra o nexo psicológico (dolo ou culpa) com determinado crime. A imputação é a título genérico, pelo crime que acaso venha a cometer: homicídio, lesão corporal, estupro, furto etc.

Conseqüentemente, não estamos nos domínios da actio libera in causa. Nesta, o agente é livre na causa, que, praticada em pleno uso e gozo das faculdades mentais, já é ato executivo do crime, ao passo que, na embriaguez, ele não quer cometer delito, mas somente beber."

O Prof. Damásio 181 vai além, ao afirmar que, com o advento da Constituição Federal de 1988, o art. 28, II do Código Penal foi tacitamente revogado, face a positivação a nível constitucional do princípio do estado de inocência, previsto no art. 5.º, LVII da Carta Republicana.

"o art. 28, II, do Código Penal, na parte em que ainda consagrava a responsabilidade objetiva, uma vez que permitia a condenação por crime doloso ou culposo sem que o ébrio tivesse agido com dolo ou culpa, foi revogado pelo princípio constitucional do estado de inocência (CF, art. 5.º, LVII)."

O Prof. Damásio justifica o seu posicionamento, no qual afasta completamente a aplicabilidade da actio libera in causa dos casos de embriaguez não acidental, em que não há a previsão do resultado delituoso, com a assertiva de que o nosso ordenamento jurídico não pode aceitar uma hipótese clara de responsabilidade penal objetiva, na qual o sujeito sequer imaginou a ocorrência de uma futura e provável conduta delituosa. 182

Realmente, com razão está Damásio 183 ao afirmar, com a propriedade que lhe é peculiar que:

"A moderna doutrina penal não aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa à embriaguez completa, voluntária ou culposa e não preordenada, em que o sujeito não possui previsão, no momento em que se embriaga, da prática do crime. Se o sujeito se embriaga prevendo a possibilidade de praticar o crime e aceitando a produção do resultado, responde pelo delito a título de dolo. Se ele se embriaga prevendo a produção do resultado e esperando que não se produza, ou não prevendo, mas devendo prevê-lo, responde pelo delito a título de culpa. Nos dois últimos casos, é aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa. Diferente é o primeiro caso, em que o sujeito não desejou, não previu, nem havia elementos de previsão da ocorrência do resultado. Quando ainda imputável o sujeito, não agiu com dolo ou culpa em relação ao resultado do crime determinado. A embriaguez não pode ser considerada ato de execução do crime que o agente não previu (...) Para que haja responsabilidade penal no caso da actio libera in causa, é necessário que, no instante da imputabilidade, o sujeito tenha querido o resultado ou assumido o risco de produzi-lo, ou o tenha previsto sem aceitar o risco de causa-lo ou que, no mínimo, tenha sido previsível. Na hipótese de imprevisibilidade, que estamos cuidando, não há falar em responsabilidade penal ou aplicação da actio libera in causa. Assim, afirmando que não há exclusão da imputabilidade, o Código admite responsabilidade objetiva."

Nessas hipóteses, em que o agente se embriaga, de forma completa, intencionalmente ou em razão de sua imprudência, e vem a cometer uma futura infração penal, a qual sequer foi prevista quando o mesmo possuía qualquer grau de discernimento, resta patente que o sujeito não age em virtude de seu animus específico, mas porque estava privado da sua capacidade de querer e de auto determinar-se.

Assim, o indivíduo que se embriaga voluntariamente e pratica, em conseqüência do seu estado, um fato danoso, não é, por si só, condição imputável do ponto de vista da actio libera in causa.

Resta advertir que tal teoria é impecavelmente válida para o caso de embriaguez preordenada, e até mesmo para as hipóteses da própria embriaguez não acidental, seja dolosa ou seja culposa, nos quais o agente, antes de se embriagar, assume o risco de cometer uma infração penal, prevê a possibilidade da ocorrência da mesma ou, pelo menos, deveria prever o resultado danoso que poderia causar o seu ato de embebedar-se.

Dessa forma, nas hipóteses de embriaguez não acidental, dolosa ou culposa, nas quais não há qualquer previsão da ocorrência do resultado danoso no momento em que o sujeito está se embriagando não há como conciliar a aplicabilidade da actio libera in causa.

A justificativa aparece na ausência do laço de causalidade entre o ato de embriagar-se do agente e o resultado danoso produzido. Ora, como analisar uma conduta realizada num estado de completa ausência de discernimento se o agente jamais previu, nem deveria prever, a realização de tal ação?

Cabe destacar que, no momento da prática criminosa, o sujeito não possuía sequer capacidade de entender o caráter ilícito do fato que estava a produzir ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, assim, não há como falar em imputabilidade e, conseqüentemente, culpabilidade para este sujeito.

Como visualização de uma situação de possível ocorrência, na qual fica cristalinamente demonstrada a diferença entre a hipótese de embriaguez não acidental cabível de imputabilidade e aquela na qual não há como considerar imputável o agente, vele transcrever o exemplo extraído da obra do Prof. Walter Vieira 184:

"Por exemplo, o motorista que, saltando do carro, entra num bar para tomar um refrigerante, mas aceita convite para ingerir bebida alcoólica, e já completamente embriagado, volta ao volante, provocando um acidente.

Suponha-se, porém, que o mesmo motorista, com a sua jornada de trabalho já encerrada, depois de recolher normalmente o veículo à garagem, saia a se divertir com amigos. Horas após, inteiramente bêbado, recebe aviso inédito para fazer um serviço extra. Em estado sóbrio, jamais poderia supor fosse chamado para aquela tarefa. Era praxe rigorosa da empresa onde trabalhava não utilizar os empregados fora do expediente normal. Mas ele dirige-se à garagem e ali, ao pôr o carro em movimento, atropela o vigia.

Evidentemente, a segunda hipótese não se situa nos domínios da actio libera in causa. De acordo com M. E. Mayer, ainda que a embriaguez tenha levado o agente a provocar o dano, não se vislumbra uma culpa precedente que se refira a esse evento."

Assim, no que concerne a embriaguez não acidental, a aplicação da teoria da actio libera in causa só pode ser aceita nos casos de embriaguez voluntária em que o sujeito se embriaga prevendo a possibilidade de praticar o delito, aceitando o risco da produção do resultado, bem como, nas hipóteses de embriaguez culposa em que o agente embriaga-se tendo a previsão do resultado, mas esperando que ele não se produza, ou não tendo a previsão do resultado delituoso, deveria prevê-lo, uma vez que se encontra em circunstâncias especiais.

Dessa forma, fica patente que o nosso Código Penal, em seu art. 28, II pecou ao não realizar uma melhor distinção entre as duas hipóteses de embriaguez não acidental, voluntária ou culposa, no que tange a previsibilidade ou não da ocorrência do resultado danoso, ou, ao menos, o dever de tal previsibilidade.

Nesta esteira de raciocínio, art. 28, II do Código Penal Brasileiro deve ser analisado sob a ótica constitucional, de tal sorte que se torna inaceitável o acolhimento da responsabilidade objetiva, como o dispositivo em epígrafe dá a entender para uma das hipóteses de embriaguez não acidental.

Neste diapasão, podemos traçar o seguinte esquema, como forma de melhor visualização, de todas as espécies de embriaguez e as suas conseqüências jurídico-penais:

1) EMBRIAGUEZ NÃO-ACIDENTAL:

A) Voluntária:

  • completa – art. 28, II

  • incompleta – art. 28, II

B) Culposa:

  • completa – art. 28, II

  • incompleta – art. 28, II

Completa: deve-se analisar, no caso concreto, se houve a previsibilidade ou não da produção do resultado danoso anteriormente à embriaguez completa, da qual pode-se extrair as seguintes conseqüências:

Em caso negativo, a imputabilidade dever-se-á ser excluída face a análise do Código Penal sob a perspectiva constitucional.

Em caso positivo, e o agente assuma o risco pela produção do resultado danoso, seja a embriaguez voluntária ou culposa, o mesmo responderá pela infração a título de dolo.

Em caso positivo, e o agente, mesmo prevendo o resultado, espera que o mesmo não ocorra, responde pela infração a título de culpa.

Incompleta: subsiste o discernimento do agente, mesmo que reduzido, de tal sorte que o mesmo deve responder pelo resultado da ação que produziu.

2) ACIDENTAL PROVENIENTE DE:

A) Caso fortuito:

  • completa – art. 28, § 1.º

  • incompleta – art. 28, § 2.º

B) Força maior:

  • completa – art. 28, § 1.º

  • incompleta – art. 28, § 2.º

Completa: Em ambas as situações de embriaguez acidental, seja decorrente de caso fortuito ou de força maior, ausente a capacidade de compreensão do indivíduo no instante da produção do resultado danoso, a imputabilidade é excluída.

Incompleta: Nessas hipóteses, resta ao agente um certo grau de entendimento, de modo que o mesmo, face as circunstâncias que o levou ao cometimento da infração, tem a sua pena reduzida.

3) PATOLÓGICA

Previsão legal: art. 26, caput ou parágrafo único

Conseqüências:

Se for inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, a imputabilidade deverá ser excluída

Caso não seja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, o agente encontrar-se-á diante de uma causa de redução de pena.

4) PREORDENADA

Previsão legal: art. 61, II, l.

É o caso típico da actio libera in causa, de tal sorte que o sujeito deverá responder pelo crime com a circunstância agravante de pena.

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Sobre o autor
Luiz Eduardo da Vitória Mattedi

Servidor do Ministério Público Federal do Estado do Espírito Santo e Advogado em Vitória/ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTEDI, Luiz Eduardo Vitória. A embriaguez alcoólica e as suas conseqüências jurídico-penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 718, 19 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6914. Acesso em: 23 dez. 2024.

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