O famoso autor infantil Hans Christian Andersen, no conto de fadas “A roupa nova do Imperador”, nos conta a história de um vaidoso monarca que, enganado por costureiros falastrões, é levado a vestir uma suposta roupa para quem só os mais puros e dignos teriam a habilidade de ver. Apresentando-se diante de sua multidão de súditos que, vaidosos e constrangidos com a possibilidade de se autodeclararem indignos, preferem acreditar estar vendo algum traje, eis que uma criança na multidão grita inocentemente o óbvio: “o rei está nu!”.
Assim também, se perguntarmos a uma criança de tenra idade ainda não influenciada pelas escolhas de adultos, a diferença entre azul e rosa não passará da tonalidade ao gênero.
Não obstante, a exortação festiva da Ministra dos Direitos Humanos de que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” assombrou os bancos acadêmicos da educação e psicologia, fazendo reverberar para além do conhecimento universitário formal, nos palco da sociedade, a nocividade de um pensamento representativo do estereótipo patriarcal enraizado de múltiplas formas em nossa sociedade.
A associação da cor ao gênero é algo costumeiro, mesmo em corriqueiras atividades familiares, como um chá de revelação de bebê. Mas o ordinário não se torna correto pela sua reiteração ou aceitação social. Também já foi constante aceitável ver pessoas açoitadas às ruas e, nem por isso, moralmente correto ou coerente aos padrões de direitos humanos aos quais, com árduo esforço e decurso de tempo, já chegamos a compreender.
Na teoria da Análise do Discurso, a fala da Ministra dos Direitos Humanos assusta não apenas pelo que se prolifera, mas, notadamente, a partir de quem fala e de onde fala (ORLANDI, 2005)[1], constituindo um modelo de pensamento que reflete a gestão política brasileira vitoriosa nos próximos quatro anos. Pode-se esperar, portanto, ações políticas calcadas em doutrinações arcaicas, supersticiosas, inverossímeis, eivadas de ilegalidades ou despidas de razoabilidade. Nesse sentido, saberia a locutora, aliás, de onde veio a ideia das cores por ela discursada? [2]
Maior do que uma preocupação em aprimorar o pensamento de uma família sobre variar cores no seu chá de bebê é a de avaliar em quais mãos (e cabeças) está a política de um contingente populacional pluralístico em todos os aspectos de sua identidade. Aqui reside o medo do discurso: até onde ele se efetivará na construção do plano de ação governamental?
Há muito mais do que um atrelamento meramente estilístico de cores ao gênero do indivíduo. A determinação de qual cor ou roupa vestir é um modo histórico de sujeição de identidade (SALERNO, 2007)[3], onde aqueles que desafiam ao comando da padronização são postos no campo dos subversivos ao sistema de governo e, assim inimigos do estado – analogamente aos hostis, do período romano, “inimigos declarados, não porque declarem ou manifestem sua animosidade, mas sim porque o poder os declara como tais: não se declaram a si mesmos, mas antes são declarados pelo poder” (ZAFFARONI, 2007, p. 23)[4].
Exemplo clássico foram os hippies da década de 60, cuja quebra na padronização das roupas no contexto global de regimes totalitários contrapunha-se à ideologia dominante dos governos como um dos muitos meios de resistência social.
A submissão não é diferente com as crianças. Ao contrário, ela é antiga, e há muito se faz hábito de constituição identitária de heteroidentificação de gênero impor “calças compridas, no caso dos garotos, e vestidos semelhantes aos das mulheres adultas” (AREND, 2012, p. 71)[5], como uma forma de assegurar a manutenção de tradicionais sexualidades a despeito da compreensão de gênero disposta como organização social experienciada e decorrente da vivência (SCOTT, 1995)[6].
Com essas estratégias, forma-se um cabedal impositivo ideológico na cabeça infantil, tolhendo a oportunidade delas descobrirem por si sós os caminhos de sua identidade. São teorias sem fundamento inculcadas de que “meninos vestem azul, são bagunceiros, objetivos e racionais, gostam das aulas de matemática e se dão melhor nos esportes. Meninas preferem o rosa, são organizadas, mais sensíveis, têm mais disciplina e se destacam em língua portuguesa.” (BIAGIO, 2005, p. 33)[7].
A angústia de agentes do governo com cores de gênero não é algo que surpreende. Já na campanha presidenciável, era pauta de discussão a suposta existência de livros acerca da temática do ensino da sexualidade nas escolas infantis. O problema da vestimenta ou da leitura, porém, é apenas superficial. O núcleo duro da celeuma gira em como tornar a massa dobrável, isto é, como criar um plano de formação que molde cidadãos a seguirem determinada ideologia dominante porque “é mais fácil dominar súditos dóceis ou indiferentes” (BOBBIO, 1987, p. 31)[8].
A estratégia para tanto é simples como um conto de fadas infantil: conta-se uma mentira substanciosa apostando no nível de ignorância do ouvinte e desafiam-no a acreditar para que demonstre sua independência ou seu alto nível intelectual sobre o assunto. Constrangido em não aceitar a mentira como verdade sob pena de ser tachado como ignorante, o sujeito toma a mentira como verdade para se livrar da pecha e consolida sua ignorância, ainda que conscientemente, em seu íntimo, a verdade salte aos olhos. Num caso hipotético, diz-se que meninos que vestem rosa serão homoafetivos, porque estes vestem rosa e, assim, a formação das famílias estaria ameaçada. Aquele que não acreditar correrá o risco de ver seu filho “sexualmente desviado pela ideologia de gênero”. Temerosos em se tornar responsáveis pela decadência moral dos seus filhos, pais adotam o discurso.
Estamos, pois, como a multidão de Hans Christian Andersen, vaidosos demais para perceber os já recentes demonstrativos de resultados das escolhas erradas na gestão pública e, ao mesmo tempo, constrangidos demais para reconhecer que posicionamentos absurdos são reflexos daquelas escolhas. Apesar disso, teimamos em querer “ver a roupa invisível” da moralidade, da educação, da segurança pública etc apenas porque acreditamos que, se não virmos, seremos indignos e adoradores de um governo corrupto. Mas a verdade da real intenção dos projetos da nova política nos salta aos olhos desde sua candidatura. O capitão está nu. Sempre esteve, balançando seu ódio, sua violência, seu preconceito.
Aos que já veem, incumbe o papel de não desistir de gritar o óbvio. Uma luta onde não é certa a lucidez da multidão na trajetória desses próximos quatro anos. Mas como cantava Toquinho: apesar de “o fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar. Vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá.”.
[1] ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 6. ed. Campinas: Pontes, 2005.
[2] [...] na era pré-cristã, quando se acreditava que algumas cores podiam expulsar os espíritos nefastos que rondavam os recém-nascidos. Como bebês do sexo masculino eram mais valiosos, passaram a ser vestidos com roupas azuis, cor associada aos espíritos do bem (por ser a mesma do céu). As meninas, quando recebiam alguma atenção, ganhavam roupas pretas, cor símbolo da fertilidade na cultura oriental [...]. Foi só no século XIX que o rosa ganhou alguma ligação com a feminilidade, influenciado por uma lenda europeia que diz que as meninas nascem de rosas e os meninos de repolhos azuis. Esse padrão, no entanto, não se disseminou por todo o mundo. Por um bom tempo, na França, as meninas se vestiam de azul, por causa da tradição católica, que associa a cor à pureza da Virgem Maria. (FEIJÓ, B. V. (2005, 31 de março). Por que azul para meninos e rosa para meninas? [Web log post]. Recuperado de http://super.abril.com.br/historia/porqueazul-para-meninos-e-rosa-para-meninas. 18, p. 01), p. 01).
[3] SALERNO, Melisa Anabella. Algo habrán hecho: la Construcción de la Categoría Subversivo y los Procesos de Remodelación de Identidades a través del Cuerpo y el Vestido (Argentina, 1976-1983). In: Revista de Arqueologia Americana, v. 24, 2007.
[4] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007.
[5] AREND, S. F. Meninas. Trabalho, escola, lazer. In: PINSKY, C. B.; PEDRO, J. M. (Org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012
[6] SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n.2, p.71-99, 1995.
[7] BIAGIO, Rita de. Meninas de azul, meninos de rosa. Revista Criança do Professor da Educação Infantil, São Paulo, n°40, p.33-35, set. 2005 http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/eduinf/revcrian40.pdf. Acesso em 06 de jan. 2019.
[8] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: Uma defesa das regras do jogo. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.