1. DIREITO DE PROPRIEDADE
A propriedade é uma instituição de base do meio jurídico, assim como também é do meio social. O Direito de Propriedade talvez seja o mais sólido e o mais importante dos direitos subjetivos, o eixo principal, o sustento que baseia todo o direito das coisas. Mais que isso, a propriedade é a essência da estrutura social e econômica do Estado. Essa instituição teve e tem a função de organizar a relação entre os membros de uma determinada sociedade, no que se refere à maneira de dispor do meio ambiente como fonte de riqueza e satisfação de necessidades. A propriedade, antes considerada direito subjetivo absoluto, atualmente ressurge sob outra concepção, ao se relacionar com a função social, ou seja, para cumprir sua função, a propriedade deve produzir, de modo a contribuir para a melhoria de condições, não só de seu titular, mas de todos, em respeito ao objetivo constitucional de construir uma sociedade justa e solidária.
A propriedade que não cumpre sua função social não pode ser tutelada pelo ordenamento, que submete os interesses patrimoniais aos princípios fundamentais. A Constituição Federal garante o direito de propriedade, desde que este exerça sua função social. O próprio texto constitucional determina a funcionalidade da propriedade, ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como fundamento da República e determinar como objetivo a justiça social.[1] Assim, o conceito de propriedade pode ser expresso atualmente como “direito que permite a um titular usar, gozar e dispor de certos bens, desde que ele o faça de modo a realizar a dignidade de pessoa humana.”
A manipulação e o usufruto de um bem devem ser feitos de acordo com o interesse social da utilização da coisa. O direito do proprietário deve ajustar-se aos benefício da sociedade. Em caso de conflito, o interesse social pode prevalecer sobre o individual; exemplo disso é a desapropriação, para fins de reforma agrária, de uma propriedade rural improdutiva, com o pagamento de indenização em títulos da dívida agrária (art. 184). Nessa linha de pensamento, o Código Civil declara que "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas" (Código Civil, art. 1.228, § 1º).
É importante ressaltar que o direito em geral é incutido de função social e que não se trata de uma redundância atribuir uma nova “função social” ao direito de propriedade, a função social atribuida constitucionalmente não é uma forma de suprimir ou invadir o direito subjetivo desse proprietário, mas de garantir que as suas ações não colidam com o interesse coletivo para que ambos se direcionem para o mesmo objetivo. Porém, na prática, o conceito de direito de propriedade ainda é pouco estabelecido no campo. O padrão de distribuição fundiária no Brasil instituiu uma dinâmica de expansão da fronteira agrícola[2] que, em princípio, deveria evitar a violência rural, mediante a facilitação da ocupação de terras devolutas.
No entanto, o mesmo padrão de distribuição é reproduzido nas terras da nova fronteira, devido à disputa pelos direitos de propriedade ainda não devidamente ajustados naquela região. Em virtude disso, os grupos com maior poder econômico e político têm maior acesso aos títulos de posse, o que traz como conseqüência, muitas vezes, a violência resultante do confronto entre esses grupos e posseiros. Estes, quando expulsos da terra, deslocam-se, em direção à floresta, abrindo novas terras para lavrar e, assim, ampliando a fronteira. Essa expansão descontrolada da fronteira é motivo de conflito entre donos de terra e ativistas ambientais, levando a um ciclo de violência que envolve ambientalistas, posseiros e grupos de indivíduos com poder econômico.
2. DESMATAMENTO E DIREITO DE PROPRIEDADE
Tanto o processo de desmatamento quanto à ocorrência de conflitos rurais na Amazônia não são fenômenos novos. Na verdade, pode-se observar que a preocupação com ambos ganha esboço a partir da década de 80, ou seja, passada mais de uma década da política de colonização da Amazônia idealizada pelo governo militar. Em atributo disso, tanto a violência no campo, quanto o processo de desmatamento na Amazônia, contam com uma consolidada literatura que trata desses temas. Todavia, poucos são os que oferecem uma resposta que busque relacionar desmatamento e violência rural sob o aspecto jurídico do direito de propriedade.
A partir de dados coletados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2017, o estado do Pará é líder do ranking de mortes causadas por conflitos rurais com 21 mortes seguido pelos estados de Rondônia (17 mortes), Bahia (10 mortes), Mato Grosso (9 mortes), Amazonas (3 mortes) e Minas Gerais (2 mortes). Respectivamente, segundo dados apresentados pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente (Imazon), o Pará também é o Estado com maior índice de desmatamento da Amazônia com 48% do total desmatado em maio de 2018, seguido pelo Mato Grosso com 29%, Amazonas 15% e Rondônia 7%. E ainda, segundo dados da Universidade Federal de Goiás (UFG), os estados da Bahia e de Minas Gerais aparecem entre os que mais desmataram o cerrado nos últimos 7 anos.
Logo, tomando como base os dados apresentados, conclui-se que os estados que mais desmatam também são aqueles que apresentam maior índice de violência rural. Isso se dá pelo existência de conflitos que envolvem a disputa pelos direitos de propriedade de terra, segundo essa análise, direitos de propriedade exclusivos sobre a terra fornecem a garantia adicional aos fazendeiros para obter vantagem financeira, realização de investimentos específicos, redução de capital privado na defesa da propriedade e aumento no valor da terra mediante a expansão de seu mercado.
Quando o valor da terra é baixo, acaba facilitando os modos informais de posse de terra e a violência é restrita, tornando um acordo sobre o direito da propriedade mais viável, na medida em que a fronteira agrícola vai se tornando “velha” e o preço sobe é quando os direitos de propriedade vão se definindo de forma legal e reduzem a oportunidade de acesso a terras, pontecializando a competição por títulos de propriedade e novos conflitos. Nesse processo, posseiros e pequenos proprietários são, em geral, os mais prejudicados, visto que se põem a enfrentar fazendeiros e grileiros com maior poder político e econômico. Para expulsar os posseiros, estes grupos com maior poder corrompem as agências que comandam o processo de titulação da terra, ou se utilizam de violência.
Logo, a violência na fronteira surge, dentre outros motivos, a partir dos conflitos pela definição dos títulos de posse entre posseiros, de um lado, e grileiros e fazendeiros de outro. Os posseiros, mais frágeis diante da possibilidade do uso da violência por parte dos latifundiários e, ainda, pela força que estes têm junto à classe política, são, geralmente, expulsos. Assim, resta à população expulsa de suas terras duas opções: continuar na fronteira velha a trabalhar como assalariado, posto que há uma crescente urbanização da fronteira, ou então, migrar para abrir uma nova região de fronteira.
Esse comércio de venda de terras, onde grupos com poder aquisitivo compram a terra por um preço mais barato (logo no surgimento das novas fronteiras) e vendem por um preço mais alto (após a fronteira se tornar velha) aliado à pecuária (que conta com um grande amparo de práticas políticas em que as terras desmatadas são legalizadas a partir da justificativa de serem terras produtivas, além de incentivo fiscais dados aos fazendeiros e investimento estrutural, na forma de estradas por exemplo) são os principais fatores que encorajam a continuidade do ciclo do desmatamento.
Envolvidos nesse ciclo, ainda se encontram os ambientalistas que, na defesa do meio ambiente e na luta contra o desmatamento acabam sendo vitimas de conflitos rurais, segundo a ONG Global Witness, o Brasil é país líder de mortes de ativistas ambientais: foram 448 mortes de defensores ambientais brasileiros entre 2002 e 2013, entre os casos de repercussão estão Doroth Stang, freira norte-americana morta em 2005; Chico Mendes, extrativista, ativista e ambientalista morto em 1988 e do casal José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, líderes extrativistas mortos em 2011. Para se ter uma idéia, o número supera o de mortos e desaparecidos políticos no período do Regime Militar de 1964-1985.
O crescimento dos conflitos ambientais e do número de mortes, segundo a ONG Global Witness, está aumentando devido a interesses econômicos, corrupção, destruição do meio ambiente e posse ilegal de terras. No entanto, nem toda violência é realizada contra o indivíduo. Ao falar sobre a violência no campo é importante abordar a violência à natureza: desmatamento, cuidado inadequado às nascentes, cultivo impróprio de terras e poluição são alguns exemplos da devastação à qual o meio ambiente é submetido. Também pode ser mencionada a degradação ocorrida resultante de problemáticas ligadas à mineração e mesmo à construção de usinas hidroelétricas.
Ainda que, conforme veiculado, se tente minimizar os danos e que medidas de segurança tenham sido reforçadas, ocorre a presença de prejuízos causados ao meio ambiente, afetando populações. O ser humano, enquanto parte do ecossistema, especialmente quando pertencente aos grupos socialmente vulneráveis, juntamente com todos os animais, sofre os impactos da inadequada preservação ambiental. Além disso, os assassinatos relacionados a tais empresas e usinas representam um dado alarmante, também apresentado pela Global Witness.
3. REFORMA AGRÁRIA
A violência no meio rural também envolve a militância ligada à temática. Um exemplo é o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), principal movimento social campesino brasileiro, que tem entre as pautas centrais a reforma agrária, a justiça e a fraternidade. Envolvendo interesses e influências de grandes grupos privados, a mudança de foco do direito de propriedade para uma criminalização da mobilização é apresentada no discurso usado para “justificar” diferentes atitudes violentas contra camponeses e militantes.
O massacre do Eldorados dos Carajás no Pará em 1996, os dois membros do MST mortos e os integrantes feridos, em Quedas do Iguaçu no Paraná em 2016 e a recente chacina de trabalhadores rurais em Colniza, no Mato Grosso, em 2017, são exemplos que receberam alguma repercussão na mídia, mas que representam apenas uma parte da violência física, incluindo os homicídios, envolvendo conflitos agrários no país. Com dados do Censo Agropecuário de 2006, já que não existem registros mais novos, o relatório feito pela Oxfam (organização que tem como principal objetivo estudar a desigualdade social) mostra o desequilíbrio da sociedade brasileira no meio rural.
Grandes propriedades somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a dez hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total, enquanto que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresenta dados que mostram que cerca de 175 milhões de hectares são de terras improdutivas. Logo, conclui-se que a posse de terras, mesmo que improdutivas, ainda é fonte de lucro aos grupos que exercem controle econômico no meio rural e que a concentração de terras sofre de influência do poder financeiro.
O conflito de terras que ocorre na Amazônia é motivado também pela grande migração que se deu, já que ali já existiam povos da floresta vivendo há séculos. A entrada maciça de migrantes na região gerou conflitos com posseiros, índios, seringueiros, etc. Núcleos urbanos da região amazônica, como Porto Velho, Vilhena, Manaus, Boa Vista, Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Altamira, Paragominas, Santarém, Marabá, Imperatriz, cresceram rapidamente, enfrentando o agravamento de problemas sociais, como violência e prostituição.
O governo federal, no entanto, tem anunciado a disposição de adotar medidas de apoio para agricultura nacional, um exemplo é a criação do Banco da Terra, que busca agilizar projetos de reforma agrária de forma mais rápida, barata e democrática, financiando, diretamente a quem precisa, a infraestrutura básica comunitária para seu desenvolvimento e a compra do imóvel rural escolhido, trabalhando com prazo de pagamento de até vinte anos e com juros baixos, com três anos de carência.
O Banco da Terra vem funcionando como um novo e poderoso instrumento de fortalecimento da agricultura familiar e desenvolvimento econômico sustentável do campo, além de auxiliar a distribuição fundiária, pois, segundo suas diretrizes, está voltado para os trabalhadores rurais, posseiros e arrendatários, de modo geral, que comprovem, pelos menos, cinco anos de experiência em atividades agropecuárias. Segundo a legislação reguladora do funcionamento do Banco da Terra, a gestão financeira dos recursos será assegurada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.
CONCLUSÃO
Diante dos fatos anteriormente mencionados, conclui-se que o direito de propriedade deve ser realidade para todos, sendo um mecanismo de defesa e segurança ao mesmo tempo, tanto para os grandes latifundiários, quanto para os pequenos proprietários de terra e produtores rurais, com o intuito de diminuir os conflitos existentes entre eles. Além disso, nota-se que a preservação do meio ambiente é indispensável ao que diz respeito à manutenção da fauna e flora, e também, da vida do ser humano, sendo o desmatamento, um mal que por vezes é necessário para o incremento da economia nacional, mas pode ser minimizado com replantio de áreas devastadas, ademais, a proteção e fiscalização para com ambientalistas e ativistas deve ser pauta de debates no âmbito governamental.
Por fim, é notória a necessidade da reforma agrária, motivo hoje de vários conflitos que envolvem a elite rural, ativistas, sindicalistas e até religiosos, que acaba se mostrando uma das vias de resolução para a violência no campo, na forma que se relaciona com a melhor distribuição de terras e uma produção mais sustentável, tendo em vista que, em seu processo ocorre a desconcentração fundiária, a fim de que o conflito de terras – fato que busca o controle do direito de propriedade – não ocorra de forma violenta, e sim apenas no âmbito jurídico, sem a influência do poder econômico sob a função social atribuída ao direito de propriedade pela Constituição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
FALCÃO, Ismael Marinho. Direito Agrário no século XVI e o desenvolvimento rural brasileiro atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/1666>. Acesso em: 15 nov. 2018.
SANT'ANNAL, André Albuquerque; FRICKMAN, Carlos Eduardo. Direitos de propriedade, desmatamento e conflitos rurais na Amazônia. Revista Scielo, ISSN 1413-8050, Ribeirão Preto, vol.15, n. 3, set. 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1413-80502010000300006>. Acesso em: 02 nov. 2018.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed., São Paulo: Malheiros, 2005.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
Notas
[1] Nesse sentido, bastante esclarecedor o seguinte trecho: “(...) na sistemática da Constituição, será socialmente funcional a propriedade que, respeitando a dignidade da pessoa humana, contribuir para o desenvolvimento nacional, para diminuição da pobreza e das desigualdades sociais.” (GONDINHO, André Osório. Obra citada, p. 413).
[2] Fronteira agrícola é o avanço da unidade de produção capitalista sobre o meio ambiente, terras cultiváveis e terras de agricultura familiar. A fronteira agrícola está ligada com a necessidade de maior produção de alimentos, criação de animais sob a demanda internacional de importação destes produtos. (SILVA, José Graziano da. Obra citada, p. 21)