“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.” (Guimarães Rosa: Grande Sertão Veredas).
Senhoras e Senhores,
1. A merecida homenagem que a Seção Judiciária da Justiça Federal do Estado do Piauí presta ao centenário de nascimento de Cláudio Pacheco revela o apreço que essa instituição tem demonstrado em face de importantes figuras do cenário jurídico nacional e regional.
2. As virtudes jurídicas de Cláudio Pacheco Brasil, bem como sua vastíssima produção intelectual, foram desfiladas pelo eminente professor Celso Barros Coelho. Este também uma das maiores referências do Direito e da Política piauiense.
3. Fiquei comovido com a lembrança de meu nome para participar desta importante solenidade. Atribuo esse convite à amizade dos Juízes Federais e à coincidência, para mim feliz, de ser conterrâneo do homenageado. Ambos somos filhos de Campo Maior, a “Terra dos Carnaubais”.
4. Colho da oportunidade para revelar uma situação pitoresca ocorrida ante esse fato: ser conterrâneo de Cláudio Pacheco.
5. No ano de 1996, estimulado e conduzido pelo Professor Enoque Soares Cavalcanti, fui prestar exames para ingressar no Curso de Doutorado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - a tradicional “Casa de Afonso Penna” -, na área de Direito Constitucional.
6. Naquela Academia, fui recebido pelo professor José Alfredo de Oliveira Baracho - outro ídolo já caído -, que, após analisar o meu currículo e verificar o local de nascimento, disse-me que sobre os meus ombros pesavam a tradição e a respeitabilidade do nome de Cláudio Pacheco, e que eu soubesse honrar a memória do grande constitucionalista brasileiro, nascido no Piauí.
7. Para minha fortuna, o fato de ser campomaiorense, conterrâneo do homenageado, contribuiu para meu ingresso no doutorado, pois boa era a imagem que o professor Baracho tinha do excepcional jurista piauiense.
8. Como assinalou o ilustre professor Celso Barros, o nome e o homem Cláudio Pacheco foram muito além dos estreitos lindes do Piauí e viajaram o Brasil e o Mundo.
9. Por isso, senhoras e senhores, de minha verdadeira emoção em participar desta justa reverência à memória desse colosso das letras jurídicas.
10. Contudo, sou obrigado a confessar que talvez não tenha conseguido honrar plenamente o nome do homenageado e provavelmente tenho frustrado as expectativas depositadas pelo professor Baracho, pois careço das virtudes intelectuais que sobejavam em Cláudio Pacheco.
11. Todavia, se me faltam esses indispensáveis dotes intelectuais que distinguiam o eminente jurista homenageado, e que diferenciam os grandes mestres dos pálidos aprendizes, sobram-me, no entanto, esforço, tenacidade, dedicação e comprometimento nas missões que devo cumprir e nos estudos que empreendo.
12. E nesta sessão solene que honra a forte passagem de Cláudio Pacheco, personagem que timbrou indelevelmente o seu nome nas letras jurídicas nacionais, escolhi como tema de minha fala o seguinte assunto: os direitos constitucionais dos homossexuais, sob as luzes da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
13. Essa é a missão que pretendo cumprir: falar do palpitante tema que aludi, procurando demonstrar que somente vale a pena “levar os direitos a sério” e dialogar sobre a Constituição, o constitucionalismo e o direito constitucional quando vivenciamos um regime verdadeiramente democrático, fundado na tolerância, na pluralidade, no respeito e na consideração que todas as pessoas merecem, independentemente de suas características pessoais, de suas posições sociais, de suas escolhas individuais ou das alternativas de vida que procuram construir.
14. Isso porque todos somos uma experiência única e irrepetível na história universal, e, sobretudo e principalmente, porque somos seres dotados de uma essencial dignidade que nos humaniza, e que nos dá valor em si, pelo ser humano que somos.
15. O simples fato de pertencer ao gênero humano já é por si só suficiente e bastante para que tenhamos o direito de sermos individualmente considerados e nos dá o dever de respeitar o outro, seja o igual, seja o diferente.
16. Esse é o ponto-de-partida de minha fala nesta solenidade. O ponto-de-chegada deverá ser a adequada compreensão do específico fenômeno constitucional, tendo como fio-condutor as promessas da liberdade, da igualdade e da fraternidade entre os membros dessa fantástica e complexa experiência universal: a pessoa humana.
17. Nesse percurso, visitaremos as citadas ações e os direitos constitucionais dos homossexuais, antes, contudo, trilharemos o caminho que perpassa pela interpretação, argumentação e aplicação da Constituição.
18. Com efeito, as normas jurídicas podem ser compreendidas como “técnica de imposição” ou como “arte de convencimento”. Nos regimes políticos autoritários, o Direito se qualifica principalmente como instrumento de imposição de comportamentos desejáveis pelos governantes. Todavia, cuide-se que nas verdadeiras democracias é possível criticar o governo, os governantes e as instituições sem medo e sem o receio do sofrer quaisquer constrangimentos ilegítimos.
19. Nos regimes políticos democráticos, onde deve prevalecer o império da razão e a busca dos consensos, por meio do diálogo, o direito se qualifica como “arte de convencimento” na estabilização de expectativas comportamentais construídas pelos governantes e pelos governados.
20. Na democracia, a norma jurídica é construída com a participação dos envolvidos na solução civilizada dos problemas de convivência social.
21. Nos Poderes Estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário) devem existir canais de comunicação entre aqueles que criarão as normas jurídicas e aqueles que serão os destinatários das conseqüências das normas criadas.
22. Se no regime autoritário, independentemente dos interesses dos cidadãos, o governante impõe o direito que entende ser o mais adequado para garantir a “paz social”, no regime democrático, o direito não é imposto pelo governante independentemente dos interesses dos governados, mas a partir desses interesses, usando da arte do convencimento dialógico e racional, ao invés da opressão, do temor e da força bruta e irracional, própria dos governos autoritários. Além da almejada “paz”, busca-se a “justiça” possível.
23. Pois bem, senhoras e senhores, por vivermos em um regime democrático, entendido, repita-se, como reino da liberdade, da tolerância, da pluralidade, da razão, do diálogo, da busca do consenso, da aceitação do outro e da inclusão dos “diferentes”, como manifestações do respeito e consideração que todos igualmente merecemos por sermos dignos desses tratamentos, parto da idéia do direito como “arte do convencimento”.
24. Nessa perspectiva, devo estabelecer alguns “conceitos operacionais” para uma adequada compreensão dos fenômenos constitucionais problemáticos.
25. Fixarei as noções de enunciado, de proposição e de norma constitucional. Depois, assentarei as noções de interpretação, argumentação e a aplicação das normas constitucionais. E, por fim, ainda na seara das premissas, acolherei a metodologia do “tridimensionalismo constitucional”, uma visão temperada da clássica e conhecida teoria “tridimensional do direito”, de Miguel Reale, na qual devemos considerar, além do texto normativo, as circunstâncias fáticas e os valores sociais institucionalizados na construção da melhor decisão possível para a solução do problema constitucional sob exame, empolgando os referenciais da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
26. Forte nesses fundamentos, enfrentaremos o tema específico dos “direitos constitucionais dos homossexuais”.
27. Seguirei os passos trilhados por Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito, 2006, pp. 4 e seguintes) e por José Joaquim Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição,1998, pp. 1.065 e seguintes), chamarei de “enunciado constitucional” as palavras contidas no texto constitucional, ou seja, os símbolos lingüísticos sujeitos a múltiplas significações. As palavras podem ter, de acordo com as circunstâncias ou de acordo com as pessoas, vários sentidos.
28. Certo. Os termos constitucionais não são unívocos, e muito menos inequívocos. São termos plurívocos, a depender das circunstâncias ou das pessoas.
29. Continuo estribado nesses referidos autores. Chamarei de “proposição constitucional” os múltiplos sentidos ou as diversas significações que podem ser atribuídas aos “enunciados constitucionais” pela comunidade dos intérpretes ou dos envolvidos no fenômeno constitucional. Cada “enunciado constitucional” pode suscitar, reitera-se, variadas significações e os mais díspares sentidos.
30. Sucede, no entanto, que essas significações atribuídas, essas “propostas constitucionais” não têm força vinculante. Ou seja, não podem obrigar, nem proibir, nem facultar os comportamentos humanos ou das instituições, porque inexistem conseqüências para o eventual cumprimento ou descumprimento de suas “recomendações” ou “sugestões”.
31. As “proposições constitucionais” não são protegidas por “sanções” institucionalizadas, no caso de eventual descumprimento, pois não acatar a proposição não significa descumpri-la, mas tão somente não acolher a “sugestão ou a recomendação” proposta. Também não viabilizam o recebimento de “prêmios” na hipótese de aceitação de suas “recomendações” ou acolhimento de suas “sugestões”. Em suma, a proposição não tem força jurídica vinculante, não é dever-ser jurídico que obriga ou proíbe ou faculta. É um pode-ser, uma vez que todo e qualquer um pode fazer a sua “proposição constitucional”.
32. E, para finalizar esses primeiros conceitos operacionais indispensáveis para uma adequada compreensão dos fenômenos constitucionais, chamarei de “norma constitucional” a significação, com força vinculante, atribuída ao “conjunto de enunciados” na solução de problemas ou dúvidas constitucionais.
33. A “norma constitucional” é a decisão com força vinculante e com validade jurídica que obriga ou proíbe ou faculta um determinado comportamento ou uma específica conduta.
34. A “norma constitucional” é o “dever-ser” cujo eventual cumprimento deverá gerar uma conseqüência “premial” ou cujo possível descumprimento deverá gerar uma conseqüência “sancionatória”.
35. A “norma constitucional” deverá ser protegida pelas Instituições estatais e sociais, pois deverá vincular as expectativas comportamentais dos indivíduos e das corporações.
36. A principal diferença entre a “proposição constitucional” e a “norma constitucional” reside na força vinculante e no caráter de validade jurídica desta – a norma – em face daquela – a proposição.
37. Em síntese, podemos dizer que a “norma” é a “proposição” com força vinculante e com validade jurídica, porquanto o seu eventual cumprimento pode ensejar situações “premiais” e o seu possível descumprimento pode atrair a “sanção” socialmente institucionalizada.
38. Nessa batida, se a “proposição” não gera qualquer conseqüência, a “norma” poderá gerar no mínimo duas conseqüências: se observada, a possibilidade de não sofrer quaisquer constrangimentos; se desrespeitada, a possibilidade de sofrer constrangimentos (sanções institucionalizadas).
39. Isso nos conduz a não confundirmos o “texto normativo” (conjunto de enunciados prescritos) com a “norma” (dever-ser vinculativo das condutas e comportamentos).
40. A “norma” nasce do “texto”, mas com ele não se confunde.
41. Nesse quadro, sabemos que “enunciado”, “proposição” e “norma” constitucional são “coisas” distintas, a despeito de suas indiscutíveis proximidades e interseções.
42. Repito, para bem sedimentar, o “enunciado” é o símbolo lingüístico sujeito a diversas significações. A “proposição” é uma das múltiplas propostas de significação que toda e qualquer pessoa pode fazer acerca dos “enunciados”. E a “norma” é a significação válida e juridicamente vinculante que obriga ou proíbe ou faculta as condutas e os comportamentos humanos.
43. Irei, nesse compasso, estabelecer as noções operacionais do que seja a interpretação, a aplicação e a argumentação constitucional.
44. Lastreado nos cogitados doutrinadores (Kelsen e Canotilho), chamarei de interpretação a atribuição de sentidos às circunstâncias fáticas e aos enunciados jurídico-normativos.
45. É o intérprete quem diz o que lhe diz o direito. O direito não diz nada para ninguém. Quem fala pelo direito é o seu intérprete. Por conseqüência, cada intérprete tem o seu direito, motivado, não raras vezes, por “circunstâncias específicas”, “interesses particulares” e “conveniências pessoais”.
46. Com razão Eros Roberto Grau (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, 2006, p. 30), hoje Ministro do STF, quando diz que o direito é alográfico:
“O direito é alográfico. E alográfico porque o texto normativo não se completa no sentido nele impresso pelo legislador. A ‘completude’ do texto somente é atingida quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete”.
47. Todavia, há limites para a atuação do intérprete. O principal deles, ao meu sentir, consiste no fato de que o intérprete deve respeitar o que está escrito no texto normativo.
48. O que isso significa? Basicamente que o intérprete não pode falar o que não está escrito no texto, nem pode deixar de falar aquilo que efetivamente está escrito no texto. É chamada “limitação semântica” do texto.
49. Isso implica no fato de que deve o intérprete atribuir os sentidos possíveis a partir do texto normativo. Não pode o intérprete ignorar o que está escrito no texto. Ao contrário, deve considerar o enunciado prescrito no texto normativo.
50. Contudo, isso não significa que o intérprete deverá ficar “enjaulado” no escrito do texto normativo, mas também, repito, não poderá “se libertar arbitrariamente” daquilo que efetivamente se encontra escrito no texto a ser interpretado.
51. Reitero: o intérprete não pode dizer o que não está “dito” no texto, nem pode deixar de falar aquilo que o texto efetivamente “fala”. O texto normativo não pode ser ignorado. As normas pressupõem os textos.
52. Além do respeito aos enunciados contidos no texto normativo, é preciso reconhecer que tais enunciados não são contraditórios e se o forem são apenas aparentemente contraditórios. O texto não pode “dizer” e “desdizer” algo ao mesmo tempo. É de se reconhecer a unidade e a coerência narrativa do texto, rechaçando-se eventuais contradições internas.
53. Na atribuição de significados normativos, o intérprete deve atribuir sentidos razoáveis e proporcionais. Ou seja, adequados, aceitáveis, necessários e compatíveis com a realidade social, política, cultural, econômica, científica, tecnológica etc., em suma, com as “circunstâncias fáticas” e com “os valores institucionalizados”. O pressuposto para esses sentidos razoáveis e proporcionais é o “bom senso”. O direito deve ser interpretado com “bom senso”.
54. No processo de interpretação, no caso de aparente contradição (colisão ou conflito) entre os enunciados constitucionais, o intérprete deverá fazer uma ponderação de interesses, bens e valores constitucionalizados, circunstanciando os aspectos fáticos e considerando os enunciados constitucionais, para que seus eventuais excessos subjetivistas não coloquem em risco a desejável certeza, segurança, previsibilidade e estabilidade normativas.
55. Pois bem, se cada pessoa humana é livre para interpretar o direito, atribuindo-lhe o sentido que melhor lhe aprouver, dadas as complexas circunstâncias da vida e os múltiplos interesses existentes em uma sociedade, especialmente nas abertas e multiculturais, tendo em perspectiva os paradigmas sociais e os prismas individuais dos intérpretes, na solução dos problemas jurídico-constitucionais há de se buscar uma interpretação que seja vinculativa, ou seja, uma decisão que deve ser aplicada à solução do caso concreto e sobre o qual há uma controvérsia jurídica que necessita ser resolvida ou pacificada.
56. Nessa linha, chamarei de aplicação a solução normativa encontrada para resolver um problema jurídico-constitucional, que decida um conflito de interesses e de visões contrapostas.
57. Essa interpretação oficial e vinculativa é realizada pelos Poderes Estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário). No entanto, se o problema jurídico reclamar uma decisão definitiva e solucionadora da controvérsia, deverá essa decisão ser pronunciada pelo Poder Judiciário. Deverá ser construída em um processo judicial, cabendo ao Juiz a missão de dizer quem está com a “verdade”, com a “razão” e com o “direito”.
58. Dito de modo direto e sem rebuços: a aplicação concreta do direito, mediante uma interpretação válida e vinculante é a resultante de uma decisão judicial.
59. Isso significa que qualquer um pode – e deve – interpretar o direito. Mas somente o Juiz deve – e pode – aplicá-lo de modo válido e vinculante, por meio de uma decisão construída no seio de um devido processo legal, no qual haja a mais ampla defesa e o indispensável contraditório.
60. Hans Kelsen (obra citada, p. 394) diz que o Juiz é o intérprete autêntico do direito, porque ele cria o direito que será efetivamente vivenciado pelas pessoas ou partes envolvidas na controvérsia sob sua apreciação.
61. Essa ação criadora da função jurisdicional foi examinado por Cláudio Pacheco (Tratado das Constituições Brasileiras, Volume VII, 1965, pp. 13 e 14) para quem pronunciar o direito, seja legal ou extralegal, é o objeto verdadeiro e completo da jurisdição.
62. Sobre esse aspecto da criatividade normativa do Juiz ou da interpretação ou da aplicação judicial, disse Cláudio Pacheco, em longa, porém indispensável, passagem pedagógica:
“Não é possível situar esta questão, abstratamente, apenas no terreno doutrinário. Não é possível desconhecer que fecundos resultados de declaração, de revelação e de construção do direito fluem constantemente da atividade de interpretação exercida pelos órgãos judiciais. Mesmo que esses órgãos se mantenham, estritamente, dentro do seu papel constitucional, a sua incessante ação interpretativa estará sempre preenchendo o intervalo que permanece vazio entre a imobilidade literal do texto da lei e a mobilidade ininterrupta das situações e dos casos reais.
É pela interpretação judicial que a lei, imóvel na sua expressão literal, segue o seu curso vital de movimento e de adaptação, alcança o estado de plasticidade que é ao mesmo tempo a sua vida e a sua força, que lhe abre todas as possibilidades de realização e de execução. A interpretação judicial elastece a lei, que, sem essa elasticidade, poderia ficar imóvel no ponto de partida da sua emissão sem grandes possibilidades de uma plena introdução no convívio social. Em todos os casos de omissão ou de imperfeição da lei, cabe aos instrumentos de interpretação muitas vezes refundi-la, decidir para preencher ou redecidir para possibilitar a execução, em todos estes casos realmente legislando em sentido de complementação ou de suprimento, sempre decidindo, certamente muito mais do que simplesmente executando.
Temos ainda os casos mui freqüentes em que o juiz, deformando o seu papel constitucional, em vez de só fielmente aplicar a lei, antes a assimila, agora decidindo, total ou parcialmente, de modo paralelo ou contraditório, com a própria emissão legislativa.” - Cláudio Pacheco finaliza com essa relevante advertência contra eventuais abusos judiciais.
63. De efeito, como dissemos, o intérprete, inclusive e principalmente o judicial, não pode ignorar o que se contém no texto escrito. O Juiz, na solução da controvérsia, deve partir do texto, inclusive para, se for o caso, ir além do texto normativo.
64. Tenho dito que na democracia o direito deve ser “arte de convencimento”. No Estado Democrático de Direito, “vence quem convence”. É preciso “convencer para vencer” as causas e demandas. Para convencer é preciso argumentar.
65. Argumentar é demonstrar de modo convincente, aceitável e racionalmente justificado, o porquê de o intérprete ter atribuído determinado sentido aos textos normativos e o porquê de ter alcançado determinada solução para os problemas jurídico-constitucionais que lhe estão submetidos.
66. Nesse particular, filio-me a Chaïm Perelman (Lógica Jurídica, 2000), no sentido de que é preciso conhecer o seu “auditório” para bem argumentar e, por conseqüência, para convencer e obter a livre adesão de quem se quer convencer.
67. Nessa perspectiva, há a argumentação do advogado (postulante) e a argumentação do juiz (decisor).
68. O Advogado deve falar para persuadir o Juiz. O Juiz deve ser o destinatário dos esforços argumentativos do advogado na tentativa de obter o convencimento e a adesão do magistrado às suas postulações e o acolhimento dos interesses e pretensões que defende em juízo. O Advogado deve sempre procurar convencer o Juiz. O Juiz é o “auditório” do Advogado.
69. Esse é, ao meu sentir, o primeiro passo para o sucesso profissional de um bom Advogado: perceber que o destinatário imediato de seu ofício é o Juiz.
70. O Juiz, por seu turno, não deve falar para o Advogado. O Juiz deve, isso sim, falar para a parte, cidadão comum, que nem sempre, ou na maioria das vezes, não tem o domínio da “linguagem jurídica” e não conhece os termos técnicos específicos do direito.
71. O Juiz, ao decidir, decide para as partes, solucionando uma controvérsia ou um conflito entre elas. Para que a decisão seja “convincente”, deve o Juiz motivar e explicitar as razões justificadoras da solução encontrada e o porquê de ter feito determinada escolha, pois ao decidir, o Juiz faz uma escolha, regra geral, opta em favor de uma parte e, por conseqüência, em desfavor de outra. Diz “sim” para uma parte e “não” para a outra.
72. Ora, para a parte que ouve o “sim” judicial, não interessam as motivações ou razões justificadoras. A parte “vencedora” quase sempre sabe o porquê de sua “vitória”.
73. A rigor, é para a parte que ouve o “não”, que foi “derrotada”, que saiu “perdedora” da “batalha judicial”, que deve o magistrado demonstrar de modo convincente, aceitável e racional a motivação e a justificação de sua decisão que lha desfavoreceu.
74. A parte que ouviu o “não” do Juiz, ainda que dele discorde – e normalmente dele discorda e não se conforma – deve ser convencida que o Juiz não acolheu a sua pretensão, não concordou com a postulação de seu advogado, porque efetivamente se convenceu de que o “direito” estava com a outra parte.
75. Em suma, o Juiz deve convencer o “derrotado” de que ele – Juiz – ficou convencido de que o “vencedor” merecia “ganhar”. Essa demonstração de convencimento judicial não é nenhum “favor”, mas expressa determinação constitucional insculpida no art. 93, inciso IX, CF[1], que impõe o dever de fundamentação das decisões judiciais.
76. Fundamentar é explicitar de modo convincente, aceitável e racional as motivações justificadoras das escolhas e opções feitas por quem tem o poder de decidir.
77. Convencer é uma “arte”. Para convencer, é preciso conhecer profundamente o tema sobre o qual se vai falar e transmitir esse conhecimento de modo agradável aos sentidos.
78. O advogado (aquele que postula) deve procurar sempre convencer o juiz. O juiz (aquele que decide) deve sempre procurar convencer às partes, especialmente a parte “derrotada”.
79. Tenha-se, por oportuno e necessário, que o Juiz democrático é aquele que se permite convencer. É o Juiz imparcial. Aquele que, a despeito de seus prévios entendimentos, de seus “preconceitos ou precompreensões” e de sua “visão de mundo”, se permite “ouvir” o advogado. É o juiz que não tem medo nem se deixa intimidar por ninguém. É o juiz, repito, que “ouve” o que a parte tem a lhe dizer.
80. O bom advogado é aquele que conhece o direito que vai postular; que sabe “falar” com o juiz, com a merecida reverência, mas com altivez na defesa da parte que representa.
81. Um dos melhores exemplos da “advocacia” foi a “petição” de Abraão dirigida a Javé em favor dos eventuais inocentes de Sodoma (Gênesis, 18, 23-33), verdadeira “aula” de como se deve pedir a quem tem o poder de decidir:
“Abraão aproximou-se e disse: ‘Fareis o justo perecer com o ímpio? Talvez haja cinqüenta justos na cidade: fá-los-eis perecer? Não perdoaríeis antes a cidade, em atenção aos cinqüenta justos que nela poderíeis encontrar? Nãos, vós não poderíeis agir assim, matando o justo com o ímpio, e tratando o justo como o ímpio! Longe de vós tal pensamento! Não exerceria o juiz de toda a terra a justiça?’. O Senhor disse: ‘Se eu encontrar em Sodoma cinqüenta justos, perdoarei a toda a cidade em atenção a eles’.
Abraão continuou: ‘Não levei a mal, se ainda ouso falar ao meu Senhor, embora seja eu pó e cinza. Se porventura faltarem cinco aos cinqüenta justos, fareis perecer toda a cidade por causa desses cinco?’ – Não a destruirei, respondeu o Senhor, se nela eu encontrar quarenta e cinco justos.’ Abraão insistiu ainda e disse: ‘Talvez só haja aí quarenta’. – ‘Não destruirei a cidade por causa desses quarenta’. Abraão disse de novo: ‘Rogo-vos, Senhor, que não vos irriteis se eu insisto ainda! Talvez só se encontrem trinta! – ‘Se eu encontrar trinta, disse o Senhor, não o farei’. Abrão continuou: ‘Desculpai, se ouso ainda, falar ao meu Senhor: pode ser que só se encontrem vinte’. – ‘Em atenção aos vinte, não a destruirei’. Abraão replicou: ‘Que o Senhor não se irrite se falo ainda um última vez! Que será, se forem achados dez?’ E Deus respondeu: ‘Não a destruirei por causa desses dez’. E o Senhor retirou-se, depois de ter falado com Abraão, e este voltou para a sua casa’.
82. Se Deus permanecesse conversando com Abraão, provavelmente este teria demovido o Senhor da vontade de destruir Sodoma. O “advogado” Abraão fez o que pode, mas o “Juiz Eterno” não quis mais lhe escutar.
83. Evandro Lins (A defesa tem a palavra, 1980, pp. 20 e seguintes), que foi um grande Ministro do STF e um excepcional Advogado, conquanto falasse do advogado na “tribuna do júri”, deixou para todos nós a seguinte e válida orientação:
“A defesa é um meio que persegue um fim. Não é preciso defender ‘bonito’, é preciso defender ‘útil’.
Podem variar os estilos da eloqüência judiciária, mas ela há de ser lógica, há de ter força, há de falar à razão e ao sentimento. Só é bom advogado quem tem imaginação, criatividade, capacidade de se renovar, poder de comunicação com os jurados...
Não deve o advogado descurar do estudo, da leitura de tudo que lhe caía às mãos, literatura, poesia, história e direito, não só o direito penal e as ciências causal-explicativas do crime, a sociologia, a criminologia, a psicologia, mas também deve ter o conhecimento perfeito e completo da causa que vai defender”
Estudem, conheçam o processo, organizem um esquema para o desenvolvimento da defesa...
Leiam, releiam e tresleiam, todas as vezes que forem à tribuna, os autores necessários à demonstração da tese a ser defendida, e marquem os trechos que pretendam citar. Leiam, também, literatura, leiam poesia, leiam história, porque é preciso abastecer-se para o momento decisivo”.
84. Com razão Evandro Lins, piauiense nascido em Parnaíba. O Advogado deve falar com “razão” e com “emoção”. O Juiz não é uma máquina insensível aos sentimentos. O Juiz, pessoa humana que é, é ser racional e emocional. É um ser humano como qualquer outro, com virtudes e vícios. A diferença reside no fato de que tem a imensa e sagrada responsabilidade de decidir as causas de seus semelhantes.
85. Insisto na arte do convencimento. É preciso saber convencer. Para isso, deve-se conhecer o “assunto” e deve-se transmitir esse conhecimento de modo agradável e inteligível. É preciso ter o domínio da “palavra” e da “linguagem”.
86. Para isso, é preciso ler. Ler de tudo. Não apenas ler direito, mas como disse Evandro Lins, ler tudo que lhes cair nas mãos, mormente “literatura de boa qualidade”, pois somente tem o domínio da “palavra” quem tem boa leitura. É preciso visitar os grandes autores nacionais e estrangeiros (Machado, Shakespeare, Balzac, Cervantes etc). É preciso conhecer e conviver com os gênios criativos da raça humana. Homens e mulheres que refletem o que há de melhor nas capacidades e nas infinitas possibilidades do gênero humano, inspiradores dos nossos melhores sonhos.
87. Peço licença para ler uma das mais belas passagens da literatura. Cuida-se de trechos extraídos da peça “Antônio e Cleópatra”, de William Shakespeare.
88. Começo com a primeira fala da peça, no Ato I, Cena 1, é de Filo, oficial romano, emitida em uma sala no palácio de Cleópatra, em Alexandria, no Egito, falando para Demétrio, outro oficial romano. Filo critica o inaceitável comportamento apaixonado de Antônio:
FILO: Não, mas esta caduquice e o enrabichamento do nosso general desborda por todos os lados: aqueles olhos soberbos que, ao passar em revista as fileiras das tropas formadas durante a guerra, resplandeciam como Marte na armadura, agora baixam e inclinam-se, concentrando o serviço devotado da inspeção numa fronte morena. O seu coração de comandante militar, que na luta corpo-a-corpo das grandes batalhas arrebentava com as palpitações as fivelas da couraça, renega toda a têmpera de soldado e tornou-se o fole e o abano para esfriar o fogo de uma meretriz egípcia. Examinai-o bem e nele vereis um dos três pilares do mundo transformado no bobo e no brinquedo amoroso de uma puta... Mirai e enxergareis.
89. A outra fala sucede no Ato II, Cena 2, entre Enobarbus, oficial romano admirador de Antônio, e Agripa, oficial romano seguidor de Augusto César, na qual Enobarbus explica para Agripa como Cleópatra cativou o coração de Antônio:
ENOBARBUS: No primeiro encontro com Marco Antônio, no rio Cidno, ela botou o coração dele no bolso.
AGRIPA: Lá ela apareceu em todo o esplendor, ou o meu informante inventou a vontade.
ENOBARBUS: Eu vo-lo contarei. Ela sentava-se num barco que, como um trono flamejante, se queimava na água: a popa, recoberta de lâminas de ouro marchetado; as velas, todas de púrpura e tão perfumadas que os ventos delas se enamoravam; os remos de prata marcavam o ritmo pela música de flautas e obrigavam a água que eles batiam, como se apaixonada pelos golpes, a segui-los rapidamente para cobrir os sulcos que cavavam. Quanto à sua própria pessoa, qualquer descrição, por mais resplendente, afigura-se pobre se comparada com a realidade: reclinada sob extensa tenda de tecido entrelaçado de seda e ouro, era mais bela ainda que a pintura de Vênus, em que a imaginação artística superou a natureza. A cada lado seu, meninos formosos, de covinhas no rosto, semelhantes a Cupidos sorridentes, com leques de cores várias. E o vento que os leques agitavam parecia incandescer a face delicada que abanavam para refrescar, desfazendo o que faziam.
AGRIPA: Que esplêndida experiência para Antônio!
ENOBARBUS: As suas damas de honra, análogas a ninfas do mar, com ar de sereias, descobriam-lhe a vontade pelos seus olhos e, num movimento gracioso, em torno dela formavam moldura ornamental. No leme, outra senhora da corte, disfarçada em sereia, governa: as velas e os cordumes de seda enchem-se de orgulho ao toque de mãos delicadamente suaves como pétalas de flores e que com presteza executam a tarefa. Vindo do barco, um maravilhoso perfume inexplicável toca as pessoas postadas nas margens do rio. A cidade expele os seus habitantes para vê-la; e Antônio, sentado no trono na praça pública, permaneceu sozinho, assobiando para o ar que, se não fosse o horror ao vácuo, também teria ido contemplar Cleópatra e cavado um branco na natureza.
AGRIPA: Egípcia maravilhosa!
90. Indago: quem não se apaixonaria por Cleópatra? Quanto lirismo e beleza no manejo da palavra.
91. A “palavra dominada” faz dela um poderoso instrumento de manifestação de nossas visões, idéias, pensamentos, interesses e vontades. Sendo o direito “arte de convencimento”, é fundamental que o intérprete tenha pleno domínio da linguagem, não apenas a jurídica, mas de toda a linguagem para que saiba provocar e iluminar a razão e tocar e suscitar as emoções do ouvinte/“auditório”.
92. O intérprete deve mirar no cérebro e no coração.
93. Repito à exaustão: argumentar é procurar persuadir e convencer. E só persuade e convence quem conhece o assunto sobre o qual fala e sabe transmitir com lucidez e de modo agradável esse conhecimento que domina.
94. A palavra pode ser escrita ou falada. A escrita, em princípio, deve ser mais cerebral, mais racional, pois o “olho” humano é um grande aliado da “razão”. Por outro lado, a palavra falada, sem prejuízo de sua racionalidade, pode ser mais emotiva, pois o “ouvido” humano é mais sensível às emoções e às paixões.
95. O importante, reitero, é que o intérprete conheça tanto a matéria sobre a qual discursará, e também conheça o destinatário de seu discurso, de modo que saiba cativar as atenções de seu “auditório” e assim, se for o caso, poderá persuadi-lo e convencê-lo a aderir às suas interpretações.
96. Certo. De posse desses conceitos operacionais e das técnicas de persuasão e convencimento, o intérprete deverá escolher uma metodologia adequada para compreender os fenômenos jurídico-normativos ou solucionar um problema jurídico-constitucional.
97. Nesse particular, penso que a “teoria tridimensional do direito”, exposta por Miguel Reale (Filosofia do Direito, 2002, pp. 497 e seguintes), adequada para essa finalidade, sem embargo da existência de outros relevantes métodos jurídicos.
98. Isso significa que o intérprete do fenômeno jurídico-normativo, deverá levar em consideração, para uma adequada compreensão ou solução do problema jurídico-constitucional que lhe é submetido, as circunstâncias fáticas, os valores sociais institucionalizados e os enunciados prescritos nos textos normativos e nos precedentes judiciais.
99. Ou seja, deverá o intérprete ter o máximo conhecimento possível de todas as circunstâncias que envolvam os fatos que deram ensejo ao conflito ou à controvérsia jurídica. Os fatos são a base material sobre a qual será construída a decisão solucionadora do conflito.
100. Na apreciação das circunstâncias fáticas, o intérprete deve considerar os “valores sociais institucionalizados” e as suas “visões particulares do mundo e da realidade”. De efeito, o intérprete está inserido em um determinado contexto social, influenciado pela “cultura” e, obviamente, tem a sua experiência individual de mundo.
101. Esses “valores” podem ser considerados como os paradigmas sociais que estabelecem as “verdades” socialmente aceitas e compartilhadas pelos membros de uma determinada sociedade em um circunstanciado momento histórico.
102. A esses “paradigmas sociais”, agreguem-se, repita-se, os “prismas individuais” do intérprete. A sua singular experiência de vida. Os seus vícios, as suas virtudes. As suas alegrias, as suas melancolias e frustrações. Os seus sonhos, esperanças, e as suas desilusões. Enfim, a sua essencial humanidade.
103. E para completar o processo de interpretação, compreensão e solução dos fenômenos e problemas jurídicos, deve-se levar em consideração os “enunciados” prescritos nos textos normativos e nos precedentes judiciais.
104. O intérprete não pode desprezar as “palavras” contidas nos textos normativos, já o dissemos. O texto não pode ser ignorado. O intérprete não pode dizer o que o texto não diz, nem deixar de dizer o que o texto diz. É preciso respeitar e considerar o que está escrito no texto. O mesmo se diga em relação aos precedentes judiciais. Esses precedentes não podem ser ignorados pelos intérpretes.
105. Com efeito, direito não é diletantismo. É um instrumento para solucionar problemas concretos da vida em sociedade. Nesse sentido, deve o intérprete considerar as soluções já apresentadas para os mesmos problemas ou para questões similares.
106. Nesse particular, o Juiz deve, em homenagem à sua própria respeitabilidade, procurar ser fiel aos seus precedentes, às suas razões de decidir. A coerência é uma das maiores virtudes dos bons magistrados. Isso produz a sensação concreta de certeza e previsibilidade de quais comportamentos ou condutas são lícitas e válidas. Isso sinaliza o que é proibido ou obrigatório ou facultativo.
107. No entanto, isso não significa que o Juiz não possa modificar o seu entendimento ou as suas visões de mundo. Em absoluto. É até desejável que o Juiz evolua. Todos nós evoluímos à medida que nos aperfeiçoamos, que nos abrimos para o mundo e deixamos a clausura de nossas prisões individuais. É fora de toda a dúvida que todos os dias nós podemos nos modificar, que podemos evoluir, que podemos melhorar.
108. Sucede, todavia, que é preciso encontrar um “ponto ótimo” de estabilidade, que não significa imutabilidade.
109. O intérprete, sobretudo o judicial, não deve ficar mudando de entendimento a “toda hora ou a todo momento ou a cada nova causa”. Isso gera instabilidade e incerteza, bem como desconfiança na seriedade e no comprometimento do Juiz.
110. De sorte que o Juiz, sempre que for mudar o seu entendimento, deverá justificar, de modo convincente, as motivações que o levaram a evoluir em suas posições. Deve demonstrar que houve relevantes mudanças nas circunstâncias fáticas ou nos paradigmas sociais ou nos prismas individuais ou mesmo nos enunciados prescritos nos textos normativos e em outros precedentes jurisprudenciais.
111. O intérprete judicial não pode ter a “instabilidade das nuvens”. Não pode se deixar conduzir por qualquer novo “vento teórico” ou por qualquer nova “argumentação” ou “fundamentação”, sob pena de perder a credibilidade e o respeito.
112. A maior “arma” do Juiz repousa em sua credibilidade, em sua seriedade e no respeito que a comunidade lhe devota. Um Juiz que não é respeitado, porque não é coerente ou porque não tem uma reta conduta, é um fator de risco e de desequilíbrio da boa convivência social.
113. Pois bem, senhoras e senhoras, encerro a primeira parte desta exposição.
114. Finquei os seguintes alicerces: a) somente vale a pena dialogar e levar a sério o direito nos regimes democráticos, onde reinam liberdade, a igualdade e a fraternidade; b) a democracia é “a busca do consenso por meio do diálogo” e de que o direito é “arte de convencimento”.
115. Estabeleci que se deve ter pleno domínio dos conceitos operacionais “enunciado”, “proposição” e “norma”, e que a “interpretação”, a “aplicação” e a “argumentação” requerem uma adequada metodologia jurídica para bem compreender e solucionar os problemas constitucionais.
116. De sorte que poderei analisar os “direitos constitucionais dos homossexuais”. Este assunto é de provocante atualidade e extrema importância social, pois felizmente vivemos em uma sociedade aberta e democrática, tendo como objetivo final o pleno exercício das infinitas possibilidades de todos os seres humanos, tendo a dignidade como tratamento que todos reciprocamente merecemos, uma vez que devemos aceitar as pluralidades e exercitar a mútua tolerância.
117. Antes, contudo, insisto que a solução de problemas constitucionais deve ocorrer à luz da sã razão e do diálogo sincero, fundado em evidências comprováveis e socialmente aceitáveis.
118. Isso deve afastar as justificações religiosas do presente debate.
119. A religiosidade é um bem fundamental de qualquer cultura e deve ser garantido a todas as pessoas o direito de exercitar as suas crenças. Mas também é preciso respeitar os descrentes ou quem não compartilha das mesmas concepções de fé.
120. Isso não implica, em absoluto, na imposição de silêncio ao “discurso religioso”. Mas no fato de que as “crenças religiosas” somente têm valor para quem nelas acredita e deposita sua fé.
121. A religião é um poderoso instrumento de agregação social, de identificação cultural e de orientação individual, iluminando o entendimento e o comportamento de quem acredita no “divino”. Mas não pode servir de substrato para a regulação jurídica das condutas dos indivíduos, pelo menos nos Estados Democráticos de Direito.
122. Em uma verdadeira democracia, fundada na tolerância e na pluralidade, ninguém pode ser constrangido a crer, nem a deixar de crer, ou a crer de uma “única maneira”.
123. Assim, os “discursos religiosos”, que não devem ser silenciados, somente têm valor para quem acredita no seu conteúdo e respeita o seu emissor.
124. Nessa perspectiva, dentro dos “templos” ou falando para os seus “fiéis”, as lideranças religiosas têm todo o direito de condenarem as práticas que julgarem inadequadas àquela determinada religião ou que agridam determinada fé.
125. Isso está garantido no texto constitucional: a liberdade religiosa ou de crença (art. 5º, VI, CF).
126. Ou seja, repito, o “líder religioso” pode condenar qualquer conduta. Pode atacar o “marido que espanca sua esposa”. Pode condenar os “pais que abandonam material e emocionalmente os seus filhos”. Pode atacar o “patrão que não trata com dignidade os seus empregados”. Pode investir contra o “governante que usa do poder em benefício próprio, em vez de trabalhar pela comunidade”. Enfim o “líder religioso” pode falar o que quiser, inclusive dizer que o homossexualismo é pecado, se assim ele entender.
127. Todavia, esse “líder religioso” não poderá exigir a punição jurídica de quem é homossexual, assim como não pode pedir o “apedrejamento da mulher adúltera” ou “apedrejamento dos que não crêem em Javé”, como determina, por exemplo, o Deuteronômio bíblico.
128. Nada obstante a transcendental sacralidade dos textos religiosos, em nossa sociedade civil, aberta e democrática, as nossas condutas e comportamentos devem ser pautados pelos mandamentos legais e constitucionais.
129. Reitero, a fé é um importante pilar de sustentação dos indivíduos e das comunidades, mas não pode servir de pretexto para regular juridicamente os comportamentos humanos.
130. Nessa toada, é fora de toda a dúvida, que a questão dos homossexuais, especialmente nos países de formação religiosa e moral cristãs, fortemente influenciados pelos princípios religiosos e morais do judaísmo e das tradições greco-romana, sempre foi um tema problemático.
131. Na Inglaterra, por exemplo, pátria das liberdades fundamentais da pessoa humana, viu-se a criminalização e tratamentos aviltantes sofridos pelos homossexuais.
132. No ano de 1895, o genial escritor irlandês Oscar Wilde foi condenado por “cometer atos imorais com diversos rapazes”. Ele intitulava o homossexualismo como “o amor que não ousa dizer o nome”.
133. Tão grave quanto as punições sofridas por Oscar Wilde, foi o tratamento hediondo e desumano infligido em Alan Turing, um dos maiores gênios da matemática e da computação, que contribuiu decisivamente para que os ingleses derrotassem os alemães na 2ª Grande Guerra, ao quebrar os códigos alemães ultra-secretos.
134. Pois bem, por ser homossexual, Alan Turing foi afastado do serviço de inteligência britânico, foi publicamente humilhado, julgado e condenado por “vícios impróprios” e obrigado a tratar-se com hormônios para combater a sua homossexualidade. Deprimido, com apenas 41 anos, cometeu suicídio em 7 de junho de 1954.
135. Recentemente, no último dia 11, deste mês, o governo britânico pediu desculpas formais e resgatou o honrado e patriótico nome de Alan Turing. É claro que isso não o trouxe de volta, nem justifica o indizível sofrimento que ele sofreu, mas revela uma mudança de mentalidade, revela novos “paradigmas sociais”.
136. E nenhuma data poderia ser mais simbólica que o 11 de setembro, pois no ano de 2001, os ataques terroristas cometidos contra as “Torres Gêmeas” nos EUA, representaram, ao meu sentir, a ruptura da modernidade (a era das certezas racionais) e a chegada da pós-modernidade (a era das incertezas racionais), superando de vez a pré-modernidade (a era das certezas irracionais) (?).
137. A ninguém escapa que na tradição cristã ocidental, inclusive em nosso País, as pessoas que tenham tendências homossexuais sempre se viram obrigadas a viver no medo, no isolamento, na vergonha, na mentira, exilados dentro de sua própria pátria. Talvez se fossem portadores de doenças contagiosas e infecciosas não sofreriam com tantas humilhações e com tantos tratamentos indignos e desumanos.
138. Felizmente, nos últimos anos, a despeito da existência dos preconceitos, os homossexuais estão organizados, em “associações” e “movimentos”, “em passeatas de orgulho gay”, que reivindicam o justo e devido respeito e consideração que merecem. Ser homossexual não é crime. É uma opção de vida que deve ser respeitada, pois que suas condutas não afetam nem prejudicam a vida de ninguém. É uma questão eminentemente individual e restrita ao domínio da vida privada e da intimidade.
139. A homossexualidade, já o disse, pode até ser um ilícito religioso, a depender das crenças e convicções religiosas de cada um. Pode até ser uma conduta imoral, a depender dos valores de cada um. Mas não é e nem deve ser um ilícito civil, nem muito menos uma conduta criminosa a ensejar uma sanção penal. É só um estilo ou uma alternativa de vida. Nada mais do que isso.
140. Certo. Em uma perspectiva democrática, de verdadeiro respeito pelos direitos fundamentais de todas as pessoas humanas, o “eu”, o “outro” e o “nós” somos a medida de todas as coisas.
141. Nessa linha de compreensão, foi ajuizada ação perante o Supremo Tribunal Federal postulando as seguintes declarações da Corte:
(a) que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e
(b) que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
142. A referida ação foi proposta em 2.7.2009, pela Procuradora-Geral da República Deborah Duprat, no exercício interino do elevado cargo.
143. Tenha-se que a PGR propôs inicialmente uma ADPF – argüição de descumprimento preceito fundamental, tombada sob n. 178. Mas o Presidente da Suprema Corte, Ministro Gilmar Mendes, aplicando o princípio da fungibilidade processual, determinou que fosse reautuada como ADIN – ação direta de inconstitucionalidade, tombada sob o n. 4.277. Não nos interessam essas filigranas processuais.
144. Cuide-se, por uma questão de justiça histórica, que o Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em 27.2.2008, propôs uma ADPF, tombada sob o n. 132, tendo como alvo “o conjunto de decisões judiciais que negam às uniões homoafetivas o mesmo regime jurídico das uniões estáveis, interpretando discriminatoriamente a legislação estadual e a legislação federal”.
145. Nada obstante a precedência cronológica da referida ADPF 132, considerando a maior abrangência da aludida ADIn 4.277, focaremos nela as nossas atenções, sem prejuízo dos relevantes fundamentos e argumentos esgrimidos na citada ADPF 132.
146. Pois bem, na cogitada ADIn 4.277 foram feitos os já mencionados pedidos para “(a) declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e (b) declarar que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo”.[2]
147. Na referida ADPF 132, no ponto que interessa, pediu-se uma “interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 do Código Civil, para o fim de que esse dispositivo não seja interpretado de modo a impedir a aplicação do regime jurídico da união estável às uniões homoafetivas, impondo-se, ao revés, sua aplicação extensiva, sob pena de inconstitucionalidade”.[3]
148. Os fundamentos normativos dispostos nos enunciados constitucionais que dão base às cogitadas postulações são os seguintes:
a) princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF);
b) os princípios constitucionais da liberdade, da igualdade e da segurança (art. 5º, caput, CF);
c) o princípio constitucional da proibição das discriminações e dos preconceitos odiosos (art. 3º, IV, CF);
d) o princípio constitucional da laicidade estatal (arts. 5º, VI e VIII; e 19, I, CF); e
e) o princípio constitucional do reconhecimento como entidade familiar das uniões estáveis (art. 226, § 3º, CF).
149. Além do texto constitucional, os postulantes socorrem-se do disposto nos arts. 2º, § 1º; e 26, do Pacto dos Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas, reconhecido pelo Estado brasileiro por meio do Decreto presidencial n. 592, de 7.7.1992, que consagra o “direito à igualdade ao proibir por motivos de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”.
150. Além dos referidos enunciados normativos, os postulantes agregam várias decisões judiciais, inclusive de Tribunais Superiores e do próprio STF, no sentido do reconhecimento de vínculos jurídicos decorrentes dos inquestionáveis laços afetivos que envolvem os homossexuais.
151. Vale destacar o acórdão do Recurso Especial Eleitoral, julgado no TSE, em 2.10.2004, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, cujo voto tem a seguinte passagem:
“É um dado da vida real a existência de relações homossexuais em que, assim como na união estável, no casamento ou no concubinato, presume-se que haja fortes vínculos afetivos.
Assim, entendo que os sujeitos de uma relação estável homossexual (denominação adotada pelo Código Civil alemão), à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal”.
152. Nessa linha, demonstram os suplicantes a existência de relevantes manifestações da evolução jurisprudencial brasileira.
153. Ante esse quadro “fático circunstancial”, em face da modificação de “valores da sociedade” e com esteio nos “agitados preceitos normativos e nos precedentes judiciais”, defendem uma interpretação teleológica e principiológica dos seguintes dispositivos normativos:
Constituição Federal de 1988
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002)
Art. 1.723. É reconhecida a como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
154. Segundo os requerentes, é possível extrair (ou atribuir) do aludido conjunto normativo e dos precedentes jurisprudenciais, mandamento constitucional que autorize o reconhecimento, como entidade familiar, à união estável entre pessoas do mesmo sexo, com todas as conseqüências jurídicas decorrentes desse cogitado reconhecimento.
155. Com estribo em sólida doutrina de caráter jurídico, antropológico, sociológico e filosófico, de produção nacional e estrangeira, amparados por decisões judiciais, e conscientes da profunda mudança de mentalidades e de paradigmas da sociedade ocidental e da brasileira em particular, os postulantes esgrimem argumentos favoráveis às suas pretensões, fortes na tese de que a Constituição de 1988 é uma “Carta de Princípios” consagradores da dignidade humana, a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
156. Aduzem que as práticas homossexuais não agridem os direitos fundamentais dos “outros”, nem violam os próprios deveres fundamentais dos homossexuais, mas devem ser eficazmente protegidos, pois são direitos da pessoa humana, como “quaisquer outros direitos fundamentais”. Defendem que é da essência do gênero humano conduzir a sua vida afetiva e sexual da maneira que melhor lhe aprouver, tendo a liberdade como vetor comportamental.
157. Além dos demandantes (Procuradoria-Geral da República e Governo do Estado do Rio de Janeiro), há manifestações da Advocacia-Geral da União e de vários “amici curiae” interessados no julgamento desses feitos.
158. Induvidosamente, será mais uma grande oportunidade de a Suprema Corte se firmar como “Tribunal de direitos fundamentais da pessoa humana”, mediante a imensa participação de vários setores da sociedade aberta, plural e democrática na participação dos debates e dos julgamentos, para a construção da “melhor” norma/decisão possível, legitimada pela densa e intensa participação de todos os interessados na solução do conflito constitucional sob exame da “Corte Constitucional” (Karl Popper, A sociedade aberta e seus inimigos, 1987; e Peter Häberle, Hermenêutica Constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: uma contribuição para uma interpretação pluralista e “procedimental” da constituição, 1997).
159. Pois bem, ao meu sentir, dentre os inúmeros e relevantes argumentos utilizados para persuadir e convencer da “verdade” e “validade” de suas interpretações, aqueles que mais me impressionaram, particularmente, foram basicamente dois:
1º O de que do enunciado estampado no § 3º do art. 226 não é possível “extrair/atribuir” uma vedação às uniões familiares dos homossexuais.
2º O fato de que se é possível reconhecer como “companheiro familiar” o parceiro homossexual, para efeitos de inelegibilidade eleitoral ou de nepotismo, também é possível lho reconhecer como “companheiro familiar” para efeitos civis, na plenitude das conseqüência advindas desse indiscutível “fato da vida”.
160. Reconheço que há vários outros relevantes e importantes argumentos, inclusive até mais sofisticados e elaborados do que aqueles que me impressionaram. Nada obstante a existência de outras argumentações fortes, ao meu sentir, no entanto, os argumentos mais “convincentes e persuasivos” foram aqueles que mencionei, com a vênia de quem pensar em contrário.
161. Insisto, vez mais, que a argumentação religiosa, com o devido respeito e consideração que as fés, crenças e concepções religiosas devem ter, não deve ser discurso “levado a sério” no debate constitucional, porquanto este deve ser fundado em bases racionais e em evidências comprováveis e aceitáveis. Isso, no entanto, não pode excluir nem calar as vozes religiosas, pois isso seria intolerância e discriminação.
162. Nada obstante o indiscutível e venerável valor das religiões e a densa legitimidade social dos “líderes religiosos”, é preciso deixar bem claro que o “pecado” ou o “castigo” só têm importância para quem neles acredita.
163. Assim, sem embargo da força cultural e social da moral religiosa e da fé divina, na construção da nossa comunidade, as nossas condutas devem ser pautadas pelas leis e pela Constituição, aprovadas pelos legítimos representantes do povo, escolhidos em processos eleitorais democráticos.
164. Volto aos argumentos que julgo convincentes. Tendo como fio-condutor o fato de que seja possível vislumbrar no texto constitucional, especificamente no § 7º do art. 14, a inelegibilidade familiar extensiva aos “companheiros homossexuais estáveis”, em favor do brocardo romano de que “onde há a mesma razão da lei, aí deve-se aplicar a mesma disposição legal” (ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio)” é possível reconhecer, para efeitos civis, o mesmo caráter “familiar” para essas “uniões homossexuais estáveis”.
165. Daí que possível, reitera-se, enxergar no § 3º do art. 226, CF, a inexistência de vedação ao reconhecimento como entidade familiar das uniões homossexuais estáveis.
166. Segundo eles, da leitura do citado dispositivo constitucional (§ 3º, art. 226) é possível extrair/atribuir três conclusões possíveis:
1ª A Constituição proibiu as uniões entre as pessoas do mesmo sexo;
2ª A Constituição não se pronunciou sobre o assunto, que pode ser livremente decidido pelo legislador, num ou noutro sentido; e
3ª A Constituição requer o conhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, impondo-se, em razão do sistema constitucional, uma interpretação analógica do seu art. 226, § 3º.
167. Os requerentes, com espeque em uma leitura principiológica e teleológica do texto constitucional, e reconhecendo a mudança de mentalidades e de paradigmas da sociedade brasileira, acolhem e defendem a referida 3ª conclusão.
168. Para os postulantes e para os seus “amici curiae”, as circunstâncias fáticas, os valores sociais institucionalizados, os precedentes jurisprudenciais e o texto constitucional autorizam o reconhecimento como entidade familar das uniões homossexuais ou homoafetivas estáveis, da mesma maneira daquelas envolvendo uniões heterossexuais e com as mesmas conseqüências jurídicas, sociais, morais e patrimoniais.
169. Sucede, todavia, que há fortes argumentos em sentido oposto ao pretendido pelos demandantes nas multicitadas ações que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal.
170. Utilizarei do artigo intitulado “Normas Constitucionais Inconstitucionais”, disponível no site do Consultor Jurídico - CONJUR (www.conjur.br), escrito pelos professores Lênio Streck, Vicente Barreto e Rafael de Oliveira.
171. Devo, no entanto, alertar que as visões dissidentes não são inimigas dos homossexuais, nem são favoráveis à discriminação odiosa ou a qualquer tratamento degradante que sofram.
172. Na verdade, são pessoas que enxergam os homossexuais como seres merecedores de respeito e consideração, mas que, ao sentir delas, não podem receber do Poder Judiciário a chancela normativa de “entidades familiares”, como sucedem com as “uniões estáveis” dos heterossexuais, pois entendem que somente por meio de uma “emenda constitucional” seria possível estender aos homossexuais os mesmos “reconhecimentos familiares” que foram estendidos às “uniões estáveis heterossexuais”.
173. Inclusive, as opiniões dissidentes que devem ser levadas a sério, concordam, em sua maioria, que os direitos patrimoniais constituídos ao longo de uma duradoura relação homoafetiva, com uma comunhão de esforços e dedicações, devem ser resguardados e protegidos. Todavia, reiteor, entendem que não é possível extrair/atribuir do texto constitucional uma autorização para o reconhecimento como “entidade familiar” às “uniões homoafetivas estáveis”.
174. Os autores buscaram sua fonte inspiradora em clássica obra de Otto Bachoff intitulada “Normas Constitucionais Inconstitucionais?” para defender a idéia de que não se pode concordar com a existência de normas constitucionais originárias inconstitucionais ou inválidas ou contraditórias.
175. Segundo eles, nada obstante as mudanças de valores, de mentalidades, de paradigmas, e a despeito da indiscutível carga principiológica contida na Constituição, especialmente a vocacionada para a dignidade da pessoa humana, para a liberdade, para a igualdade e para a fraternidade, não pode o intérprete ignorar os enunciados normativos prescritos no texto constitucional.
176. Assim, soa perigoso, em nome de “valores” e “princípios” desprezar o que está expressamente escrito na Constituição. No caso específico, está escrito que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (§ 3º do art. 226, CF)”.
177. É a união estável entre o homem e a mulher que poderá ser elevada à categoria de “entidade familiar”, possível de ser convertida em casamento.
178. A finalidade é a eventual, se possível, conversão da união estável em casamento. Pois a especial proteção do Estado se destina à família, base da sociedade. E o casamento é o instrumento principal de reconhecimento da existência de uma entidade familiar.
179. Nesse prisma, onde se lê o homem e a mulher não é possível enxergar o homem e o homem, ou a mulher e a mulher, pois não é possível, à luz da redação originária e atual do texto constitucional, conceber-se “casamento entre dois homens ou entre duas mulheres”, que constituirão uma “entidade familiar protegida pelo Estado”.
180. Defendem o respeito ao enunciado textual.
181. Esses doutrinadores entendem ser um perigo à democracia representativa e eletiva, que em nome de “princípios” e “valores”, e das “melhores e mais dignas intenções”, se transfira para o Poder Judiciário, via ativismo judicial, a missão, que é própria do Poder Legislativo, de “mudar o texto da Constituição”.
182. O caminho democrático e legítimo adequado é via representantes políticos, por meio de Emenda Constitucional.
183. Nesse prisma, a prevalecer o entendimento de que pode o Judiciário, via STF, corrigir os supostos “equívocos” ou aparentes “lacunas” do Constituinte Originário, o Tribunal deixará de ser o “Guardião da Constituição”, para, quem sabe, ser o seu “Carcereiro ou Algoz”, digo eu.
184. O direito há de ter um mínimo de objetividade, dizem os mencionados doutrinadores. E essa mínima objetividade é garantida pelo “texto”. Continuam que sem texto não há normas; sem normas não há texto, e que o texto deve ser levado a sério, deve ser considerado.
185. Rechaçam, pereptoriamente, a idéia de um conjunto de valores “superiores” aos enunciados.
186. Finalizam seu artigo com as seguintes e relevantes considerações:
“Como nota final – e que isso fique bem claro – voltamos a lembrar os leitores que não somos contrários à regulamentação da união homoafetiva. Desde já, colocamo-nos à disposição para a discussão no plano da elaboração legislativa (por lei ou por emenda constitucional). Entendemos, tal qual entende a Procuradoria Geral da República, que a regulamentação é necessária para proteção dos direitos pessoais e patrimoniais dos homossexuais que vivem como consortes. Porém, pelos motivos amplamente expostos acima, estamos convictos que não é através do exercício de um ativismo judicial que essa regulamentação deve ser levada a efeito. Em nome do direito não podemos fragilizar o direito. Não se pode confundir a jurisdição constitucional, absolutamente necessária para concretizar direitos previstos na Constituição, com um apelo indevido à jurisdição para que atue nas hipóteses que não estão previstas na Constituição (aliás, no caso, a Constituição aponta para outro sentido).
Numa palavra: temos uma Constituição que é o Alfa e o Ômega da ordem jurídica democrática. Uma Constituição dirigente e compromissória. Viver em uma democracia tem seus custos. Neste caso um custo básico: os pré-compromissos constitucionais só podem ser liberados por aqueles que a própria Constituição determina (o poder constituinte derivado). Se tudo o que não está previsto na Constituição pode ser “realizado” pelo Poder Judiciário, não precisaríamos sequer ter feito a Constituição: o Judiciário faria melhor (ou o Ministério Público!) A propósito: se a tese da referida ADPF vingar, há uma série de reivindicações que devem desde já ser encaminhadas ao Poder Judiciário (e que possuem amplo apoio popular...!). Precisamos enumerá-las?
Numa palavra final: propugnando sempre pela preservação do grau de autonomia atingido pelo direito e na democracia, pensamos que melhor mesmo é confiar na Constituição e na forma que ela mesma impõe para a sua alteração e à formulação de leis. Afinal, duzentos anos de constitucionalismo deveria nos ensinar o preço da regra contramajoritária. Ulisses no comando do seu barco sabia do perigo do canto das sereias...! Ah, os fatos sociais...; o velho positivismo fático. Ah, as maiorias... Mas, como saber a sua vontade, se não pela via do parlamento? Ou isso, ou entreguemos tudo às demandas judiciais! E não nos queixemos depois do “excesso de judicialização” ou de “ativismos”...!”
187. Pois bem, senhoras e senhores, esses são, ao meu sentir, os principais fundamentos e argumentos relativos ao tema do eventual reconhecimento como “entidade familiar das uniões homoafetivas estáveis”.
188. Como se percebe, o intérprete pode sempre atribuir/extrair os mais variados sentidos possíveis aos enunciados normativos prescritos no texto constitucional, desde que saiba argumentar de modo racional e convincente na defesa de sua interpretação.
189. Como lhes disse, é um tema palpitante e atual que reclamará da Suprema Corte brasileira uma adequada postura como “guardiã da Constituição” e como “Tribunal de direitos fundamentais”.
190. Induvidosamente, será mais um julgamento do STF que chamará as atenções e empolgará os mais acesos debates, provocando manifestações de variados atores sociais e políticos.
191. Que a Corte saiba, como tem sabido, manter-se à altura das expectativas da sociedade brasileira, pois “os direitos constitucionais devem ser levados a sério”.
192. Em síntese, se eu tivesse de resumir o principal argumento favorável ao reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar, diria o seguinte: “Se para efeitos eleitorais e para proibir o nepotismo é possível reconhecer o companheiro homossexual como “cônjuge”, por uma questão de unidade e coerência sistemática, devo reconhecer como “cônjuge” para os demais efeitos civis”.
193. Por seu turno, se tivesse de resumir o principal argumento desfavorável às pretensões dos requerentes, diria o seguinte: “A despeito das extensões para efeitos eleitorais e de moralidade administrativa, aquelas soluções tópicas e circunstanciais não podem ser generalizadas e nem podem contrariar o expresso enunciado contido no § 3º do art. 226, pois a união estável a ser protegida pelo Estado é aquela possível de ser convertida em casamento, ou seja, a do homem e a da mulher”.
194. Cada um de nós é livre para aderir a um ou a outro entendimento, pois somos partícipes dessa comunidade aberta e plural, e devemos fazer as nossas escolhas e opções de acordo com as nossas consciências e convicções, buscando, sempre a conduta que nos dê conforto moral e paz espiritual. Que saibamos fazer o bem a nós mesmos e aos outros.
195. E, para finalizar, considerando que estamos em uma manhã de sexta-feira, homenageando Cláudio Pacheco, esse monumento humano do Piauí, peço, vez mais, licença para encerrar com mais uma obra-de-arte do bardo Shakespeare, essa dádiva da Inglaterra para a humanidade, para quebrar um pouco a seriedade e a solenidade do evento, de modo que saibamos que se o direito e o trabalho devem ser levados a sério, é sempre bom “aproveitar as outras coisas boas que a vida nos oferece”.
196. Trata-se de uma passagem da peça “Júlio César”, no 1º Ato, Cena 2, envolvendo um diálogo entre Júlio César e Marco Antônio:
CÉSAR: Faze com que me rodeiem homens que são gordos, de cara lustrosa, e homens que dormem à noite. Ali temos Cássio, com uma aparência magra e esfaimada; ele pensa demais; homens assim são perigosos.
ANTÔNIO: Não o tema, César, ele não é perigoso. É um nobre romano, e bem intencionado.
CÉSAR: Gostaria que ele fosse menos magro! Mas não tenho medo dele, não. E, no entanto, se no nome de César coubesse medo, não sei de outro homem que eu devesse evitar mais do que esse esquálido Cássio. Ele lê demais, é um grande observador, e enxergar por trás das ações dos homens. Não ama o teatro como tu, Antônio; ele não ouve música. Raramente sorri, e sorri de um jeito que é como se estivesse zombando de si mesmo a ponto de sorrir de alguma coisa. Homens, como ele jamais têm o coração tranqüilo enquanto têm a sua frente alguém maior e, portanto, são muito perigosos. Na verdade, estou te falando sobre o que se deve temer, e não sobre o que eu temo, pois sou sempre César. Coloca-te à minha direita, pois deste ouvido sou surdo, e dize-me verdadeiramente o que pensas dele.”
Muitíssimo obrigado pela generosa atenção!
Notas
[1] Art. 93, inciso IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
[2] Petição inicial disponível no site do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br).
[3] Petição inicial disponível no site do STF (www.stf.jus.br).